Esther
Cheguei na casa do meu tio por volta das dez e meia da manhã, o sol estava forte no azul do céu, porém, de vez em quando ventava uma brisa leve que refrescava o calor que estava fazendo.
Meu tio estava cozinhando algo no fogão e apesar do cheiro ser bom a aparência não era nada agradável, não queria nem imaginar o gosto disso, não era à toa que os padres faziam jejum, se eu tiver que comer isso, vou ter que começar a fazer essa prática também.
— Oi, tio!
— Olá, minha filha, que bom que você chegou. Como foi a viagem?
Aproximei-me dele o abracei de lado para não atrapalhar seu trabalho com... sei lá o que ele estava fazendo.
— Benção, tio!
— Deus te abençoe, minha filha.
— Bem! O que está fazendo?
— Legumes cozidos. Tenho que fazer arroz, feijão e a mistura.
Eu fiz careta, aquilo realmente não estava nada bom.
— Quer uma ajuda?
— Não precisa, você pode me fazer companhia até o almoço ficar pronto.
— Correr o risco de ter uma indigestão com a gororoba que o senhor está fazendo? Nem pensar.
— Oh! Minha comida não é tão r**m assim.
— Mas a minha é melhor! Sai, deixa a mestre aqui trabalhar.
— Ok, então! Enquanto a “mestre” trabalhar, me conta como vão as coisas com os seus pais.
Meu tio sabia com as coisas iam com os meus pais, era por isso que me mandar para ele.
— O senhor sabe que me expulsaram de casa.
— Não é bem assim, Esther.
— É bem assim sim, tio.
— Eles só estão preocupados com você.
— Me mandando embora?
— Eles só acharam que eu poderia orientar você de alguma forma.
Fiquei calada, se tinha uma pessoa que poderia colocar juízo na minha cabeça, esse era o meu tio. Eu o respeitava, respeitava até mais que meus próprios pais. Ele era sacerdote e eu respeitava essa função, por mais que não tenho sido uma boa católica nos últimos tempos, apesar de ter feito todos os sacramentos como: batismo, primeira comunhão, crismas. Não me lembrava da última vez que me confessei, acho que foi para receber a crisma. Depois disso, conheci o Ronaldo que me levou para um buraco escura e sem volta.
— O senhor já tem muito trabalho com seus fiéis, como eles acharam que o senhor poderia me ajudar?
— Me ajudando...
— Hã?
— Eu lembro muito bem que você adorava a ajudar na igreja, nas missões de caridade. Temos muito trabalho aqui e pouca gente que realmente se comprometa.
— Eu não sei se seria de boa serventia para a igreja, principalmente, depois de tudo o que aconteceu.
— Que tal uma confissão?
Meu tio sabia me guia muito bem para o que ele queria, que não era só a minha ajuda na igreja, era saber da minha própria boca o que aconteceu de fato. Para que só assim, poder me orientar da maneira adequada.
— Também não sei se a confissão vai adiantar de alguma coisa.
— Do que você tem medo?
— Tio, o que as pessoas vão pesar quando me verem fazendo qualquer tipo de função aqui?
— Elas não sabem o que você fez.
— Os vídeos foram parar na internet.
Meu tio arregalou os olhos e eu percebi que falei demais.
— Ele filmou vocês... Eu não acredito que ele colocou na internet. Se eu não fosse padre, eu o mataria com minhas próprias mãos... Perdão, senhor! Seu pai não fez nada?
— Bom... ele denunciou para a polícia e o Naldo foi obrigado a apagar o vídeo, mas o senhor sabe... Uma vez na internet...
Meu tio me deixou sozinha na cozinha e depois voltou com uma estola roxa em volta do pescoço. Eu fiz essa estola para ele quando fiz um curso de corte e costura, gostei de ver que ele ainda guardava os meus presentes.
— Olha, você é minha sobrinha e eu te amo, é por isso que você precisa se confessar, mas não vou fazer nada que você não queira.
— Tudo bem, tio! Gostei de saber que o senhor ainda tem essa estola.
— Eu a uso nas confissões, está um pouco gasta, mas ainda dá para usar.
— Depois eu faço outra para você.
— Enquanto você cozinha, eu posso ouvir sua confissão.
Passei o dia inteiro conversando, ou melhor confessando com o meu tio. Ele foi a única pessoa que não ficou horrorizado com o que fiz, acho que talvez ele tenha ouvido coisas piores nesses quase dez anos de celibato. Foi um bate papo muito agradável, nem parecia que eu estava confessando. Queria muito que meus pais fizessem comigo, o que meu tio estava fazendo, talvez eu não me sentisse tão carente e perdida esse tempo todo.
No final da tarde, eu me sentia mais leve, no entanto, a culpa do que eu fiz ainda me corroía. Não estava pronta para os trabalhos comunitário, eu queria me senti limpa.
— Bom, hoje temos missa e você vai me ajudar na igreja.
— Tio, ainda não me sinto preparada para esse trabalho.
Ele tirou a estola do pescoço e guardou com cuidado em uma gaveta na sacristia. Me dei conta que passamos o dia todo conversando com ele, o que significava que atrapalhei o seu trabalho.
— Mas a maioria das coisas você já fez.
Eu olhei para dentro da igreja e percebi que, enquanto conversávamos arrumamos a igreja para a missa. O meu tio era muito astuto, queria ter puxado ele em sua astúcia, mas eu estava mais para uma i****a que se deixava enganar para qualquer sorriso perfeito cheio de dentes.
— O senhor é um danado hein, tio?
Ele sorriu satisfeito.
— Eu só estou te orientando. — Estreitei os olhos para ele. — Eu só queria te dar mais um conselho.
— Manda!
— Não feche seu coração para o amor, não deixe que o que te aconteceu destrua quem você é. Deus vai lhe mostrar o caminho e apontar uma pessoa que realmente mereça o seu amor.
— Ah, tio! — Não reprimi as lágrimas que ameaçaram a cair o dia inteiro. — Se eu tivesse o dom de ser freira, não iria pensar em homem, para o resto da minha vida.
— Ser freira não é um dom, é uma vocação.
Eu dei de ombros.
— Dá no mesmo!
— Não, não dá. E você não tem essa vocação, ainda me vejo celebrando seu casamento com um bom rapaz, alguém que te mereça de verdade.
— Acho que vou ser celibatária, porque homem para mim, precisa ver além do meu corpo. Estou cansada de passar pela rua e ver os homens me olhando como seu eu fosse um objeto de consumo descartável.
E olha que minhas roupas não são curtas e nem apertadas demais, como tem muitas mulheres se vestindo por aí. Eu sempre soube me comportar nos lugares e me vestir com elegância, apesar da minha autoestima ter sido jogada no lixo. Mesmo assim, não me relaxei com a minha aparência.
— Tenho certeza que Deus está preparando alguém especial para você.
De repente, a porta da sacristia abriu e um jovem loiro, cabelos cacheados e olhos azuis entrou. Nossos olhos se encontraram e ele parecia impressionado ao me ver. Senti uma conexão muito forte só pelo olhar que ele me dava, que parecia enxergar a minha alma, até porque ele não tirava os olhos dos meus olhos. Era como se Deus me trouxesse um bálsamo para o purgatório que eu estava vivendo dentro de mim. Esse cara parecia um anjo...