Acordei atrasado e com dor de cabeça. Já podia ouvir meu pai reclamar de longe. Minha mãe entrou no meu quarto e me pediu pra me trocar rápido que já iríamos sair. Corri pro banheiro e dei um jeito de ficar apresentável.
Já tinha conquistado a liberdade de não ser mais obrigado a ir para a igreja. Já sabia que era agnóstico desde os quinze anos, mas até os dezenove, mais ou menos, eu era forçado a ir. Por um lado eu acho normal a família querer ensinar sua religião aos filhos. Aceitável. O problema é como as religiões hoje em dia se transformaram em palanque político escamoteado. De qualquer forma, eu era um homem livre. Mas naquele domingo era apresentação de teatro do meu irmão, que há uns dois meses não falava em outra coisa, então eu tinha que ir. Tinha deixar de dormir com o homem que eu gostava por causa disso e esse era um tema sensível pra mim, então eu queria que aquilo passasse logo, não pelo meu irmão, mas pela igreja, pelo meu pai. e por mais uma coisa que eu tinha que abrir mão.
Ficar no mesmo ambiente que meu pai por tanto tempo não seria fácil. Depois das tantas coisas horríveis que eu já tinha ouvido dele, das tantas vezes que já tínhamos brigado, porque, por algum motivo, fizeram com que ele acreditasse que se cura homossexualidade no grito, não tínhamos mais ambiente juntos. Vez ou outra comíamos todos à mesa. Mas era raríssimo. E esse era o contato mais profundo que eu tinha com ele. Além de cumprimentá-lo todos os dias. Minha mãe era mais compreensiva e tolerante, apesar de beirar o fundamentalismo religioso e compartilhar com meu pai uma visão deturpada do cristianismo. Ela me aceitava e eu não sentia que tentava me mudar. Ela tentava me proteger. Do mundo, do meu pai. Como se fosse possível.
Como sempre tive habilidade com as palavras, foi escrevendo que conseguia um refresco dos meus problemas em casa, que eu me sentia útil e eu que extravasava a raiva que o governo me fazia sentir. Foi assim que fui parar na faculdade de jornalismo e foi assim que fui parar na Brazilian Watch. Provavelmente a escrita me salvou e me salvaria.
Já na igreja, tentando esboçar um sorriso e procurando meu irmão no palco, eu pensava na noite anterior. Que altos e baixos podem haver em uma noite! Alguma personagem bíblica tentava matar a outra no palco, havia gritaria, lamentações. Não sei se foi consumada a morte, pois não sou perito em Bíblia e estava distraído. Encontrei meu irmão, não reconheci a personagem, mas não precisei forçar um sorriso ao vê-lo. Foi natural. Ele era fofo. Irritante, mas fofo. A peça foi aquela coisa de sempre: traição, perseguição e morte. Temas caros ao cidadão de bem. Depois houve a ressurreição e, enfim... Estamos aqui. Pena as pessoas não entenderem a mensagem. Minha mãe chorou, meu pai, eu não sei.
Na saída, vi um pessoal que conheci na adolescência. Meus pais frequentavam a mesma igreja há anos e como fui obrigado a ir por muito tempo, conhecia algumas pessoas daquela época. Vi uma garota que eu tinha namorado, inclusive. Por dois meses, mas namoramos. Não chegamos a t*****r, porque eu tinha o pretexto ter que me guardar para o casamento, como mandava a Bíblia. Acho que foi a única vez que alguma coisa escrita no antigo testamento me foi útil.
A menina não estava interessada em seguir esse preceito específico, com razão. Eu também não estava. Mas como eu já sabia que era gay, usei isso como desculpa. Foi bom pra ela e pra mim, no fim das contas. Por isso, tive que terminar com ela rápido. Cumprimentei-a e ao namorado. Foram simpáticos. Ela deve ter ficado aliviada. Àquela altura todo mundo deveria saber sobre minha sexualidade e meu pai nem fazia questão de ficar muito próximo de mim. Se esse era o motivo eu não sei. Provavelmente era. Só a cumprimentei, porque a conhecia e fiquei afastado, enquanto esperava as infindáveis congratulações e despedidas de igreja, nas quais as pessoas realmente parecem se importar umas com as outras.
A peça tinha sido enorme, cansativa, isso porque a história já era uma velha conhecida de todo mundo. Mas meu irmão estava radiante. Fiquei feliz por ele. Secretamente triste por saber que ele se alegrava com tamanha bobagem. O mundo do avesso, e os jovens interpretando alegorias absurdas em peças em igreja. Eu torcia para que ele mudasse. Meus pensamentos oscilavam entre a cena à minha frente e às lembranças da tumultuadas da noite anterior. Era impressionante como o mundo podia girar rápido em uma única noite.
No meu celular, além de mensagens fofas de Eduardo, que faziam meu corpo esquentar, meus olhos fecharem e meus lábios se afastarem num sorriso involuntário, me lembrava que tínhamos um artigo para escrever juntos. Eu não sabia do que gostava mais. Ou o que temia mais. Porque eu temia. Parecia que não, porque eu ficava nervoso, mas eu tinha medo. Eu dava conselhos pro Danilo, o menino que veio para a cidade grande, que tinha uma droga de namorado, mas eu mesmo nunca tinha namorado tanto tempo quanto ele.
Eu namorei logo depois que terminei com a menina da igreja. Sem meus pais saberem, na época da escola. Minha mãe, esperta, provavelmente notando os rostos vermelhos e suados depois das tardes jogando videogame, não deixava o Diego dormir em casa de jeito nenhum, mas cúmplice silenciosa do meu pecado, não o proibia de frequentar nossa casa. E era assim que eu namorava. Os pais dele, ainda mais religiosos que os meus, não me deixavam passar nem na calçada. Ele não podia levar menino algum para dentro de casa, devido aos pais terem descoberto uns vídeos no histórico do computador. Além de uma surra, o coitado teve que fazer terapia, com um psicólogo, cristão! Indicado pelo pastor. É evidente que um psicólogo pode ter a religião que quiser. Mas se acredita que o paciente não deva sequer conhecê-la. Porém, esse era o nível de tortura a que eram submetidos alguns adolescentes pegos vendo pornografia gay, em plena na era digital. Alguns de nós vivia numa ditadura velada, esperando o momento certo para fugir, ou aguardando o resgate.
A censura, a perseguição e a lavagem cerebral prejudicaram aquilo que a gente tentava chamar de namoro de prosseguir. E ele foi o único que eu tive. Eu gostava mesmo dele, a gente chegou a t*****r no meu quarto algumas vezes, mas não deu pra gente se conhecer direito, pra ter uma relação de verdade, pra andar de mãos dadas na rua. A gente vivia com medo, vivia escondido. Era difícil. Depois eu fiquei com uns caras, gostei de outros, conheci alguns em apps, transei com poucos. Gostei de algumas transas, de outras detestei. Falava s*******m na internet, trocava alguns nudes. Isso era fácil. Minha geração é toda visual. Todo mundo se acha meio ator pornô, mas quase ninguém sabe falar de sentimento. A primeira coisa que te mandam pela internet às vezes é a foto do p*u. Muitas vezes você nem quer ver um p*u. É uma loucura. Eu já tinha visto tanto p***o na minha vida, de pessoas reais, mas pela tela do celular. Tinha visto tanto p*u sem nome, que perdi a conta. E muitas vezes eu queria saber o nomes das pessoas. Engraçado isso. Eu não sei se os caras não falam o nome porque não querem ou porque acham que ninguém quer saber. Porque hoje em dia, querer conversar é meio m*l visto. Mas eu estudo Comunicação! Eu gosto de conversar. Eu gosto de ver p*u também, mas eu gosto de conversar, de ouvir e falar dos problemas do país e falar de coisas bonitinhas. Prefiro falar s*******m depois de ter feito, pra falar a verdade.
Na verdade, eu era um cara que tinha visto vários pintos sem rosto, mas ninguém nunca tinha pedido em namoro. Com o Diego, eu que pedi. E foi aquele namorinho improvisado de adolescente. Os caras mostram o p***o e não perguntam seu nome. Vai entender!
Eu pensava, como a vida era louca mesmo, eu estava prestes a escrever sobre um dos maiores escândalos do país. Eu m*l sabia como tinha ido parar ali. E coisas tão simples não aconteciam comigo. Devia ter mais gente na minha situação, mas eu não conhecia. A verdade é que em quase vinte e quatro anos eu nunca tinha tido um namoro de verdade. Nunca tinha passado uma noite com um namorado. Nunca tinha falado "eu te amo". Nunca tinha ouvido um "eu te amo" de ninguém. Era algo tão b***a. E tão triste. Eu tinha passado a noite com um namorado falso, eu tinha passado a noite com Eduardo sem ele ser meu namorado, mas nunca, nunca tinha dormido, uma noite inteira com um namorado. E por pior que fosse o namorado do Danilo, eu tinha certeza de que eles já tinham dormido juntos.
Mas, se for pra ser sincero, eu já tinha feito muito mais sexo pela internet que de verdade. E eu estava cansado. Como todo mundo é meio estrela pornô, ninguém chega pra conversar com você sem estar munido de uma dúzia de nudes e outra dúzia de frases feitas. Era difícil fugir do script. E eu odeio seguir script. Por isso eu já tinha desistido há algum tempo de fazer essas coisas. Porque o jovem sabia bem f********o pela internet, mas quase nada de sexo de verdade. Decepcionava na hora da pele com pele, porque não dá pra ficar imitando ator pornô na vida real.
Por isso eu gostava ainda mais do Eduardo. Porque ele era real. Nem era porque ele era mais velho, porque eu não tenho daddy issues. Mas além de inteligente e lindo, ele não era previsível e sem graça. Nossas conversas eram espontâneas, ele era tão gentil, tão fofo, tão incrível na cama. Tudo era inexplicavelmente melhor com ele. Eu já achava ele incrível antes, depois que ele me tocou então, eu fiquei completamente apaixonado. Ele estava sendo maravilhoso comigo, mas eu ainda achava que ele ainda sentia alguma coisa por aquele cara, a fonte dele. E aquilo me deixava inseguro, porque eu não queria perdê-lo. Não queria mesmo. Porque ele era maravilhoso, mas não era meu namorado. E talvez não quisesse ser. E na minha cabeça ele não queria ou porque não gostava tanto de mim, ou porque gostava daquela droga de fonte.
De mãos dadas com meu irmão, meu pai seguia para o carro e minha mãe me fez um sinal, para que eu fosse com eles. Tinha acabado. Voltei em silêncio para casa, melancólico. Achei que nem a lembrança da noite anterior seria capaz de me tirar do estado de desânimo que me encontrava. Mas recebi uma mensagem desesperada de Danilo. E percebi que ele até poderia ter dormido com o namorado, mas era tão fodido quanto eu.
Danilo: Me ajuda arrumar um emprego? Eu preciso sair daqui.
Eu: Nossa. Pq?
Danilo: Pq eu não posso ficar mais aqui, Kauan. Me ajuda.
Eu: Eu não sei como... Vou tentar falar com o Eduardo, tá? Talvez ele conheça alguém da sua área...
Danilo: Tá bom. Obrigado!
Eu: Mas aconteceu alguma coisa?
Danilo: Aconteceu.
Eu: Quer contar?
Danilo: Te conto amanhã. Não é tão grave... mas eu quero ir embora daqui.
Eu: Tá bom.
Danilo: Eu preciso arrumar um lugar pra ficar tb.
Eu: Ai, amigo. Que merda... se minha casa não fosse difícil eu te chamava pra ficar aqui, mas nem eu quero ficar aqui.
Danilo: Eu sei... obrigado, Kauan. Eu vou dar um jeito. Mas preciso achar um emprego.
Eu: Vou fazer de tudo pra ajudar. Prometo.
Danilo: Obrigado!
Eu: Por nada... Qualquer coisa eu te aviso.
Nos despedimos e ainda que ele não tivesse me contado, pude sentir sua angústia, que era quase palpável. Só fui saber no dia seguinte quando a gente se encontrou na faculdade, que Danilo me contou sobre o desentendimento com Aquiles, o que eu achei muito doido.
— Mas ele gritou com você? — perguntei.
— Não... a gente meio que falou alto um com o outro... ele achou que eu e o ex dele estávamos flertando.
— E vocês estavam?
— Não!
— Onde eu estava nessa hora? Que não vi esse cara...
— Você tava beijando o Eduardo...
— Ah... — eu sorri ao lembrar.
— Eu sentei no bar nessa hora, tinha um cara lá, fiquei conversando com ele... normal... foi tão rápido... Aí descobri que era o ex do Aquiles.
— E ele é bonito?
— É. Muito.
— Nossa... queria ter visto... mas então... o Aquiles ficou loucão de ciúmes, foi isso?
— Acho que foi... depois ele me explicou por cima... que eles não terminaram bem. Acho que tem raiva do cara, mas foi horrível. Eu quero ir embora, Kauan. Fiquei muito triste.
— Eu entendo... é muito r**m mesmo... mas ele te xingou? Te machucou?
— Não.
— Te mandou embora?
— Também não... até me pediu desculpa... mas sei lá...
— Olha, assim que o Eduardo aparecer na BW eu falo com ele. Quero falar pessoalmente. Tá?
— Tá bom.
— Fica tranquilo... a gente vai dar um jeito...
Quis perguntar se o namorado dele não podia ajudar, mas não perguntei. Achei que estava implícito. Se ele estava pedindo ajuda para mim, era óbvio. Não quis deixá-lo ainda mais triste. Ele podia até ter dormido com o namorado, mas eu ainda achava que o tal Paulo devia ser um boy lixo, porque não era possível!
Eu não podia fazer muita coisa, mas queria que ele sentisse que tinha alguém com quem contar, porque era uma situação horrível. Eu fiquei imaginando o susto que ele deve ter sentido vendo Aquiles bravo. Eu teria desmaiado. Se ele calmo eu já tenho medo.
De qualquer forma, eu tinha duas missões para ajudar meu amigo: encontrar um estágio pra ele e ajudar a achar um lugar pra ele morar.
Assim, minha vida e a do Danilo iam competindo para ver qual era a mais ferrada. E enquanto nossos amigos jornalistas descansavam em suas casas, nós estávamos em pé no ônibus lotado, pensando juntos em estratégias para que ele pudesse sair daquela encrenca, sem precisar parar de estudar.