Cinco
Milena
Mais cedo estive conversando com uma amiga, ela me disse que o escritório onde a tia dela trabalhava estava à procura de secretária já que em breve ela iria se aposentar. Letícia, minha amiga disse que sua tia estaria à minha espera hoje, depois do almoço. Ok, tudo bem, eu não tinha graduação, experiência, mas também não era nenhuma ignorante, falava inglês e italiano fluentemente, sempre fui super didática e inteligente. Nada me impedia de me tornar uma boa profissional. O medo existia, é claro, mas a confiança de que a vaga seria minha era muito maior.
Quando cheguei no prédio imponente com a decoração contemporânea deslumbrante onde pessoas desfilavam seus looks sociais saindo do elevador e passando pela recepção senti um leve frio na barriga, mas respirei fundo mantendo a calma e segui para até a recepcionista.
— Boa tarde! Vim falar com a senhora Matilde, por favor.
— Boa tarde, Matilde, de onde?
— De onde?
— Aqui é um prédio comercial, senhorita, temos vários escritórios, empresas...
— Entendi... — Na verdade, fiquei completamente paralisada, como assim a Letícia só me passou o endereço do prédio e não me passou o nome do lugar onde estava procurando uma vaga de emprego? — Só um momento, eu vou ligar para a minha amiga me informar melhor.
— Tudo bem, mas aqui no prédio tem uma Matilde muito conhecida, a da Tia Cleide que trabalha com o André Matos.
— Quê? — Engoli em seco, em choque, meu coração se transformando numa batucada, ao mesmo tempo, que o meu celular deslizava entre meus dedos indo de encontro ao chão. — André Matos?
— Sim, ele é o CEO e fundador da Bolos da Tia Cleide. Não é esse escritório que você está procurando?
— Eu realmente não tenho certeza, preciso falar com minha amiga.
Abaixei e peguei o celular de volta, Letícia já estava na linha. Ela era tão fora da casinha que não duvido nada que tivesse armado essa situação.
Eu sabia que André tinha dado a volta por cima, estava ciente do quanto aqueles brownies simplezinhos que ele vendia pelos transportes públicos havia crescido. Por muito tempo acompanhei cada um de seus passos, tanto profissionais quanto pessoais, mas chegou um momento que vi a necessidade de seguir com a minha vida, assim como ele estava fazendo, até porque nos separamos por uma decisão minha, não havia motivos para que eu ficasse “secando” ele de outro continente. Precisei engolir a realidade, tive que aprender a lidar com a dor de abrir mão de um grande amor e, mesmo que a imagem do seu rosto fosse a primeira a invadir minha cabeça nos momentos mais dolorosos do meu casamento, acabei me conformando. Doía quase como se sangrasse, era impossível não ficar imaginando o quanto tudo teria sido diferente se eu tivesse colocado nós dois em primeiro lugar. Mas, agora era tarde demais para lamentar. 14 anos não são 14 dias. Agora éramos adultos, tínhamos compromissos e responsabilidades distintas, o que tivemos ficou lá no passado e não passou de uma paixão adolescente.
— Fala amiga!
— Que loucura é essa, Lê? A sua tia trabalha junto com o André!
Rapidamente ela me interrompeu:
— E daí? Não vejo problema, eu não sei se você percebeu, mas já se passaram mais de 14 anos, o André já viveu tanta coisa em meio a esse tempo que ele nem deve lembrar mais de você.
Ele nem deve lembrar mais de você...
Essa frase foi o suficiente para um nó se formar em meu peito. Impossível. Depois de tudo que a gente viveu, não tinha como ele não se lembrar. Porque mesmo depois de tanto tempo eu continuava pensando nele todos os dias, tivemos uma história, o que vivemos não foi por ego, dinheiro ou mentiras. Nós nos amávamos, ele marcou a minha vida e não podia simplesmente apagar tudo que sentimos.
Engoli em seco, irritada.
— Você sabe que não é simples assim...
— É sim! Você que complica! Você precisa consertar isso, amiga, não faz sentido passar o resto da sua vida vivendo uma mentira!
— É porque não é você que está aqui. Se estivesse no meu lugar provavelmente também não conseguiria.
— Escuta, eu entendo sua situação, mas se você não tiver coragem de falar com a minha tia vai ser bem difícil conseguir uma oportunidade dessas, ainda mais na base do “QI”. Esqueça o que vocês viveram e pelo menos tenta a d***a desse emprego.
— Não. Isso é uma loucura, não posso. — Desliguei o telefone, não tinha mais nada para ouvir, na verdade, eu não tinha nem que estar ali.
Quando me dei conta, meus olhos já estavam inundados de lágrimas só por imaginar que naquele exato momento estávamos no mesmo edifício. Com certeza ele se lembrava de mim, e com certeza essas lembranças não eram boas. Ele devia me odiar. Devia me ver como a pior coisa que aconteceu na sua vida.
Arrasada dei as costas para a recepção e segui a passos largos na direção da saída, o celular que havia acabado de guardar dentro da bolsa não parava de tocar, mas eu estava péssima, me sentindo uma pessoa h******l, não tinha condições de conversar agora, mas, acabei o pegando de volta para pedir o Uber. Para minha surpresa o número que estava ligando era desconhecido, então minha curiosidade falou mais alto e acabei atendendo.
— Só assim para conseguir falar com você, minha querida esposa.
— Vicente...
— É assim que me agradece depois de tudo que fiz por você e sua família...
— Não quero falar sobre isso! Se você leu a mensagem que te mandei mais cedo deve estar ciente do porque não dá mais pra gente continuar. Na verdade, não era necessário uma carta. Você é c***l, egoísta, falso, traidor... Se eu ficasse aqui listando seus defeitos, Vicente, levaria uma vida inteira.
— Você é perfeita, não é?
— Não. Não sou. Mas tenho certeza de que eu mereço ficar livre de você. Acabou. Ainda nessa semana darei entrada no divórcio.
— As coisas não funcionam dessa maneira, temos um filho ou você se esqueceu disso?
— Esqueça o meu filho! Já se foi uma década, você já conseguiu tudo que queria comigo!
— Não, Mile, eu ainda quero muito mais de você, vou querer sempre porque você é minha mulher.
— Era! Esqueça essa sua obsessão por mim! Vai procurar outra novinha! Me deixa em paz! — Desliguei o celular nervosa e ao mesmo tempo reflexiva. Vicente era capaz de tudo, a prova disso era o fato de termos nos casado e ficado juntos por 14 anos. Ele tinha minha família nas mãos. Vivendo lá naquele apartamento, dependendo do dinheiro dele, tecnicamente eu também estaria dependendo dele. Eu precisava de dinheiro com urgência, eu precisava desse emprego independente do que estivesse à minha espera.
Eu já perdi tempo demais por medo.
Chegou a hora de encarar a vida e lidar com as consequências dos meus erros.
Voltei a conversar com a recepcionista e logo fui liberada para subir.
A cada piso acima eu tremia, era como se uma avalanche estivesse se formando dentro de mim. Definitivamente eu não estava preparada para estar ali, muito menos diante dele. Temia que meu nervosismo fosse me prejudicar durante a entrevista com a tia da Lê, como se já não bastasse minha falta de experiência. Era tanta pressão que eu sentia meus batimentos descompassar.
Quando finalmente cheguei à recepção do escritório da Bolos da Tia Cleide precisei lidar com mais ansiedade misturada a um sentimento de culpa, angústia, mas ao mesmo tempo de admiração. Como aquilo era grande, a ponto de ser impressionante. Quem diria que aquele menino bolsista que conheci vendendo brownies em um ônibus lotado era o dono de tudo isso aqui. Naquela época, conheci sua casa, muito simples e humilde, acompanhei as suas batalhas para conseguir estudar e trabalhar ao mesmo tempo, tudo isso enquanto lidava com sarcasmos e preconceitos... Ele conseguiu. Admirada, me emocionei enquanto decidia se iria entrar ou não.
No final das contas respirei fundo seguindo até o balcão onde ficava uma recepcionista de cabelos curtos.
— Boa tarde! Fui informada que a senhorita Matilde está à minha espera. — A recepcionista me fitou de cima a baixo e perguntou:
— Boa tarde. Você é a Milena Junqueira?
— Ela mesma.
— Aguarde, só um momento, por favor. Enquanto ela não chega fique à vontade, pode se sentar e aproveitar dos nossos aperitivos. — Ela apontou para um banco com almofadas de couro ao lado de uma mesa que havia alguns mini pacotes de biscoito, do lado uma garrafa de café. Agradeci, mas ignorei os aperitivos me concentrando apenas em aguardar a entrevista, ansiosa demais.
— Boa tarde, Ana, a Matilde já chegou do almoço? — Estava distraída quando aquela voz grossa invadiu meus tímpanos alquebrando toda minha estrutura, por alguns segundos perdi a capacidade de respirar.
— Não senhor, André, inclusive essa moça está esperando por ela para uma entrevista.
Até aquele minuto estava com medo de erguer a cabeça e olhar para ele de tão perto, depois de tantos anos, mas, foi mais forte que eu. Meus olhos foram na sua direção, ao encontro dos seus. Engoli em seco, sentindo minhas mãos trêmulas e meu coração pulsar dolorosamente como se a qualquer momento fosse arrombar o meu peito. Ele estava tão diferente... Mais alto, robusto, ombros largos, que o deixavam lindo como um modelo dentro daquela calça e camisa social. Seu rosto também havia mudado, nada de espinhas, no lugar delas uma barba que emoldurava a mandíbula quadrada, máscula, e os lábios carnudos que me tiravam de órbita. Seu olhar era o mesmo, impositor e misterioso.
Sem conseguir me conter fiquei de pé, desorientada, sem saber o que fazer. Minha vontade era me jogar de joelhos aos seus pés e pedir perdão por tudo, mas, eu sabia que não seria tão simples...
— André... — Uma lágrima ousou a cair do meu olho, enquanto ele me fitava como se eu fosse um fantasma.