Por fora da caixa

1011 Words
"Não permita-se amar, minha querida. Pois dentre todos os seus defeitos, o mais fatal seria entregar-se ao amor." Essas eram as palavras que minha mãe me sussurrava todas as noites antes de eu adormecer. Mesmo sendo muito pequena, essas palavras ficaram gravadas em mim como um lembrete constante. Enquanto outras mães murmuravam um simples "boa noite, minha filha querida" ou cantavam canções de ninar, a minha mãe tinha o hábito de me confrontar com a dura realidade do mundo em que vivíamos, um mundo antigo e implacável. Eu não lembro do seu rosto, ou das roupas que ela costumava usar, mas essas duras palavras eu nunca fui capaz de esquecer. O Halloween nunca foi uma festa que eu apreciei, e, para o meu azar, hoje era o Dia das Bruxas. O que tinha demais em sair batendo de porta em porta, gritando: — Doces ou travessuras, srta. Morgan? Tanto faz. Afinal, onde eu morava, tais alegrias eram proibidas. Nada era permitido nesse lugar sombrio. Um som ressoou suavemente, tirando-me dos meus devaneios. Christian estava ali, com um sorriso bobo estampado no rosto e um olhar despreocupado. — Tudo bem, Isabel? Ou Bel? Ou Isa? Como preferir. — Isabel está bom. — respondi. — Tá bom. — ele concordou, convencido. — Posso te fazer uma pergunta? Assenti com a cabeça. — Há quanto tempo está aqui? Meu olhar despencou, eu não fazia a mínima ideia. — Ninguém te contou? Ele negou, mas eu não acreditei. — Não te passaram uma ficha? — Sim, mas alguns arquivos estavam faltando. Não consegui encontrar quando você deu entrada e ninguém aqui parece disposto a me dizer. Aquiesci. — Acho que... — pausei para contar — uns nove anos, sei lá. — É bastante tempo. — O tempo passa diferente nesse lugar. — Tem 16 anos, certo? Uma vida inteira pela frente. — Vida? — soltei um sorriso irônico. — Chama isso de vida? Ele permaneceu em silêncio. — Me desculpe, mas é ridículo. O que diabos veio fazer aqui? Cuidar de uma louca incapacitada é que não foi. — desabafei, e me arrependi no mesmo instante. — Sinto muito se essa não é a vida que queria ter. — Esse é o ponto, Christian! Ninguém gostaria de ter uma vida como essa. Sabe a quanto tempo não saio mais? Nem sei mais como são as gramas. — Continuam verdes... — tentou animar-me. Não pude conter um sorriso. — Então você sabe sorrir?! — provocou. — Bom, eu tenho que pegar seus remédios na enfermaria, mas voltarei logo, preciso me certificar que ficará bem. — Acho que já falei demais. Não precisa voltar hoje, doutor. Eu vi quando os olhos dele perderam um pouco de brilho. Ele não voltou mais naquele dia. E pela primeira vez na vida, eu me senti sozinha. Quando amanheceu, Christian irrompeu meu quarto como um raio. — Levante-se, levante-se! Abro meus olhos e os esfrego para enxergar melhor. — O que você quer? — perguntei, mas fiquei feliz por ele não ter desistido. — Vamos dar um passeio. Meu coração acelerou. — Mas... Christian continuou frenético. — Mas eu não posso sair. Ninguém nunca me tirou daqui. — Mas eu sim. Eu consegui uma licença pra te levar ao jardim botânico que inaugurou aqui perto. É meia hora de viagem e só temos que voltar em duas horas. Dei um pulinho da cama, deixando transparecer minha felicidade. — Sério? Você não está mesmo brincando? — Sim! Vamos, vire-se, deixe eu dar um jeito no seu cabelo. Ele passou as mãos pelos meus fios dourados e conseguiu domá-los com um elástico. Entramos no carro. Pela janela do carro, meus olhos fixaram-se nas nuvens que flutuavam no céu. Ah, as nuvens. Para mim, que há quase nove anos não experimentava o mundo lá fora, elas eram mais do que simples massas vaporosas. Eram como pedaços do céu que há muito tempo eu só conseguia imaginar. Desenhar em meus pensamentos. O céu, que sempre pareceu distante, uma visão que só existia nos livros ou nas histórias que as enfermeiras contavam para tentar colorir os meus dias cinzentos. As nuvens, antes apenas formas abstratas, agora ganhavam vida diante dos meus olhos. Não eram mais apenas fumaça. Eram fragmentos do desconhecido, pincelando o firmamento com tons de liberdade que eu m*l lembrava. Como seria caminhar sob elas, sentir o toque suave do vento que as moldava? Enquanto o carro avançava, minha imaginação voava ainda mais alto. A cada quilômetro percorrido, uma nova paisagem se desenhava diante de mim. Eu m*l podia acreditar que, finalmente, estava rompendo as barreiras que me prenderam por tanto tempo. As nuvens eram como mensageiras, sussurrando histórias de lugares que eu só conhecia através das palavras. Era como se, ao observá-las, eu pudesse sentir o pulsar da vida que há tanto tempo me fora n****o. Talvez, só talvez, o mundo lá fora não fosse tão sombrio quanto eu imaginava. A esperança começava a se insinuar em meu coração, e as nuvens, antes vistas como mera fumaça, tornavam-se símbolos de uma promessa que há muito eu ansiava cumprir. A viagem levou bem exatos 28 minutos, que eu com prazer cronometrei em pensamento. Em um piscar de olhos, estávamos lá. O aroma das flores era tão intenso que já podia senti-lo de longe. — Venha, entre. Enquanto adentrávamos o jardim botânico, meus olhos se fixaram nas extensas áreas de grama que se estendiam à minha frente. Aquela visão era como uma revelação há muito esquecida, pois eu m*l me recordava da última vez que estive em contato com a maciez verde das gramas. O toque delicado sob meus pés parecia um lembrete gentil de uma realidade que havia sido subtraída de mim por anos a fio. Cada lâmina de grama era um convite ao renascimento, um pequeno pedaço da natureza que eu havia esquecido como era. De repente, a monotonia de meu confinamento deu lugar à frescura da relva, e a sensação reconfortante sob meus pés fez-me questionar por que algo tão simples e sublime havia estado ausente de minha vida por tanto tempo.
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