CAPÍTULO DOIS

1885 Words
CAPÍTULO DOIS Três luas depois Rea estava sozinha na clareira da floresta, atordoada, perdida em seu próprio mundo. Ela não ouvia o riacho escorrendo debaixo de seus pés, não ouvia o canto dos pássaros na densa floresta ao seu redor, não notava a luz do sol brilhando através dos galhos, ou o g***o de cervos que a observava de perto. O mundo inteiro desaparecia enquanto ela olhava apenas uma coisa: as veias da folha de Ukanda que ela segurava entre seus dedos trêmulos. Ela tirou a palma de sua mão da folha larga e verde e, lentamente, para seu horror, a cor das veias da folha mudaram de verde para branco. Assistir a mudança foi como sentir uma faca atravessada em seu coração. As folhas de Ukanda não mudavam de cor a menos que a pessoa que tocava nelas estivesse grávida. O mundo de Rea desabou. Ela perdeu toda a noção de tempo e espaço enquanto estava ali, com o coração batendo nos ouvidos, as mãos trêmulas, e voltou a pensar naquela fatídica noite três luas antes, quando sua vila fora saqueada, muitos de seus mortos por contar. Quando ele a tinha levado. Ela estendeu a mão e passou a mão sobre a barriga, sentindo uma pequena protuberância, sentindo outra onda de náusea e, finalmente, entendendo o motivo. Ela estendeu a mão e tocou o colar de ouro que estava escondendo em volta do pescoço, bem por dentro de suas roupas, é claro, para que os outros não vissem. Ela se perguntou, pela milionésima vez, quem era aquele cavaleiro. Por mais que tentasse bloquear as últimas palavras dele, elas soavam repetidas vezes em sua mente. Mande ele para mim. Subitamente Rea ouviu um ruído atrás de si e, quando se virou, se assustou ao ver os olhos redondos de Prudence, sua vizinha, olhando para ela. Uma menina de quatorze anos que tinha perdido a família no ataque, uma intrometida sempre muito ansiosa para tagarelar sobre qualquer um, Prudence era a última pessoa que Rea queria que soubesse o que estava se passando com ela. Rea observou com horror os olhos de Prudence se desviando de sua mão na direção da folha em transformação, e, depois se arregalando ao entender. Com um olhar de desaprovação, Prudence deixou cair a cesta de lençóis, se virando e correndo. Rea sabia que aquela fuga significava apenas uma coisa: Prudence iria informar os aldeões. Rea ficou apavorada e sentiu sua primeira onda de medo. Os aldeões exigiriam que ela matasse seu bebê, é claro. Eles não queriam nenhuma lembrança do ataque dos nobres. Mas porque isso assustava Rea? Ela queria mesmo manter essa criança, o subproduto daquela noite violenta? Rea estava surpreendida por estar com medo e, pensando nisso, se deu conta que era por temer não conseguir manter seu bebê seguro. Isso estava desorientando ela. Pensando apenas com a razão, ela não queria ter o bebê; fazer isso colocaria sua aldeia em risco. Isso apenas encorajaria os nobres que haviam invadido a atacar novamente. E seria tão fácil perder o bebê; ela poderia simplesmente mastigar a raiz de Yukaba e, em seu próximo banho, a criança morreria. No entanto, ela sentia a nova vida presente no meio das suas entranhas, e seu corpo estava dizendo algo que sua mente não dizia: ela queria manter essa criança. Protegê-la. Era uma criança, afinal de contas, e uma que tinha sido prometida a ela em seus sonhos. Rea, uma filha única que nunca tinha conhecido seus pais, que havia sofrido nesse mundo sem ninguém para amar e ninguém para amá-la, sempre tinha querido desesperadamente alguém para amar e alguém que a amasse de volta. Ela estava cansada de estar sozinha, de ficar isolada na parte mais p***e da aldeia, de vasculhar na sujeira por algo suficiente para viver, fazendo trabalhos forçados de manhã à noite, sem nenhuma saída. Ela sabia que nunca encontraria um homem, dado seu estado; pelo menos, nenhum homem que ela não desprezasse. Provavelmente ela nunca teria um filho além desse. Rea sentiu uma súbita onda de v*****e. Esta poderia ser sua única chance. E agora que ela estava grávida, ela se deu conta que não sabia até então o quanto queria essa criança. Rea queria ela mais do que tudo. Rea começou a caminhada de volta para sua aldeia, no limite, presa em um turbilhão de emoções misturadas, m*l preparada para enfrentar a desaprovação que ela sabia que a aguardava. Os aldeões iriam insistir que não houvesse nenhum assunto que sobrevivesse aos saqueadores de sua cidade, aos homens que haviam tirado tudo deles. Eles não iriam entender que as coisas tinham sido diferentes com esse homem; que ele tinha protegido ela. Rea dificilmente poderia culpá-los; era uma tática comum entre os saqueadores engravidar mulheres para dominar e controlar as aldeias em todo o reino. Às vezes eles eram mesmo enviados para isso. Ter um filho apenas alimentava seu ciclo de violência. Ainda assim, nada disso poderia mudar como ela se sentia. Uma vida vivia dentro dela. Ela conseguia sentir isso a cada passo que dava, e se sentia mais forte por isso. Conseguia sentir isso a cada batida do coração do bebê, pulsando através do seu próprio coração. Rea desceu pelo centro das ruas da aldeia, voltando para sua cabana simplória, sentindo o seu mundo de cabeça para baixo, se questionando o que pensar. Grávida. Ela não sabia como estar grávida. Ela não sabia como dar à luz ou como criar uma criança. Ela m*l conseguia se alimentar. Como ela iria sustentar a criança? No entanto, de alguma forma, ela sentiu uma nova força se elevando dentro dela. Ela sentiu isso bombeando em suas veias, uma força da qual ela tinha estado vagamente consciente das últimas três luas, mas que agora estava completamente nítida. Era uma força além da dela. Uma força do futuro, de esperança. De possibilidade. De uma vida que ela nunca conseguiria liderar. Era uma força que exigia que ela fosse maior do que ela jamais conseguiria ser. Ao caminhar lentamente pela rua de terra, Rea começou ficando vagamente consciente do que a rodeava e dos olhos dos aldeões que a observavam. Ela se virou e, por todos os lados da rua, viu olhos curiosos e desaprovadores de mulheres velhas e novas, homens velhos e novos, de solitários sobreviventes, homens mutilados que tinham as cicatrizes daquela noite. Todos eles transportavam grande sofrimento em seus rostos. E todos olhavam para ela, para sua barriga, como se ela fosse de alguma forma culpada. Ela viu mulheres de sua idade entre elas, rostos assombrados, olhando para ela sem compaixão. Rea sabia que muitas delas tinham também sido engravidadas e já tinham tomado a raiz. Ela conseguia ver a tristeza em seus olhos, e conseguia sentir que elas queriam que ela compartilhasse dessa tristeza. Rea sentiu a multidão aumentar em torno dela e, quando olhou para cima, ficou surpresa ao ver uma parede de pessoas bloqueando seu caminho. A aldeia inteira parecia ter saído na rua, homens e mulheres, velhos e jovens. Ela viu a agonia em seus rostos, uma agonia que ela tinha compartilhado. Rea parou e olhou para eles. Ela sabia o que eles queriam. Eles queriam m***r seu filho. Ela sentiu uma súbita onda de desafio - e resolveu naquele momento que nunca faria isso. “Rea”, disse uma voz grossa. Severn, um homem de meia-idade com cabelos escuros e barba, e uma cicatriz na maçã do rosto, feita naquela noite, estava no centro e olhou para ela. Ele olhou para ela de cima a baixo como se ela fosse um pedaço de gado. Passou pela cabeça de Rea que ele não era muito melhor que os nobres. Eram todos iguais: todos achavam que tinham o direito de controlar o corpo dela. “Você tomará a raiz”, ele ordenou sombriamente. “Você tomará a raiz, e amanhã tudo isso fará parte do seu passado.” Ao lado de Severn, uma mulher deu um passo em frente. Luca. Ela também tinha sido atacada naquela noite e tinha tomado a raiz na semana anterior. Rea ouvira Luca gemer toda a noite, gemidos de pesar pelo filho perdido. Luca tentou dar a Rea uma sacola, com o ** amarelo visível lá dentro, mas Rea recuou. Ela sentiu a aldeia inteira olhando para ela, esperando que ela se aproximasse e a pegasse. “Luca vai acompanhar você até ao rio”, acrescentou Severn. “Ela vai ficar com você durante a noite.” Rea olhou para ele, sentindo uma energia estranha subindo dentro dela enquanto olhava para eles friamente. Ela não disse nada. Seus rostos endureceram. “Não nos desafie, menina”, disse outro homem, dando um passo em frente, apertando ainda mais a foice até os nós dos dedos ficarem brancos. “Não desonre a memória dos homens e mulheres que perdemos naquela noite, dando vida ao seu filho. Faça o que esperam de você. Faça o que tem a fazer.” Rea respirou fundo e ficou surpresa com a força em sua própria voz ao responder: “Não o farei.” Sua voz soava estranha para ela, mais profunda e madura do que jamais ouvira. Era como se ela tivesse se tornado uma verdadeira mulher do dia para a noite. Rea observou os rostos à sua volta ficando raivosos, como uma nuvem de tempestade passando por um dia ensolarado. Um homem, Kavo, franziu a testa e deu um passo à frente, com ar autoritário. Ela olhou para baixo e viu um chicote na mão dele. “Há uma maneira fácil de fazer isso”, disse ele, com uma voz de aço. “E uma maneira difícil.” Rea sentiu seu coração batendo com mais força e olhou para ele bem nos olhos. Ela se lembrou do que seu pai lhe dissera uma vez quando era menina: nunca recue. Perante ninguém. Lute pelo que você quer, mesmo que as probabilidades estejam contra você. Especialmente se as probabilidades estiverem contra você. Esteja sempre de olho no maior valentão. Ataque primeiro. Mesmo que isso signifique sua vida. Rea entrou em ação. Sem pensar, esticou o braço, pegou um bastão da mão de um dos homens, deu um passo em frente e, com toda sua força, golpeou Kavo no peito. Kavo arfou sem ar ao cair de joelhos, e Rea, não lhe dando outra chance, puxou de volta o bastão e golpeou ele no rosto. Seu nariz estalou e ele soltou o chicote, caindo no chão, segurando o nariz e gemendo na lama. Rea, ainda segurando o bastão, olhou para cima e viu o g***o de rostos horrorizados e em choque olhando para ela. Todos pareciam um pouco menos certos. “É meu filho”, ela cuspiu. “Eu vou ter esse menino. Se vierem atrás de mim, da próxima vez, não será um bastão em suas barrigas, mas uma espada.” Com isso, ela apertou ainda mais o bastão, se virou e se afastou lentamente, abrindo caminho com os cotovelos entre a multidão. Ela sabia que nenhum deles se atreveria a segui-la. Pelo menos não por agora. Ela se afastou, com as mãos tremendo, o coração batendo forte, sabendo que seriam seis longos meses até o bebê chegar. E sabendo que, da próxima vez que eles viessem atrás dela, eles viriam para m***r.
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