Partida rumo ao recomeço

2931 Words
Com os olhos fixos na Lua Cheia, Maybelle se perdia em seus pensamentos. Não havia descansado o suficiente, pois sua mente lhe fazia reviver toda a agitação da invasão a ponto de se questionar onde estariam todas as pessoas com quem convivera até então. E ainda, para piorar a situação, no dia seguinte fora avisada por uma médico de que sua irmã mais nova teria perdido a memória. A única pessoa que sobrara de sua família havia esquecido de si. Shaye demonstrara comportamentos agressivos e de esquiva quando alguém se aproximava. Nem Maybelle conseguira lhe dirigir a palavra sem receber algum chute ou lágrima. O medo era presente em seus pequeninos olhos. Só conseguira se sentir aliviada e satisfeita quando vira sua irmã recebendo o carinho da rainha. Mesmo que não fosse em seu colo, ela estaria bem e era o que importava. Uma vez que passara o dia buscando entender o que era a sua vida depois do ataque, ficar olhando a Lua Cheia pela janela do castelo parecia ser a única coisa a lhe acalmar. — Senhorita Maybelle, o rei lhe aguarda. Observara o soldado pelo reflexo da janela e suspirara. Era nítido que o rei desejava alguma coisa dela, só não sabia até que ponto poderia lhe entregar. Seguindo o soldado para fora do salão, onde os sobreviventes estavam acolhidos enquanto as casas eram reconstruídas, eles atravessaram todo o corredor e um pátio para chegarem na entrada de uma torre. Erguera a cabeça para enxergar a ponta da torre, julgando não ser tão alta quanto imaginara. Conseguia notar uma janela aberta com uma cortina esvoaçante. Espreitara o olhar em perceber que alguém estaria ali. Sem pressa, ela entrara na torre encontrando o rei a esperando no pé da gigantesca escadaria. — Senhorita Maybelle, fico feliz em vê-la melhor — A garota fizera uma reverência respeitosa ao rei, que maneou a cabeça em resposta. — Eu sei que há muita coisa para processar, mas creio que diante de meu desespero possa compreender a minha pressa. — O que há, vossa majestade? — Alguns meses atrás seu pai havia comentado que começaria a treiná-la para torná-la uma caçadora. Maybelle prendera a respiração automaticamente, lembrando-se de soltar o ar dos pulmões lentamente. O rei iria cutucar sua ferida, e ela deveria estar preparada para aquilo. Seu pai e sua mãe foram exímios caçadores de lobos, enfrentaram diferentes alcateias que ousaram invadir o vilarejo. Haviam histórias para contar sobre cada batalha da qual vivenciaram juntos. E no final de cada história, seu pai lhe acariciava a cabeça dizendo-lhe esperançoso que um dia Maybelle faria parte dessas histórias. Sorrindo tristemente, a garota concordava com a cabeça sem deixar cair o olhar do rei. Já havia chorado o suficiente na noite anterior. — Comecei o treinamento de combate de curta distância, e no próximo mês ele iria me ensinar sobre os lobos. Apesar disso, não tive tanto conhecimento assim. — Entendo. Ainda deseja continuar o seu treinamento? Espreitando os olhos a garota pensara por alguns instantes. Os lobos eram uma constante ameaça para Grevers, isso já sabia desde que nos últimos meses seus pais estavam ausentes por conta do trabalho. Além de, claro, voltarem para casa cansados de longas lutas. Levando em consideração que seus pais não eram fracos em luta, Maybelle poderia considerar que o inimigo em questão era forte. Muito forte. Ter tal inimigo rondando Grevers e Aurillon, obtendo sucesso em acabar com a vida de dois caçadores de lobos, a garota compreendia que o rei desejava. A questão era saber se ela daria conta daquele trabalho. Afinal de contas, seu treinamento somente havia iniciado. Mantivera-se em silêncio sustentando o olhar do rei, encontrando um caminho que lhe dissesse a resposta que deveria dar. — O que o senhor deseja de mim? O rei sorrira. — Acompanha-me, por favor. O rei Caineghis dera as costas e subira os degraus em caracol, sendo seguido pela garota. Maybelle observava o ponto alto da torre, percebendo vários cômodos por ali. Mas havia enxergado uma única janela do lado de fora. Instintivamente buscara pela última porta que pudesse enxergar, no alto. A única que estava aberta. E fora para lá que o rei a levara. Entrando no cômodo deparou-se com apenas uma cama em frente à janela, onde alguém dormia. No parapeito estava um homem de vestes brancas, que lia alguns papéis concentrado. Quando o homem de branco percebera a presença do rei, fizera uma reverência. — Como está o príncipe? — Febre alta — Comentava o homem de branco, tornando a olhar os papéis — há momentos em que acorda, mas logo fica inconsciente. Maybelle se mantinha atrás do rei, mas fitara pelo canto do olho a figura deitada. Era um garoto que parecia ser de sua idade, estava sem camisa e com o tronco enfaixado. As ataduras estavam sujas de sangue. Lobo. Poderia dizer com precisão, pois não haveria outro motivo para que aquele garoto tivesse ferido. — Entendo — Respondia o rei, dando um passo ao lado para que Maybelle fosse apresentada ao rapaz — Essa é a filha de Kenyan, Maybelle. Senhorita, esse é o médico da corte. — É um prazer, senhor. — Cumprimentava a garota. O rei aproximou-se da cama onde o rapaz adormecia. Seu semblante escurecera, como se a tristeza lhe desse um delicado beijo. Tocando os dedos grossos na palma da mão do filho, o rei mostrava a sua preocupação paternal. — Ontem lhe contei que seu pai salvara de meu filho de um lobo. Luka fora mordido por um lobo, e seu pai impedira que toda sua vida fosse sugada. Maybelle aproximou-se do acamado quando o rei a olhara por cima do ombro. O rapaz suava mesmo que sua expressão fosse suave. — Sabe de algo à respeito? — Mordidas de lobo? — Questionara a garota olhando o rei, em seguida maneando a cabeça — Meus pais me ensinaram desde pequena a cuidar de suas feridas feitas por lobos. Devo dizer que meu treinamento tenha começado dessa maneira. Quaisquer machucado feito por eles causam dor e sofrimento, mas não sei até que ponto. — Compreendo. Infelizmente não há nenhum outro caçador de lobos nesse reino, o que nos deixa em desvantagem. — O rei ficara de frente a garota segurando de seus ombros, fitando-a determinado — Gostaria que tomasse o lugar de seu pai em Aurillon. Maybelle arregalara os olhos. — O quê? Vossa Majestade eu recém comecei meu treinamento, não sou adequada para isso. — É de meu conhecimento que os caçadores de lobos sejam almejados pelas matilhas. Seu pai me contastes quando ofereci esse trabalho à ele. — O rei sussurrava abaixando-se para ficar na altura da garota — Uma vez que Aurillon e Grevers foram alvos, é provável que os lobos retornem. Preciso de um caçador de lobos ao meu lado. — Mas… eu? Não sou forte como… eles eram. — Há de ser. — O rei afastara da garota, deixando os braços às costas — Posso me encarregar de treiná-la para o combate, enviá-la para missões onde lobos foram vistos e assim irá se tornar uma caçadora. — Deseja que eu lute contra um lobo? — Desejo que encontre respostas com um lobo. Luka não fora o único a ser mordido por eles, e preciso salvar o meu povo. Infelizmente não posso sair do castelo, pois sou as muralhas que protegem as pessoas. Fosse imaginação sua, ou fosse algum sinal divino, a figura do rei estava coberta de uma luz dourada. Parecia forte e sincero, como um aconchego de um pai e a autoridade de um rei. Seus olhos sábios a fitavam encorajando alguma resposta. Ela deveria negar? No instante em que um lobo ficara à sua frente, ela teve medo. Fora salva por um outro lobo e ainda seu pai aparecera lhe dando a oportunidade de fugir. E ela o fez. Fugira com medo. Durante todo o tempo que recebera o treinamento do pai, não imaginara que ele não estaria ali ao seu lado. Na verdade, não imaginaria que ficaria sozinha no mundo. Se soubesse que aconteceria tudo aquilo, teria sido mais responsável e cumprido com as exigências de seus pais. Mas e agora? Deveria aceitar? Era uma possibilidade em se tornar mais forte, em ter sua vingança e se redimir. Redimir com as memórias de seus pais, com o povo de Grevers e Aurillon. Havia aquele fio de esperança da noite anterior, da qual agarrara sedenta. Respirara fundo e sorria determinada. — Eu aceito, vossa majestade. ? Faziam algumas semanas que Maybelle iniciara o treinamento de combate com um dos treinadores dos soldados. Seu crescimento era notável, a ambição de não se dar por vencida a movia a treinar dia e noite, quer estivesse só ou acompanhada. O reino de Aurillon estava concentrado em reconstruir as casas dos sobreviventes, e aos poucos eles retornavam para suas moradias deixando o castelo silencioso e vazio. Quando não conseguia dormir, Maybelle vagava pelos corredores até a biblioteca onde passava horas lendo livros sobre lobos e caçadores de lobos. Fossem ficção ou não, ela lia com máxima atenção. Às vezes acontecia de carregar os livros para o seus aposentos. O rei queria lhe dar um quarto dentro do castelo principal, mas a garota recusara e barganhara o casebre próximo ao jardim, onde o jardineiro guardava suas coisas. Por ser no centro do pátio, onde lhe davam todas as rotas possíveis para qualquer canto do castelo, e para a torre onde montava a guarda para o príncipe. Luka havia despertado e se curara da febre. Parecia melhor, apesar de suas feridas ainda lhe incomodarem os movimentos. Permanecera na torre ao invés de retornar aos seus aposentos, devido ao pedido do médico em observá-lo por mais algumas semanas. Fora apresentado à Maybelle e chegara a achar estranho uma garota de sua idade lhe proteger. Da mesma forma que Maybelle achava o príncipe frágil demais para governar. Diante das primeiras impressões, nenhum dos dois conversaram mesmo estando sozinhos no quarto da torre. Maybelle sempre chegava quando escurecia, sentava-se na janela e ficava observando o lado de fora silenciosamente. Não dirigia o olhar ou palavras ao rapaz. Parecia nem se importar se ele estava acordado ou dormindo. Ele, por sua vez, a observava silenciosamente. Era uma bela garota, apesar de suas roupas serem escuras e pesadas como os dos soldados. Os cabelos pretos caíam nos ombros e os olhos azuis escuros pareciam refletir o céu noturno. Serena. Nenhuma outra dama poderia parecer tão bela de tal maneira, mesmo em fardos de soldados. E quando aproximava da janela da torre, podia assistir aos seus treinos e apreciar a sua motivação. Jamais havia visto uma garota de quinze anos forte e determinada. Ela estaria à vontade ao seu lado? Estaria sendo forçada por seu pai a montar guarda ali? O que ela pensaria sobre si? Queria saber tantas coisas sobre aquela garota, que seu coração batia acelerado só de nervoso. Arrumando-se na cama e cobrindo o peitoral enfaixado com o quimono, Luka olhara para a janela e respirara fundo. — Acha que eles irão voltar? — Questionara por fim, recebendo o silêncio como resposta — Os lobos, quero dizer. — É provável — Respondera ela, sem desviar os olhos do lado de fora, sem sorrir ou lhe demonstrar alguma pista de suas emoções. — Acha que irão voltar para me m***r? — Vai saber — Sussurrava Maybelle, apoiando o queixo na palma da mão, parecendo cansada. — Tenho a impressão de que essa matilha não é como as demais. Luka sorria, finalmente conseguira conversar com a garota. Mesmo que fosse sobre um assunto assustador para si. — Por que achas isso? Maybelle virara o rosto o suficiente apenas para olhá-lo. Pela primeira vez ela o olhava nos olhos, fazendo o príncipe prender a respiração. — O atacaram primeiro, vossa alteza. Depois foram à Grevers. Um plano bem bolado para lobos. — Devem ter percebido que sou ponto fraco do reino. — Sussurrava o rapaz, fitando as mãos sobre seu colo que apertavam os lençóis. Ora, quando havia ficado irritado consigo mesmo? — Levando em consideração que sobrevivera à uma mordida de lobo, não o chamaria de fraco. Luka erguera os olhos novamente para Maybelle, que ainda o fitava friamente. Apesar de ela não parecer alguém tão calorosa, conseguia perceber palavras confortáveis em si. — Não me vê como um príncipe fraco? Maybelle voltar a encarar a janela em sua postura relaxada. — É da fraqueza que emerge a força. É do medo que nasce a coragem. Suas palavras pareciam sussurradas ao vento, de maneira natural. Como se houvesse nenhum significado por detrás delas, nenhum propósito. Talvez fosse a levianidade de suas palavras que fizera Luka sorrir e aceitar que havia se apaixonado pela aquela garota. ? Meses haviam se passado e Maybelle conseguira encontrar um caminho de vida da qual desejava seguir. Quando recebia algum elogio pelo seu progresso nas lutas, ou por conseguir cumprir alguma missão do reino, ela sentia sua alma vibrar. Ter alguém para reconhecer seu esforço era prazeroso e motivador. Aumentava sua vontade em conseguir mais e mais. O problema era que ali em Aurillon não haviam tantos recursos para ela crescer. Estava se sentindo presa. Em um dia ensolarado, a garota retirava da túnica para ficar de calça e regata, facilitando os movimentos de sua espada. Com os soldados ocupados em suas missões, haviam alguns dias que treinava sozinha próximo à torre em que montava guarda. Vez ou outra erguia a cabeça para verificar a janela, onde recebia o aceno de Luka. No final das contas havia construído uma amizade com o príncipe. Acreditava que ele era parecido com o rei, no quesito de enxergar nos outros o seu potencial, apesar de não ver a si mesmo. Se ele superasse as dores de seus machucados, Maybelle acreditaria que seria um futuro rei bom. Apesar de que suas dores não eram simples de serem lidadas. Noites de lua cheia eram um tormento da qual Maybelle jamais sonhara em vivenciar. Chegava a se questionar até se seus pais seriam capazes de lidar com aquele problema. Contudo, havia aceitado a oferta do rei como uma forma de sobreviver e se tornar mais forte para se vingar. A condição do príncipe Luka seria uma experiência valiosa, da qual Maybelle cerrara os dentes para tentar resolver. Fosse estudando, fosse lutando. Tornando a mover a espada no ar e girá-la junto de seu corpo, Maybelle treinava concentrada sob o sol quente. O calor não lhe atrapalharia, mas o olhar de uma pequena garota sim. Já havia se acostumado a ser assistida por Luka, mas não por Shaye. Faziam alguns dias que a garota escondia-se atrás da pessegueira e ficava a olhando intensamente até que uma das damas de companhia a encontrasse e levasse para dentro do castelo. Em nenhuma vez havia conversado com sua irmã novamente. Optara por deixá-la livre em seu tempo, principalmente por não se lembrar de Maybelle. Talvez fosse essa a ferida que mais lhe doía. Respirando fundo, tornara a treinar até que fosse a hora do médico entrar na torre. Então, ela se recolhia no casebre onde tomava seu banho e vestia da farda e retornar à torre onde montaria guarda pela noite. Sempre alerta. Sempre vigilante. O silêncio da noite era ideal para trabalhar sua intuição e os sentidos. Principalmente a audição. Quando o príncipe ia dormir, era o momento perfeito para buscar presenças e ouvir algum som vindo da Floresta Uivante. — Fico a me perguntar quando que você dorme — Questionava o príncipe ao se juntar a Maybelle na janela. — Não consigo dormir como antes — Sussurrava a garota, observando Shaye correr pelo pátio sendo seguida pelas damas. O príncipe soltara um riso abafado e olhara de canto para Maybelle, presenciando um dos raros momentos em que via um pequeno sorriso despontar dos lábios. — Tens certeza sobre essa decisão? — Maybelle o olhara curiosa, e o príncipe virou-se de costas para a janela — Eu sei que minha mãe a adora, mas ela não deixa de ser sua irmã. — Prefiro que ela seja feliz com a rainha. Viver comigo irá fazê-la se lembrar de coisas assustadoras, e eu não posso garantir a segurança dela por ora. — És forte, Maybelle. Se consegue proteger a mim, conseguirá proteger de sua irmã. — Agora ela é sua irmã — Sussurrava Maybelle, sorrindo para o príncipe. — Além disso, não pretendo ficar no reino por muito tempo. — O quê? Surpreso, o príncipe ficara de frente para Maybelle, que apoiava a perna da janela em que estava sentada e fitava a floresta. Não brincava, muito menos parecia se despedir. — Está partindo? — O rei me deu permissão para uma missão fora de Aurillon, onde irei me encontrar com outro caçador de lobos e receber o treinamento que preciso. — E quando vai voltar? — Não faço ideia, levarei o tempo que precisar para ficar mais forte. Maybelle não concedera nenhuma outra informação à respeito de sua partida. Tampouco contara à Luka quando iria. Para o príncipe, acordar e olhar para janela ansiosamente tornara-se uma rotina a partir de então. Pelas semanas seguintes, ele suspirava aliviado em vê-la sentada em sua pose habitual, observando a floresta da janela. Até que chegara o dia em que ela não estava mais lá. Nem nos dias seguintes. Nem nos meses seguintes. Nem no ano seguinte. Nem nos anos que vieram depois. ───────•••─────── Estou sozinho pelas ruas em que costumávamos andar juntos Mas como uma mentira, eu não consigo acreditar em nada ?
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