Estamos cansados, andamos pelo mato há muito tempo. Sorte a lua cheia ter nos proporcionado luz o suficiente para enxergarmos no escuro.
Como o nosso sangue é diferente do dos amareles, o nosso suor tem um cheiro diferente, o nosso odor também, o deles é mais azedo, como vinagre passado da validade. Como disse, o olfato deles é mais apurado, eles sentem o nosso cheiro a metros de distância. Nesse caso, toda vez que estamos andando, temos que nos perfumar, pois, foi comprovado que eles perdem o interesse em comer algo muito cheiroso, até porque o seu paladar é apurado também, o que tornou a v*****e deles de comer uma coisa insana. Contudo, as fábricas de perfume fecharam, senão, para se livrar de ser mordido era só tomar um banho.
Estamos em silêncio e no escuro, apenas o Jordan que dá umas tapas na própria perna. Adam ordena que ele pare de fazer barulho, mas é que os mosquitos o picam sem parar, é o único que está com a maior parte do corpo exposta. Jordan para de estapear as pernas, mas o frio dá noite o faz se extremecer e podemos ouvir ele resmungar, fora o seu dedo estar cortado, o que é um problema, o sangue é como o molho do macarrão, ou seja, a melhor parte desta comida.
— Prego — sussurra Estêvão para mim.
— Oi — respondo.
— Por que você não usou a sua faca naquela amarele?
A pergunta de Estêvão me pega de surpresa. Nem eu mesmo sei direito o que aconteceu, estava tão assustado. Eu matei meu primeiro amarele com 14 anos, com 15 matei o segundo e agora com 16 fiquei com medo, mas, no fundo, eu sei o que aconteceu.
— Não consegui. Ela lembrou a minha vó, mãe do nosso pai.
— Qual parte? A falta do dente ou a v*****e de comer carne sem poder?
Nós dois rimos de maneira abafada, e ele continua:
— Agora é sério, Prego, você precisa focar. Não são seres humanos, nem sentem dor, você precisa entender que a sua vida está em primeiro lugar. Digamos que eu sou infectado sem saber, agora estou na sua frente e tenho dentes...
— Não fala isso... — tento repreendê-lo, mas ele me interrompe.
— É uma possibilidade, e você terá que me m***r. Pegue a sua faca e me acerte no olho ou na têmpora, o meu cérebro precisa ser desligado, senão eu não vou parar enquanto não arrancar um pedaço da sua carne com a boca, daqui até lá os meus ossos estarão mais fortes, eu terei a minha força melhorada e você não poderá lutar contra mim.
Eu faço silêncio, não digo nada, apenas quero esquecer a ideia de ver o meu precioso irmão se transformar num amarele.
— Eu jamais te mataria — digo, e se eu pudesse enxergar direito, veria a decepção nos olhos dele.
— Prego... — ele está prestes a me dar outro sermão, mas Adam pede que ele faça silêncio, e todos paramos.
Parece que ele viu alguma coisa. De todos, ele é o que enxerga melhor. Estamos parados no meio do mato, tudo o que percebo são árvores e arbustos.
— Gente, vou ter que usar a lanterna — sussurra Adam.
Eu estou com tanto medo, nunca senti desta maneira antes. Talvez, a ausência do meu pai me trouxe insegurança, e assim que penso nele, os meus olhos se enchem de lágrimas.
Adam liga a lanterna e aponta para todos os lados daquele lugar, sempre com a luz voltada para o chão, e nós acompanhamos a luz, estamos prontos para enfrentar qualquer amarele, vamos lutar até a morte.
— Adam, o que foi? — pergunta Estêvão.
— Parece que tá tudo tranquilo aqui, não tem perigo — ele aponta a lanterna para os nossos rostos. — Tá todo mundo bem?
— Ai! — reclama Lucas.
— Sim, meu filho — resmunga Túlio. — Já pode tirar essa luz da nossa cara.
Adam fica estático por alguns segundos, eu sei que ele está olhando para mim, eu sei que ele vê o meu rosto molhado. Quando choro, o meu fica completamente lavado, como se eu tivesse mergulhado numa bacia de água.
Ele aponta a lanterna para o chão.
— Muito obrigado, palhaço — diz Estêvão com ironia —, agora os nossos olhos vão demorar para se acostumar com o escuro de novo.
— Foi m*l — diz Adam sério.
Ele deixaria a lanterna ligada, mas é muito arriscado, seríamos como um farol e os amareles como embarcações.
Nós seguimos caminho e eu limpo o rosto imediatamente, Adam me chama para eu acompanhá-lo na "comissão de frente" e me abraça pelo pescoço, como se estivesse me protegendo. Não falamos nada desde então.
***
O sono e o cansaço nos tomam, não podemos mais continuar, temos que parar e ainda é 1:00 hora da madrugada. Andamos sem rumo e precisamos nos situar. A melhor opção é descansar lá mesmo, Túlio trouxe lençóis, forramos o chão e a nós mesmos, bem juntinhos para o calor corporal nos aquecer, o chão está húmido e desconfortável, mas não temos opções.
Há anos que sofremos com a pandemia do Coronaluteum, há anos que lutamos para sobreviver. Tudo o que enfrentarmos para encontrar a possibilidade de ficarmos vivos será mais que bem-vindo.
— Alguém vai ter que ficar de vigia — sugere Adam, mas ninguém responde, realmente estão com muito sono, provavelmente não ficarão sóbrios.
— Eu fico — digo e ninguém protesta por longos segundos, eu sei que querem, sei que obrigariam o Jordan a tomar o posto, desde o acidente, ficaram com mais ranço dele, mas não podemos deixar ninguém para trás, há tão poucos de nós.
Não vamos m***r os últimos humanos que ainda restam no mundo.
— Tem certeza, Prego? — questiona Adam.
Sei que ele quer que eu dê toda a certeza do mundo para ele descansar bem e é isto que vou fazer.
— Você sabe que sim, irmão, eu passo a madrugada em claro sempre, só preciso de um livro e eu tenho cinco aqui — o modo como asseguro faz o meu irmão sorrir de orgulho.
Não é pra tanto, mas eu preciso ajudar, não posso ser sempre o protegido deles, isso me enfraquece, tenho que mostrar a minha força, mesmo sendo pouca.
Todos ficam de acordo e se ajeitam em cima do lençol para dormir, deixam o Jordan isolado por ele está coberto de sangue de amarele e poder sem querer contaminar alguém. Penso que ele sofrerá com a madrugada mas ele dorme pelo cansaço.
O meu espaço está garantido, pego um livro, posiciono a lanterna e a ligo, ela tem um regulado, e começo a ler. Escolho o livro de biologia, por incrível que pareça, fala sobre vírus, fungos e bactérias, essas coisas. Não tenho muitas opções no momento.
Sou instruído a acordar todo mundo se ouvir qualquer barulho suspeito. Mesmo que seja alarme falso, não podemos vacilar um segundo sequer.