Filha do Juiz

892 Words
2016 Aline Estava caindo o mundo ao meu redor. Uma chuva torrencial, uma insônia péssima e uma dor incômoda na cabeça me mantiveram acordada até tarde, muito tarde naquela noite. Em algum momento eu levantei e fui até a cozinha com fome. Não sei bem que horas eram, o que eu sabia é que no dia seguinte eu teria a prova do vestibular que eu tanto estudei. Advogada. Esse era o sonho, desde que eu me lembrava. Sonho esse que não era meu, mas que se tornou. O meu pai falava desde que eu era muito pequena que eu seguiria os passos dele e me tornaria uma Juíza renomada, assim como ele. Valentin Moreira era um Juiz respeitado e conhecido por condenar homens criminosos e traficantes e era exatamente o que ele sonhava para mim, sua única filha. Eu acabei de fazer 18 anos e estava em um curso preparatório para aquele dia fazia 2 anos. O dia que eu provaria se eu era uma Moreira legítima ou não. Se eu era forte, com fibra nos nervos como o meu pai ou se era fraca como a minha mãe. Essa era uma comparação que eu ouvia muito também. - Não seja uma decepção Alice. Você tem apenas um objetivo na vida.- Era a frase favorita dele e eu também ouvia isso fazia muito tempo. Engoli um pouco de leite e algumas bolachas e encarei a chuva lá fora. Eu era uma garota branca e privilegiada desde que me lembrava. Estudei nos melhores colégios e tive oportunidades que a grande maioria não tinha. Não para diversão, claro que não. Sempre pensando no meu futuro glorioso como Juíza. E o primeiro passo eu daria no dia seguinte. Pela janela eu conseguia ver a bolha que me separava do resto do mundo. Da cobertura do condomínio Club Life Morumbi Collina, onde meu pai fazia questão de morar, no topo de mundo, era possível ver o Paraisopolis e como sempre, ele parecia vivo. Um organismo com vida própria e que estava perto o suficiente para caminhar até lá, mas infinitamente inalcançável para mim. Suspirei lembrando do jantar daquela noite. “Logo você olhará pela janela e ficará satisfeita de limpar a escória dessa favela!” Ele dizia que gostava de morar aqui, porque sempre estava de olho no inimigo. Eu me perguntava quando que finalmente eu sentiria isso? Se um dia eu iria olhar para aquele mar de casa acesas, para aquele povo que se divertia e vivia da melhor forma que podia, e que sobrevivia em meio a briga eterna das autoridades e do comando, cuidando dos seus e das suas vidas e sentiria a raiva fétida que o meu pai sentia. O que eu não daria para ir para um baile lá? Apenas para sentir as batidas do pancadão perto o suficiente para me entorpecer. Suspirei e voltei para a cama. Eram apenas ideias de uma menina jovem demais para a expectativa que tinha. O dia seguinte seria longo e eu tinha um objetivo na vida. Me tornar a Juíza que o meu pai sempre sonhou. No caminho para o meu quarto, passei pelo escritório do meu pai e entrei. Era um lugar que guardava memórias dolorosas e que um dia seria meu. As paredes eram de um tom terroso que eu odiava, os móveis escuros e os livros todos de direito. Nada de distrações, ele dizia, e isso se aplicava aos livros também. Eu não conseguia ver alegria nenhuma naquele lugar, e secretamente planejava nunca usar aquele escritório ou redecorar ele inteiro se fosse usar. O meu pai usava uma das paredes como quadro investigativo, e ele estava julgando um caso que tinha parado o Brasil. Ele finalmente conseguiu enquadrar um dos subs do Paraisópolis, que era acusado de uma lista tão longa de crimes que o meu pai dizia que pena de morte seria uma boa pedida para ele. Mesmo que isso não fosse permitido no nosso país. E naquele quadro eu pude ver toda a linha de investigação, com fotos, anotações e recortes de jornais que supostamente comprovam os crimes do homem. O principal suspeito, Jacaré comandava o morro atualmente, segundo a investigação, e tinha destaque entre as informações. Um homem velho e com feições sofridas. Mesmo na foto era possível ver tristeza nos olhos dele. Se eu o visse na rua nunca pensaria que ele era chefe do comando de um morro, menos ainda do Paraisópolis, que mesmo tendo disputas frequentes, era o que as pesquisas mais diziam que prosperava. - O que te levou a isso, Jacaré? - Perguntei em voz alta para mim mesma, como se a foto fosse me responder. Olhei as outras imagens e uma se destacou entre as outras. Um homem na praia, com tatuagens de todos os tipos sob a pele, os ombros e braços completamente trincados e um olhar travesso nos olhos verdes. O tom de pele dele era quase dourado, devido ao sol e ele parecia completamente à vontade saindo do mar. Era um homem completamente lindo, e eu senti o meu corpo reagir vendo aquela imagem. Estranho, para dizer o mínimo e ele era um completo desconhecido, segundo as investigações do meu pai. Pontos de interrogação estavam escritos em volta da imagem havia apenas um comentário adicional sobre o homem misterioso, que me fez estremecer. “Alvo número 1”.
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