– Então Igor, no que trabalha?– Minha mãe perguntou, direta e rápida.
– D. Betânia, eu trabalho... – ele parou ao ver a careta da minha mãe. Me olhou confuso e eu me perguntei porque não olhou para Ceci, mas procurei deixar para lá.
– Ela não gosta de Betânia, se quiser chame de Tia Betty. Nunca Betânia. – expliquei.
– Ah, me desculpe.
– Tudo bem. – Minha mãe sorriu, parecia cada vez mais encantada.
– Pois bem... Eu trabalho no planetário no centro da cidade, meio período. Das 10 as 6 e depois tenho faculdade. Mas estou de férias e tudo o mais. Consegui o trabalho porque minha tia é astrônoma, já trabalhou lá e arranjou um trabalho para mim.
– Sério? Nossa, isso é ótimo. Mora com seus pais?
– Não... Eu tenho meu próprio apartamento.
– Tão jovem?
– Quando meu avô morreu, eu tinha 16 anos, ele me deixou um bom dinheiro. Nessa época meus pais já haviam me emancipado por... me acharem maduro o suficiente. – O olhei curiosa, não conhecendo esse detalhe sobre a família dele. Ele nunca falou sobre os pais, ou algo semelhante. – O dinheiro foi o exato para comprar uma casa para mim e pagar minha faculdade de Astronomia. Com meu emprego, paguei um carro para mim.
– Você parece um garoto decidido. Ao contrário da minha filha, Maria de Lourdes.
– Malu, mãe. Meu nome é Malu. – remexi meu arroz com o garfo nervosamente, já prevendo um desastre.
– Não sei por que não me deixa te chamar pelo seu nome verdadeiro, Maria de Lourdes. É um nome tão bonito.
– Por favor, mãe. Malu, você sabe disso. – controlei o impulso de cerrar os dentes e cruzar os braços irritada. – Já se acostumou.
– Malu é assim, a única coisa que sabe da vida é que odeia o próprio nome. – Minha mãe comentou se dirigindo a Igor. Pronto, começou, pensei. Minha mãe se indignava por eu não escolher qual faculdade fazer e por não me interessar por nenhum cursinho, além do de inglês que eu havia terminado a algum tempinho. Não era minha culpa não ter descoberto minha vocação ainda, oras. Eu não me preocupava tanto porque tinha tempo para pensar. E não tinha culpa se nenhuma profissão se encaixava ao meu perfil atual.
– Mãe... Eu sei o que vou fazer na vida. Faculdade.
– Mas não sabe do que.
– Tenho tempo pra decidir. Já conversamos sobre isto. – A olhei esperando que ela se tocasse que não era hora para ouvir seus sermões. Ela voltou a olhar para Igor e sorriu.
– Faculdade de Astronomia? Que diferente.
– Nem tanto... – ele sorriu e olhou para mim, desviei os olhos. Irritada com a minha mãe, que babava por Igor, com Cecília, por exibi-lo toda orgulhosa, com Karol, por olhar meiguinha para ele e ser receptiva. Raiva de mim por... Por tantas coisas! E raiva dele, principalmente e inteiramente dele. Eu sentia um ódio ferver dentro de mim, misturado com o turbilhão de sentimentos e pensamentos que era minha cabeça. Meu estômago embrulhava e terminar de comer a salada de maionese da minha mãe tornou-se impossível. – Eu realmente gosto de estrelas.
– Você podia me levar no planetário. – Karol se intrometeu na conversa; ignorando o clima tenso entre mim e minha mãe como uma típica criança de 5 anos, tentando se livrar das verduras.– Eu gosto de estrelas também.
– Podíamos ir todos, quem sabe... – ele sorriu para Karol, carismático. Revirei os olhos, bebendo um copo de refrigerante e tentando de todo o jeito não olhar naquela direção, ou simplesmente enfiar um garfo na minha testa. Ninguém percebia como isso era desagradável. Que inferno!
– Parece ótimo. Que tal amanhã?
– Amanhã não. – Sem poder me conter, abri minha bocona. Xinguei baixinho quando todos me olharam. Infelizmente minha mãe veio com a pergunta mais difícil:
– Por quê? – vasculhei alguma desculpa boa na minha mente. Infelizmente eu era uma péssima mentirosa.
– Bem... É que... Eu vou sair. – sorri orgulhosa da minha grande desculpa.
– Pra praia? – Ceci se intrometeu, me olhou com um olhar sarcástico. – Você vai todo dia para praia.
– Eu não vou à praia amanhã. Vou a outro lugar.
– Que outro lugar? Que eu saiba todas suas ‘amigas’ viajaram e o Alexandre também.
– Não conheço só eles. – Eu não conseguia mentir, então só ficava nessas evasivas.
– Você vai. – Minha mãe disse sorrindo, mas eu sabia que ela haveria ameaças depois. Armei uma bela carranca para ela, que ignorou placidamente.
– Podemos ir outro dia. – Igor tentou apaziguar as coisas. Olhei para Igor tentando entender qual era o problema dele. – Aí não tem problema.
– Depois de amanhã! – Ceci disse animada. Senti vontade de desaparecer. Não respondi nada, e eles voltaram a conversar. Assunto? Praia. Eu? Martírio.
– Faz o que no tempo útil?
– Hãn... Eu surfo.
– Surfa?
– Arran.
– Surfa pra manter a forma?
– Não. Na verdade não. Quando comecei a surfar era bem magrelo e tinha horror a academia, sempre achei chato. Mas eu gostava um pouco de esportes, mas não tinha muito jeito. Mas eu amo o mar, achei a solução perfeita. Aprendi a surfar. Manter a forma é apenas um bônus.
– Você deve ter muitas garotas em cima de você.
– Não. Não.
– Como existe gente mentirosa nesse mundo, viu... – Eu disse baixinho. Alguns pares de olhos viraram para mim.
– Você disse algo?
– Não. Claro que não! – Corei e ele sorriu tristonho. A conversa retornou, minha mãe parecia definitivamente conquistada. Eu estava já cansada disso. Me levantei.
– Com licença. Vou dormir.
– Já? Mas nós vamos assistir a um filme.
– Eu aluguei um romance lindo, filha. Você ia amar. – ri ironicamente. Eu não gostava de romances, só quando tinha vontade de chorar. E ainda mais assistir o filme com esses dois? Eram piadas demais pra uma noite só.
– Eu prefiro dormir. Minha cabeça parece que vai explodir e tudo o mais. Boa noite pra vocês;
– Boa noite. – A voz de Igor saiu sussurrada, como antigamente. Até mesmo vislumbrei o sorriso dele se afastando. Dois furinhos nos cantos de suas bochechas quando ele sorria abertamente. Me virei, sem olhar na direção dele, sentindo meu coração sufocar em meu próprio sangue quente. Subi as escadas correndo e tranquei a porta do quarto. Eu estava superconsciente da minha cabeça latejando, ainda sentindo a adrenalina pulsando em meu corpo. Fechei os olhos, procurando pensar em qualquer outra coisa. Formulas matemática, golfinhos, terroristas, um trapiche... Mas estava realmente difícil. Me concentrei no sangue martelando forte na minha cabeça, dos braços pulsando, nas pernas tremulas. E do coração se rebelando. Batendo dez vezes mais forte do que o normal. Péssimo sinal.
– d***a! – puxei um travesseiro e o apertei junto à cabeça. Fechando os olhos. Lembrei da minha promessa. Sem lágrimas. Sem lágrimas... Difícil. Elas molhavam meus olhos mesmo quando estavam fechados. Sentia como se tivesse areia em meus olhos e as lágrimas seriam para expulsá-las. Abri os olhos olhando o teto e dando de cara com um céu azul que toldava meus olhos e com o cheiro de maresia que inundava meu nariz desde um ano atrás. E confusa, com os cílios molhados, comecei a pensar em uma forma de fugir ao encontro de depois de amanhã.
Claro que antes de dormir prometi a mim mesma não ir a praia, não sair de casa, nem conversar com Ceci, nem nada do tipo. Uma coisa eu tinha conseguido, eu não falei com Ceci. Vi minha mãe no café da manhã que me deu uma bronca sobre ser educada que eu fiz questão de ignorar, mas foi tudo. Claro que eu não consegui cumprir as outras duas promessas. Foi impossível ficar em casa olhando pro teto e tendo pensamentos depressivos, então, fui para praia. Que era meu refúgio. Gostava da agitação e calmaria do mar, do cheiro. Da areia entre meus dedos. De ouvir o mar batendo na areia, ou de encontro com as grandes pedras. De andar pelo píer quando ele estivesse vazio, o mar balançando levemente abaixo de mim e eu ver lá longe minha sombra. Ou apenas sentar em um banquinho afastado, ou numa toalha de praia e ver o mundo passar devagarzinho junto com o tempo enquanto eu lia um livro qualquer.
Eu estava sentada em um banquinho, usando um vestidinho solto e velhinho e um all star no pé, pra não perder o costume de ter conforto. Com o livro de ontem nas mãos. Minha cabeça dava voltas e eu fiquei olhando as pessoas passarem, sem realmente vê-las. Raras vezes eu prestava atenção em alguém e me perguntava intimamente sobre como era sua vida, tentando esquecer a minha. O dia estava estupidamente quente e eu sentia o suor se formar na minha testa em pequenas gotículas, limpei-as com a palma da mão. A manhã estava indo embora para dar lugar a uma daquelas tardes de calor sufocante em que nós, moradores de Santa Bárbara, uma pequena cidade do Rio de Janeiro, já estávamos acostumados. O sol machucava meus olhos e me cegava, me deixando meio sufocada e tonta, e eu estava prestes a me levantar e ir embora, me refugiar na frente do meu ventilador salvador e refrescante lá no meu quarto. Até que uma silhueta surgiu, parando a minha frente e tapando o sol.
– Oi. – Aquela voz feriu meus ouvidos, mas respirei fundo, cansada. Olhei para cima, colocando a mão no rosto para enxergar melhor sua forma. Lá estava ele, as mãos no bolso da bermuda e uma expressão indecifrável no rosto, os cabelos estavam mais curtos do que da última vez, reparei.
– O que você quer? – eu disse, a voz controlada. Mas eu estava meio que surpresa.
– Posso me sentar?
– Não. Melhor você ir embora.
– Quanta delicadeza. – ele disse, ignorando minha recusa e se sentando no banco. Um sorriso irônico ameaçava surgir em seu rosto.
– Obrigada. Agora responda.
– Quero falar com você. – ele se sentou no banco ao meu lado. O encarei pelo canto do olho.
– Sério? Falar comigo? Pensei que você só queria minha permissão para trocar um papinho com o banco.
– Você é uma figura, Malu. – bufei, virando o rosto e abraçando meu livro. Esperando que ele se tocasse e simplesmente fosse embora.
– Vai mesmo continuar tentando ignorar minha presença?
– Estou tendo sucesso? – arrisquei olhá-lo de canto do olho. Um sorriso surgia em seus lábios.
– Não.
– Droga...
– Malu...? – ele sussurrou, a voz me fazendo estremecer. Dei de cara com seus olhos que pareciam abrigar naquele tom de dourado, toda a fúria de um mar de Titãs, mesmo não sendo azuis. Seu olhar firme, mas ao mesmo tempo implorativo me lembrou os livros que eu havia lido sobre o Egito antigo, sobre o milagre das águas e rios, da riqueza e beleza do ouro. Os olhos de Igor eram de um mar banhado em ouro, talvez um riacho límpido que matava a sede de milhões de Malu’s, como num daqueles meus sonhos infelizes. Seus olhos me acariciaram inicialmente e em seguida a saudade me deu uma bela bofetada imaginária. O seu cheiro me atingiu com força, misturado com a fragrância de alguma colônia desconhecida por mim. Não sei por que, ou talvez sabendo até demais, senti o sangue ferver. De raiva, era por isso que eu tremia segurando meu livro e sentia meus olhos umedecerem, eu tentava me fazer acreditar. Cerrei os lábios. Só de raiva. Apenas raiva. – Malu...
– Eu.
– É que... Eu só...
– Só o que? – O interrompi, prevendo as palavras que sairiam da sua boca. – Não quer que eu conte para minha irmã sobre as férias do ano passado?
– Ela é uma garota legal.
– Não tanto assim, confia em mim. Ela é legal às vezes, tipo... Nas horas que ela dorme e etc. – Não consegui achar graça na minha ironia. – É, ela é legal... Sei disso porque conheço ela há uns 15 anos.
– Eu juro que não sabia que ela era sua irmã.
– Isso teria mudado alguma coisa?
– Você não faz ideia. – ele olhou na direção oposta que eu. Ficamos por alguns minutos em silêncio. Compartilhando uma i********e que não deveria existir.
– Não devíamos estar tendo essa conversa. – suspirei. Era estranho, bizarro, irreal, errado, íntimo demais. Esse momento não devia estar acontecendo, não dessa forma. Porque isso já havia acontecido tantas vezes há um bom tempo atrás. Nós dois em um banco, sentados, olhando um para o outro esperando que todas as respostas viessem com um olhar. Antigamente seria com um beijo. O mundo faria sentido quando eu me afogasse no mar dourado de seus olhos, minhas angústias e inseguranças afogadas em um sorriso aberto e aconchegante, fazendo par com seu abraço. Mas agora... O sentido era que éramos dois estranhos que se conheciam bem demais. E não devia ser assim. Não quando ele era meu novo cunhado. Não quando os olhos da minha irmã, que mesmo não tão íntima ou amiga, brilhavam tanto ao mencionarem o nome dele. Como se ele fosse o presente mais bonito, mais desejado e amado. Definitivamente, não devia ser assim. Cravei minhas unhas recém-cortadas na capa do meu velho livro. – Quer saber... Somos dois desconhecidos. É isso que somos.
– Como? – ele parecia surpreso em ouvir a minha voz.
– Você não me conhece, eu não te conheço. Acredite nisso, que todos os outros acreditarão. – proclamei, rindo de mim mesma.