Capítulo 1
Capítulo 1
BIANCA NARRANDO
Eu já devia estar acostumada com essas subidas aqui do morro, mas cada passo parecia mais pesado do que o outro. Não era pelo calor ou pelo cansaço, apesar do sol estar mais forte do que nunca hoje, até porque no Rio de Janeiro é assim mesmo, é um sol para cada pessoa, então o cansaço não era pelo calor, mas porque a cada degrau que eu subia, meu coração parecia bater mais rápido. Não era medo. Tá bom, talvez um pouco. Mas eu me recusava a deixar isso transparecer. Se tinha uma coisa que aprendi na vida, era que fraqueza nunca podia ser mostrada, ainda mais pra quem manda.
Cheguei ao topo e parei, só pra respirar e dar uma olhada ao redor. O morro do Juramento tinha aquela energia caótica de sempre — crianças correndo, motos passando voando, música alta saindo de algum lugar, e olhares. Sempre tinha alguém te olhando. E hoje, esses olhares pareciam perfurar.
Dois vapores me encararam de cara feia quando passei por eles. Um tava com um cigarro no canto da boca e a mão no cabo de uma arma, como quem quer lembrar que tá no comando. O outro simplesmente sorriu daquele jeito debochado que me dava vontade de virar as costas e mandar todo mundo pro infernö.
XXX — Ele tá lá dentro. Boa sorte, garota. — O sorriso sarcástico dele era quase irritante.
“Boa sorte”. Como se eu fosse precisar. Ajeitei a mochila nas costas, respirei fundo e fui.
Por fora, parecia só mais uma casa simples como qualquer outra no morro. Mas, assim que eu entrei, deu pra perceber que não era nada disso. O cheiro de cigarro misturado com bebida e o barulho da TV enchiam o ambiente. Tinha uns caras jogando conversa fora no canto e uma mulher sentada no braço do sofá, quase em cima do cara que eu sabia que era ele: Piloto.
Lá estava ele. Relaxado, como se o mundo inteiro girasse ao redor dele. A TV tava ligada num jogo qualquer, mas ele nem parecia prestar atenção. Era como se tudo ao redor fosse só um detalhe. A mulher ao lado dele? Praticamente implorando por atenção, ajustando o decote e se inclinando cada vez mais pra perto.
Jacaré — Renato… — começou um cara que estava de pé ao lado do sofá, o famoso Jacaré.
Mas ele nem deixou o cara terminar.
Piloto — Não me chama assim, filho da putä, tá chapando? . — A voz era baixa, mas tinha algo nela que fez o ambiente todo congelär.
Eu sabia que não podia ficar ali parada esperando que alguém me notasse. Não era assim que eu funcionava. Dei um passo à frente, endireitei os ombros e fui direto ao ponto.
Bianca — Com licença. Preciso falar com você.
Finalmente, ele desviou os olhos da TV e olhou pra mim. Foi como se ele tivesse apertado um botão invisível, porque todo mundo ao redor ficou quieto. O sorriso da mulher sumiu, e ela levantou, murmurando algo antes de sair.
Piloto — Quem é você? — Ele perguntou, com um tom que deixava claro que não tava nem um pouco interessado na resposta.
Bianca — Bianca. Vou começar meu estágio aqui no morro. Quero sua autorização.
O silêncio que veio depois foi quase constrangedor. Jacaré soltou um assobio baixo, tipo “essa garota tem coragem”. Já Piloto… Bom, ele só ergueu uma sobrancelha, como se eu tivesse contado a piada mais absurda do mundo.
Piloto — Você quer… o quê? — Ele repetiu, como se não tivesse acreditado no que eu disse.
Bianca — Sua autorização, não sou moradora do morro, então preciso que você me autorize. — repeti, cruzando os braços.
Ele riu. Não um riso normal, mas aquele tipo de riso que faz o estômago dar um nó.
Piloto — Garota, você acha que tá falando com quem? — Ele inclinou o corpo pra frente, apoiando os cotovelos nos joelhos, os olhos fixos nos meus.
Eu não recuei. Não ia dar esse gostinho pra ele.
Bianca — Com alguém que tem o poder de me impedir, mas que deveria querer ajudar quem tá tentando fazer alguma diferença aqui. — Minha voz saiu firme, graças a Deus.
Ele ficou me olhando por um momento, como se estivesse tentando decidir se eu era corajosa ou só idiotä. Jacaré deu um passo pra frente, provavelmente achando que ia precisar me salvar.
Piloto — Escuta aqui, Bianca. — Ele disse meu nome devagar, como se quisesse gravar cada sílaba. — Não faço caridade. Não gosto de gente folgada e, principalmente, não gosto de quem acha que manda aqui. Então, se você quer trabalhar no meu morro, vai ter que entender que as coisas funcionam do meu jeito.
Bianca — Não quero seu jeito, só sua autorização — rebati, sem piscar.
A risada dele dessa vez foi curta, quase sem humor. Ele se levantou, e naquele instante eu percebi o quanto ele era mais alto que eu.
Piloto — Quer saber? Você é abusadä pra cäralho! Não vai ter autorização porrä nenhuma e mete o pé antes que eu me estresse mais com você filha da putä! — Ele fala nitidamente nervoso e eu me arrependo de ter falado sem pensar a primeira coisa que veio na minha cabeça.
Jacaré - Piloto, calma, a escola do morro tá precisando de professoras e estagiários, da uma chance pra mina, ela vai se comportar, se ela não se comportar a gente mete bala, poucas idéias. Tenho certeza que ela entendeu né gata?
Bianca - Sim.
Piloto — Tá avisada. Se fizer qualquer gracinha, tá fora. E, fora, eu quero dizer que não pisa mais aqui. E dependendo da gracinha sai daqui igual peneira. Entendeu?
Bianca — Entendido.
Me virei e saí, tentando não parecer apressada. Sentia os olhos dele queimando nas minhas costas. Quando passei pela porta, ouvi o Jacaré falando algo baixo, mas não consegui entender.
Depois, ele disse mais alto:
Jacaré — Ela já morou aqui. Você não lembra dela?
Não consegui ouvir a resposta, mas alguma coisa me dizia que aquela conversa ainda não tinha acabado.