Capítulo 2

1126 Words
Querido Bruno Tia Lúcia e Antônio levaram todas as suas coisas embora na semana passada, até aquele carrinho que você montou com o papai. Eu tentei pegar para mim, mas ela me bateu e me trancou no armário debaixo da escada a noite inteirinha no escuro. Quando me deixaram sair, eu corri para o seu quarto, mas estava vazio. Não tinha mais nada seu lá dentro... Nem no meu... Eles deixaram um colchão no chão e disseram que terei que dormir nele. Minha cama foi embora também. Todas as minhas coisas foram. Chorei quando ela me mostrou uma caixa de papelão com um pouco das minhas roupas e disse que é tudo o que tenho agora. Ela me bateu no rosto e me chamou de "peste ingrata" . O que ela fez com as coisas que nossos pais nos deram? Estou escrevendo sentada no banco da praça onde você me empurrava no balanço. Ontem, tomei coragem e pedi a Tia Lúcia para me levar para te visitar, mas ela disse que não, que se depender dela, nunca mais vou te ver. Eu chorei de novo e ela machucou meu braço. Ela me obrigou a vestir casaco, apesar do calor, para esconder as marcas. Acho que ela ainda está com raiva por causa do moço que veio aqui perguntando por você. Eu me escondi e escutei o que eles falavam. Não sei o nome do moço, mas ele disse que trabalhava para o governo e que ela não ia mais receber dinheiro, porque você não mora mais aqui. Hoje Antônio me acordou e mandou eu preparar o café. Eles falaram que agora a casa é deles e que eu tenho que trabalhar para pagar a comida que eles gastam comigo. Se mamãe e papai estivessem aqui, eles cuidariam da gente e contariam histórias quando nos levassem para dormir... Eu fiz o que você me pediu na última carta e estou escondendo suas cartas dentro do meu colchão. Agora que você não vai mandar as cartas para cá, acho que Tia Lúcia não vai mais ter como jogar fora antes que eu leia. Sinto sua falta, você é o melhor irmão do mundo inteirinho! Não acredite nas coisas ruins que ela falava para você. Ah! Ontem achei seu baralho de mágica no fundo da gaveta, posso brincar com ele? PS: Estou enviando a única foto sua que tenho que eles não jogaram fora, porque nela estamos juntos e assim você não vai esquecer de mim. É meu presente de aniversário para você. Querido irmão. Te amo Júlia *************** Júlia desceu do balanço e correu na direção da casa de correios. Ela enfiou a mão no bolso do vestido e retirou uma moeda. Com um enorme sorriso estampado o rosto, entregou o envelope lacrado e a moeda na mão da atendente. — Boa tarde. A senhora poderia selar e enviar essa carta, por favor? A idosa que estava no balcão olhou para a pequena menina. Cabelos cacheados cor de mel emoldurando grandes e brilhantes olhos castanhos. Feições delicadas e corpo aparentemente abaixo do peso, como tantas outras crianças da vizinhança. O vestido da menina estava gasto pelo uso, com marcas de remendo aqui e acolá. — Farei isso agora mesmo, para que vá com a remessa que será levada ainda hoje. Posso perguntar para quem é a carta? — É para meu irmão. — Respondeu Júlia, as bochechas vermelhas de excitação. — Ele está em um internato muito longe daqui. — Humm... que irmã dedicada que ele tem, é um rapazinho de sorte! Onde fica esse internato? — Ah...Eu não sei.. é muito longe... A atendente olhou para o endereço escrito no envelope. Realmente era distante, do outro lado do país. Ela olhou para a moeda que a menina lhe entregara e desviou os olhos para o aviso sobre o balcão. O preço do selo havia aumentado e a moeda que a menina lhe entregara não era suficiente. — Escute, mocinha, posso saber o seu nome? — Me chamo Júlia, senhora, qual sua graça?— Respondeu, fazendo um gesto mecânico como se a apresentação da jovem menina fosse fruto de muito ensaio, provavelmente ensinado pelos pais. — Meu nome é Lurdes.— A simpática senhora respondeu sorrido. Lurdes olhou mais uma vez para a menina, o estado precário da roupa que vestia e sapatos gastos, provavelmente esburacados . Mais uma vez a compleição esguia sobressaindo ao olhar. —Seus pais que lhe mandaram enviar a carta? — Não, senhora... meus pais não estão mais aqui nessa Terra. Eles foram para o céu. — Meus pêsames... Lamentável que uma menina assim tão novinha já seja órfã. Tem outros irmãos além desse? — Lurdes perguntou balançando a carta. — Não... Somos apenas meu irmão e eu. — Mas você mora com algum adulto, sim? Quem é responsável por você? — Hum... Minha tia... Mas ela não pode saber que estou enviando essa carta para meu irmão, por favorzinho! — Se ela não sabe, quem está pagando pelo serviço postal? — Hm...eu. Lurdes levantou uma sobrancelha e Júlia se apressou em se explicar: — Eu juro que não roubei! Dona Rita me ofereceu essa moeda se eu lavasse a louça e eu lavei tudinho, até as panelas. Mas ela ficou brava mesmo assim... Lurdes conhecia "dona Rita". Era uma senhora esnobe, que andava sempre de nariz para cima, cercada pelos três filhos pequenos que aterrorizavam os vizinhos com suas travessuras. Se aproveitar da carência de uma menina, pagando apenas uma moeda pelo serviço doméstico, era algo de se esperar de tal mulher. — E por qual motivo teria Rita ficado brava com você? — Ela ralhou comigo por eu ter lavado a panela de omeletes. Ela disse que nunca lava aquela panela, apenas passa jornal para que as omeletes não grudem. Eu não sabia. Daí ela descontou no meu pagamento. Ela ia me dar duas moedas, mas me deu apenas uma.... Lurdes não precisou ouvir mais nada. Não se importava de inteirar o valor para aquela menina, já tinha gente demais se aproveitando da ingenuidade da pobre órfã. — Tenho uma ideia, menina Júlia. Quando precisar ganhar algum tostão, venha me procurar. Eu tenho alguns gatos que ficam muito tristes em casa sozinhos, enquanto estou aqui na loja. Eu às vezes não dou conta de acarinhar e alimentar todos eles e pagaria para uma menina como você, tão esperta, me ajudar a cuidar deles. O que acha? Júlia sorriu sacudindo a cabeça, aceitando a amável proposta de Lurdes. Tudo o que ela tinha, em sua inocente cabecinha, era alegria de saber que poderia pagar por mais selos e o orgulho que o irmão sentiria dela ao saber que ela tinha conseguido uma maneira honesta de conseguir dinheiro com um trabalho sério....e divertido.
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