Três
Gabi
— Nunca mais faça isso Malu! Quando eu disser para você não pegar as coisas da mão dos outros, você não pega! — Minha cabeça estava prestes a explodir e a cada passo que trocava pela calçada sentia meu coração bater mais forte, como se estivesse galopando dentro do meu peito.
Droga! Será que a essa hora a polícia já estava me procurando? Será que já havia cartazes estampados com minha foto espalhados por Araruama? Com certeza hoje à tarde meu rosto iria aparecer no Cidade Alerta e, por Deus, eu ainda não estava pronta para essa vida de foragida.
— Mas ele foi bonzinho comigo — Malu resmungou estreitando os olhinhos.
— Você é uma criança, qualquer um vai ser ou pelo menos vai fingir ser bonzinho com você. Quantas vezes tenho que te falar para não dar confiança para estranhos? Sem contar que aquele homem é o exemplo perfeito do lobo na pele de cordeiro, nunca vi tão cínico e dissimulado. Ele me assediou, depois ficou lá pagando de bom samaritano. Até dinheiro para dormir comigo o safado ofereceu.
— Desculpe mana, eu não queria te deixar bava.
— Eu não estou brava.
— Tá, sim!
Revirei os olhos já farta daquilo. Eu não estava brava. Estava nervosa. Nervosa como nunca me senti em nenhum outro dia. Droga! Como se não bastasse a furada que me meti ao esfaquear aquele bandido, eu ainda tive que esbarrar naquele playboy metido a fodão. Haja paciência com esses caras que tem grana. Eles acham que podem tudo. O que não é uma mentira já que aqui nesse país quem tem dinheiro faz o que quiser e, poucas são as vezes que dá em alguma coisa. Agora, olhando por outro lado eu nunca estive diante de um homem tão atraente. Ele era daqueles que exalava pecado e luxúria. Alto, magro, mas com o corpo definido na medida certa, os olhos negros marcados por sobrancelhas grossas eram intensos, penetrantes. Fatal. A ponto de desestabilizar uma pessoa, da mesma maneira que ele fez comigo nos primeiros segundos que nossos olhares se encontraram. Ele me sugou para sua escuridão e ali eu fiquei imersa por longos segundos, até perder de vez a noção do tempo e me deixar levar pelas sensações que invadiram meu corpo e causaram um tremendo devaneio. Ainda consigo sentir meu coração pulsando dolorosamente. Aquele nariz arrogante, com o queixo empinado era a moldura perfeita para os lábios pequenos e rosados, o cabelo liso penteado para trás...
— Gabi! — Ouvir meu nome foi como levar uma facada pelas costas, involuntariamente parei de andar e apertei Malu nos braços. — Pô Gabi, tu tá sumida! Você ainda tá trabalhando com a Lourdes?
Respirei fundo, me aliviando enquanto girava o pescoço para trás e dava de cara com Erick, meu ex-colega de classe. Ele estava atrás de uma banca improvisada de papelão coberta de choquitos e, outros doces calóricos.
— Erick, virou camelô agora?
— Pô, virei sim, já vai fazer um ano. Também larguei a escola pra correr atrás de grana, mas e aí, você tá fazendo o quê de rolê aqui em Nikit?
Saí do meio da calçada movimentada onde a cada segundo pelo menos duas pessoas esbarravam em mim e na Malu. Fui para trás da bancada do Erick e só quando me escorei numa parede me dei conta do quanto estava exausta, esgotada.
— Bom... — Tentei pensar em alguma coisa, mas as palavras não vinham. — Eu tô entregando currículos! — Coloquei um sorriso forçado nos lábios, mas murchei quando meu colega me fitou de cima abaixo com um olhar nada empolgante.
— Na moral, suja assim vai ser difícil tu arrumar um trabalho que não seja num açougue ou numa peixaria.
Nós rimos.
— Eu não tô dispensando nada. Porém, estou com um problema, eu preciso encontrar uma quitinete ou um barraco qualquer aqui para morar, você sabe que ninguém vai querer pagar duas passagens de Niterói para Araruama todos os dias.
— Isso é verdade.
— Você conhece algum lugar?
— Aqui no centro? Tu tá doida Gabi, aqui é o olho da cara. Mas eu posso olhar algum lugar lá no Caramujo, onde eu tô morando agora. Se eu não me engano tinha uma casa alugando na minha rua.
— Que maravilha! Tem como você falar com o dono pra mim?
— Claro, quando eu chegar do trabalho falo com ele.
— Ai droga, não pode ser agora?
— Não, agora não dá, eu tô trampando... Vem cá Gabi, tô te achando meio estranha, afobada...
— Eu? — Engoli em seco ao perceber que meu amigo estava desconfiando de alguma coisa. Me pus a acariciar os fios encaracolados de Malu, enquanto ela cochilava nos meus braços, numa tentativa de ficar um pouco mais calma.
Foi nesse pequeno momento de distração que inesperadamente, sem nenhum aviso prévio, meu colega e os outros camelôs que trabalhavam ao seu lado guardaram as mercadorias e desmontaram as bancadas improvisadas rapidamente. Num piscar de olhos mesmo.
— O Rapa!
— O Rapa!
Quem era esse tal de rapa?
Tive uma resposta assim que olhei para trás e vi os guardas que me pararam anteriormente vindo na direção dos camelôs. Aliás, na minha direção. Bastou que eu piscasse os olhos para que todos eles evaporassem sem deixar nenhum vestígio. Nem mesmo Erick que era meu amigo deixou algum sinal de vida.
Droga!
A primeira ideia que passou pela minha cabeça foi entrar na loja de sapatos as minhas costas. Ali fiquei, namorando as promoções enquanto os guardas rodavam a calçada a procura dos camelôs. Eu não era uma camelô, mas diante de tudo que aconteceu em plena manhã fiquei arisca, ciente de que a sorte não estava do meu lado e que hoje estava longe de ser o melhor dia para que eu me arriscasse em algo.
Enquanto olhava a vitrine uma sandália rasteira despertou minha atenção por dois motivos: Beleza e preço. Ela era perfeita, do tipo BBB (Bom, Bonito e Barato) e eu não esperei muito para avançar na sua direção, foi quando minha mão se chocou com a de outra pessoa. Rapidamente encolhi meus dedos, envergonhada pelas unhas descascadas do lado da mulher que usava acrigel e tinha as unhas longas pintadas impecavelmente de vermelho.
— Amada desculpe! Peço perdão!
— Imagina, que isso, pode ficar, eu nem tô podendo gastar.
— Então estamos kits, porque eu também não estou podendo. — Quando ela inclinou a cabeça e olhou para mim me surpreendi. Estava explícito que não se tratava de uma mulher, era um homem. Um travesti. — Sem contar que eu calço 42, isso aqui nunca iria caber no meu pé. Mas eu já me acostumei com isso, raramente encontro alguma coisa nessas lojas.
— Realmente, 42 feminino deve ser muito difícil de encontrar.
Ela me fitou de cima a baixo e não demorou para dizer:
— Essa menina linda no seu colo é sua filha? — perguntou empolgada, levando sua mão enfeitada com várias pulseiras coloridas à cabeça da minha irmã onde se pôs a acariciar seus cachinhos. — Que cabelo lindo! Ah, desculpe, acordei a menina, é que eu sou cabeleireira e não posso ver um cabelo assim.
— Ela é minha irmã e, você fez bem em acordá-la, meus braços já estavam dormentes de tanto carregar essa bolinha.
Coloquei Malu no chão e estiquei meus braços sentindo um enorme alívio.
— Eu não sou uma bolinha! — Malu exclamou esfregando os olhos.
— Não é mesmo, você é a coisa mais fofa que eu já vi.
— Quem é voxê?
— Eu sou Michelle, e você meu bem?
— Malia Luíza, mas pode me chamar de Malu. E eu tenho 4 aninhos — ela disse fazendo o quatro com uma das mãos.
— Ah, que fofa. — Michelle ficou um bom tempo fitando minha irmã como se estivesse encantada com ela.
— Desculpe, não liga pra minha irmã, ela é pra frente assim mesmo.
— Imagina, sua irmãzinha é um amor.
— Obrigada, você também é muito simpática, a propósito eu não me apresentei. Meu nome é Gabriela.
— Prazer, Gabriela, como você deve ter ouvido meu nome é Michelle, mas quando estou sem essa make e essa peruca mara, eu sou o Jurandir — ela disse sorrindo, jogando a peruca volumosa para trás. Michelle era bastante alta, era meio gordinha, mas tinha um corpo proporcional a seu tamanho. Olhos castanhos marcados por sobrancelhas expressivas, nariz acentuado e os lábios carnudos pintados de um vermelho rubi intenso deixava seu rosto um tanto chamativo para aquela manhã. — Parece que não é só sua irmã que está com sono?
— Nem me fale... Faz praticamente um dia que não durmo e, sinceramente nem sei quando isso vai acontecer... — Coloquei a mão na boca para conter o meu bocejo. — A essa altura as olheiras já devem ter tomado conta dos meu olhos.
— Não vou negar, mas por que você não descansa amada, tá fazendo o que aqui no centro a essa hora, sem dormir?
— É que... tô procurando algum lugar para alugar, eu... fui despejada de casa... — falei a primeira coisa que veio na minha cabeça torcendo para que ela não fizesse mais perguntas.
— Não brinca. — Ela arregalou os olhos escuros marcados por uma sombra azul. — Sendo assim, eu acho que posso te ajudar. No prédio onde eu moro eles alugam quartos.
— Obrigada, mas, o dinheiro que eu tenho aqui é bem pouquinho...
Michelle me cortou.
— Não se preocupe amada, lá é justamente para quem tem pouco dinheiro mesmo, não é à toa que eu moro lá. A diária dos quartos é super em conta.
— É mesmo?
— Sim.
— Bom, sendo assim, eu vou me arriscar.
Me arriscar mesmo.
Meu desespero era tanto que comecei a acompanhar uma travesti que havia acabado de conhecer para um lugar da qual eu não fazia a mínima ideia de onde era e como funcionava. Mas só dela ter dito que o local era super em conta foi o suficiente para despertar meu interesse. Me deixei guiar pela coragem, pelo desespero que afligia meu âmago e minha vontade insana de tirar pelo menos uma hora de sono. Andamos por 15 minutos, quando viramos à esquina Michelle apontou para um prédio enorme localizado ao lado da Caixa Econômica Federal. Para um lugar em conta, a estrutura do prédio era bastante atrativa, na verdade, ele não era muito diferente dos outros edifícios localizados naquela mesma avenida. Meu coração doeu quando o síndico do prédio me informou que os quartos mais em conta para alugar custam 25 reais a diária, era caro se eu levasse em conta que em apenas 9 dias eu não teria mais um único tostão na carteira, mas, pelo menos por hoje iria me dar o luxo de ficar ali para que eu e Malu pudéssemos descansar um pouco.
Paguei pelo quarto que ficava localizado no quinto andar do prédio. Ele era estreito, o espaço que havia nele em sua maior parte era ocupado por uma cama de casal que ficava em frente a uma janela que dava vista para uma longa, movimentada e barulhenta avenida. Felizmente havia um banheiro e, a primeira coisa que fiz assim que colocamos os pés ali dentro foi me enfiar debaixo do chuveiro junto com Malu. Levei algum tempo debaixo da água morna, na expectativa que ela lavasse de mim toda negatividade que resolveu se impregnar no meu corpo, em minha alma. Alguma coisa estava errada comigo, com tudo em mim.
Eu não era uma pessoa r**m. Eu não era uma assassina.
Porém, toda vez que olhava para minhas mãos enxergava sangue vermelho e vívido entre meus dedos e, consequentemente o momento em que cravei a faca nas costas daquele homem vinha à tona, fazendo um rebuliço, bagunçando, tirando de órbita todos os meus pensamentos. Meus batimentos estavam lentos, passando de forma dolorosa pelas minhas veias. As lágrimas vieram sem minha permissão, mas logo se fundiram as gotículas que caía em abundância da ducha.
— Gabi, voxê tá bem?
— Tô sim meu amor...
Na verdade, eu nunca tinha me sentido tão m*l como estava me sentindo agora, a sensação de tirar a vida de outra pessoa por pior que ela tenha sido era horrível e, agora pesava toneladas sobre meus ombros.