Italo
Eu olhava minha pequena Clara por detrás do vidro ouvindo o médico me falar de transplante de medula, e de como eu não, era compatível.
O médico também falou que a mãe da menina poderia ter uma medula compatível, e eu expliquei que a mãe era uma total inútil, naquele estado ela não poderia ajudar ninguém nem ela mesma, aliás, eu não sei se ela está viva, e se Deus quiser morta!
O médico disse que ia colocar o nome dela na lista de doadores que eu tinha que chamar todos os parentes e amigos que podia, porém é uma chance de um milhão.
Passei a mão no telefone ligando para o meu avô, o homem sempre foi um exemplo para mim, quer dizer depois que eu e comi o pão que o d***o amassou com a bu.nda.
Minha avó se apaixonou por um homem, um militar, ela amou aquele homem com todas as forças, porem ele sumiu, como apareceu.
Minha mãe nasceu desse relacionamento, mas isso é um papo para mais tarde, primeiro vou contar como me tornei o homem que sou hoje
Onze anos, essa é a idade em que os sonhos parecem chegar ao fim. Bem, pelo menos foi assim para mim. A minha jornada começou com a simplicidade de uma vida compartilhada com a minha mãe, uma mulher forte e trabalhadora, que desempenhava o papel de empregada doméstica. Ela era o tipo de pessoa que, nos dias de hoje, se tornou quase uma lenda, alguém que começou a trabalhar desde os treze anos, uma época em que as crianças ainda deveriam estar sonhando com o futuro.
A minha mãe trilhou esse caminho porque, afinal, era o que conhecia. A sua mãe, por sua vez, havia sido empregada na mesma casa em que ela trabalhava. Essa tradição de servir passou de geração em geração, e a minha mãe nunca teve a oportunidade de estudar ou aprender a escrever o seu próprio nome. Mesmo assim, ela tinha um trabalho que considerava digno e, de certo modo, até mesmo gratificante.
A vida das empregadas domésticas não era fácil naquela época. Muitas vezes, elas moravam no próprio local de trabalho, em pequenos quartos nos fundos da casa, muitas vezes próximos à cozinha. Essa era a realidade: faziam parte da família, mas não eram realmente consideradas como tal. Era um relacionamento complexo, uma mistura de proximidade e distância.
Assim como qualquer outra mulher, a minha mãe também se apaixonou. No entanto, o destino reservou para ela um encontro que mudaria o curso de sua vida de maneira dolorosa. Ela se apaixonou pelo filho mais velho dos patrões, o que parecia ser o início de um conto de fadas. Mas, na vida real, as histórias nem sempre têm finais felizes. O príncipe encantado nem sempre escolhe a gata borralheira. Ele, eventualmente, se casou com outra mulher e optou por não reconhecer o filho que ela carregava em seu ventre.
Enquanto eu dava os meus primeiros passos e explorava o mundo ao meu redor, meu pai, o Dr. Alberto, teve outro filho, Gabriel, aquele que seria seu herdeiro legítimo. Dois irmãos, nascidos no mesmo tempo, crescendo sob o mesmo teto, mas cada um trilhando um destino distinto.
Essa era a nossa realidade. Eu era o filho da empregada, um título que parecia definir a minha identidade desde o início. Gabriel, por outro lado, tinha o título de filho da patroa, uma posição que o colocava em um pedestal em nossa casa. Uma divisão arbitrária de status que, embora eu não entendesse completamente na época, permeava todos os aspectos das nossas vidas.
Contudo, por trás da fachada imposta pelas normas sociais, havia momentos de conexão genuína. Quando a patroa estava ausente, o meu pai permitia que eu e Gabriel nos sentássemos à mesa principal, compartilhando refeições juntos. Era uma oportunidade fugaz de escapar das amarras invisíveis que nos separavam. Durante esses momentos, éramos apenas dois irmãos, curiosos e ansiosos para explorar o mundo com a mesma ingenuidade.
Havia também noites em que as barreiras eram temporariamente esquecidas. A minha mãe e eu éramos convidados para o quarto principal, e o meu pai dormia ao lado da minha mãe, como uma família unida. Mas esses momentos de proximidade eram efêmeros, como estrelas cadentes cruzando o céu. Assim que a patroa retornava, éramos relembrados do nosso lugar, e o quartinho dos fundos voltava a ser nosso refúgio.
As complexidades dessa convivência moldaram a nossa visão de mundo de maneiras profundas. Gabriel e eu crescemos conscientes da nossa diferença, de como éramos separados não apenas por nossos nomes, mas por uma linha invisível que delineava as nossas posições naquela casa. Aprendemos a sorrir quando era esperado, a abaixar os nossos olhos quando necessário, e agradecer por cada gesto de generosidade que nos era concedido.
Os anos passaram, e essa dinâmica peculiar de vidas paralelas sob um mesmo teto continuou a nos influenciar. O quartinho dos fundos tornou-se o nosso refúgio não apenas das noites apertadas, mas também das inúmeras perguntas que surgiam à medida que crescíamos. Cada passo que dávamos, cada decisão que tomávamos, era moldado por essa realidade que parecia inescapável.
Mas mesmo nas sombras do quartinho apertado, algo dentro de mim se recusava a se contentar com a vida pré-determinada que me fora atribuída. Era como se uma chama inextinguível queimasse dentro de mim, me lembrando constantemente que havia mais em mim do que a posição que a sociedade me impunha. Eu não estava disposto a aceitar que a minha vida seria definida por uma separação arbitrária de status.
E assim, enquanto a infância avançava, eu comecei a questionar e a desafiar as barreiras que me cercavam. A semente da mudança estava plantada, e eu estava determinado a crescer além das sombras do quartinho dos fundos, a desafiar as expectativas e a buscar um destino que fosse verdadeiramente o meu.
Enquanto Gabriel e eu crescíamos sob um teto que carregava consigo um emaranhado de expectativas sociais, uma nova porta se abriu para nós: a escola. O Sr. Alberto, o meu pai que nem sempre assumia esse título, decidiu que seria um ato de caridade me proporcionar uma educação, permitindo que Gabriel e eu frequentássemos a mesma instituição.
Na mente do Sr. Alberto, tal gesto talvez fosse um alívio para sua consciência, uma forma de equilibrar as escalas entre as suas responsabilidades e o vínculo que tínhamos. Porém, para mim, era uma oportunidade de ouro. A escola se tornou o lugar onde eu podia me libertar das amarras invisíveis que governavam a minha vida, onde eu podia ser mais do que apenas o filho da empregada.
A educação era minha chance de provar que eu era mais do que o rótulo que a sociedade me colocara. Eu absorvia conhecimento com fome de aprender, buscando cada oportunidade para crescer e me desenvolver. A minha mente estava ávida por conhecimento, por histórias que se desdobravam nos livros e pelas possibilidades que se revelavam através das palavras. A escola se tornou o meu refúgio, um lugar onde eu podia deixar para trás as restrições que o mundo exterior impunha.
Então, um dia, quando eu tinha onze anos, algo extraordinário aconteceu. Houve um campeonato de soletrar na escola, e para minha própria surpresa, eu saí como o vencedor. Foi uma vitória que ultrapassou todas as expectativas que eu próprio havia estabelecido. Pela primeira vez, eu não estava apenas competindo para provar algo a mim mesmo, mas para mostrar a todos que eu era mais do que a posição que ocupava naquela casa.
Voltar para casa como um vencedor era algo que eu nunca poderia ter imaginado. A sensação de orgulho que me inundou ao segurar aquele troféu em minhas mãos era indescritível. Eu queria que a minha mãe sentisse esse orgulho também, queria que ela visse que eu era capaz, que eu havia conquistado algo para mim mesmo e para ela. Atravessar a porta de casa naquele dia era mais do que apenas retornar a um lugar físico; era cruzar um limiar de conquista e autoafirmação.