Levantei-me naquela manhã com uma dor no peito, como se minha madrugada tivesse sido movimentada no sonho e meu espírito tivesse passeado por aí. O mero ato de abrir os olhos, na segurança de meu quarto, trouxe minha alma de volta para meu corpo, perfurando-me o peito tal qual um punhal afiado.
Sou um homem de método. Ainda de olhos fechados, tateei com meus pés quentes no chão frio em busca das minhas pantufas e as calcei. Levantar foi como suspender o peso do mundo e a dor na alma latejava meu peito. Dei alguns passos em direção a cozinha do meu mini apê, um quarto e sala no centro do Rio de Janeiro. O lugar é tão pequeno que quando me viro na cozinha parece que estou no banheiro.
O chão é de um vermelho empoeirado, uma coisa h******l da qual já tentei me livrar do embaçado infinitas vezes. Nenhum produto inventado até esses idos de 1987 resolve. Vivo aqui há 13 anos, mas nem sempre tudo foi assim. Vim fugido para a capital. Não fugido da polícia ou porque tenha cometido alguma ofensa de honra muito grave no interior. Eu queria ver a cidade grande, os artistas, tinha a v*****e de fazer algum curso e viver algo além.
Os livros sempre foram meus íntimos companheiros, os discos meus fiéis escudeiros. Na juventude, acreditava que estar perto da vida me traria vida. Na juventude, a gente acredita em muitas bobagens e temos certezas em demasia. Pois então, fugi do meu pai que queria que eu fosse médico e da minha mãe que queria que eu fosse padre. Minha mente desligava sempre que eles começavam a falar em legado, piedade, misericórdia e dever. O único dever que sempre tive foi com minha própria consciência. Religião nunca me ligou ao Deus.
Ainda na cozinha, naquela fatídica manhã, abri o armarinho em busca do meu ** de café. A leiteira já estava no fogo com a quantidade exata de água em ponto de ebulição. O filtro de pano, amarronzado pelo tempo de uso, devidamente posicionado. Em poucos segundos, o sacro gesto matinal inundava todo o centro do Rio de Janeiro com o mais doce perfume de ** de café barato e pão com manteiga.
Depois que comi, fui em direção ao elevador velho do prédio e cruzei com um vizinho, um gato de apartamento meio rebelde e um vaso de planta com espinhos. As paredes eram tão finas que podia ouvir o peido e o arroto de Demétrio, que era discreto no corredor e muito polido no trato com a gente, mas era um ogro atrás das portas de seu apartamento de quatro quartos onde vivia com a esposa e dois filhos.
Se eu não fosse um caboclo de 1,85 de altura, que não passa facilmente despercebido e tem certo impacto visual de força bruta, até temeria os gritos de ódio do vizinho. Suspeito que sua esposa, senhora muito piedosa, sofria com quedas frequentes da escada num apartamento plano e num prédio com elevador.
Já alcançava a portaria quando ouvi um barulho que me gelou a espinha. Foi um tique seco, como se alguém tivesse dado um brinde com taças vazias de cristal. Olhei para meu lado esquerdo, por debaixo da porta do zelador que morava ali mesmo no térreo e mais nenhum outro movimento ou barulho sinistro me chegou aos ouvidos. Peguei a chave, por se tratar de um sábado não tinha serviço de portaria, enfiei na porta e me lancei no drama que estou prestes a descrever.
Era agosto e a mulher no rádio me disse para levar uma jaqueta devido ao mau tempo que estava previsto para o final de semana. Eu não acreditei que São Pedro me trairia logo no sábado, mas ele pareceu não se importar quando, no caminho para o ponto de ônibus, gotas grossas de uma chuva gelada atingiram meus braços desnudos, a bermuda e o chinelo, meu melhor traje social.
Não esperei muito no ponto até que meu ônibus chegasse. Tecnicamente, quando não se espera nenhum ônibus específico qualquer ônibus é o que você espera. Juntei alguns poucos cruzados trocados que estavam no meu bolso, passei ao motorista e fui em direção ao meu banco cativo em qualquer coletivo de qualquer rota que estivesse fazendo no dia.
Sábado era o dia de ver o mundo. Depois da rotina pesada de uma semana de um trabalho excruciante, da janela eu via o Rio de Janeiro que eu sonhava. Um moço do interior sempre tem grandes ilusões e, salve Cartola, o mundo é um moinho de sonhos e nos reduz ao **. Literalmente. O ônibus seguia quase vazio pelas ruas, dois ou três passageiros entravam e saiam. Eu estava perdido em pensamentos até que meus ouvidos se abriram.
Como se um tampão denso de cera de ouvido ou – sabe-se lá o que mais podemos colecionar dentro da cabeça – tivesse sido retirado, pude ouvir a frase cabalística sendo sussurrada pelo passageiro que estava no assento posicionado algumas fileiras à minha frente:
– Seu i*****l, antes de m***r alguém, sempre há de se ter em mente o que vais fazer com o corpo antes!
Um homem alto, magro, branquinho e ruivo se encolhia ao ouvir essas palavras assombrosas. Sua aparência era estranha, um homem frágil e lânguido, meio molenga. O dono da voz era forte, relativamente baixo, vestia uma blusa verde musgo e o cabelo era encaracolado e bem escuro. Não pude ouvir mais nenhuma palavra da conversa nervosa que estavam tendo, olhavam furtivamente para todos os lados, assegurando sempre a descrição devido a provável seriedade da matéria.
Os dois homens se levantaram e os fitei por alguns segundos, a diferença e o contrate entre os dois era interessante. A frase que ouvi era peculiar. O ônibus parou e eles se encaminharam para a porta de saída. Pularam para fora em um relance e, antes que eu tivesse consciência dos meus atos, como se tivesse ouvido o canto de uma sereia naqueles lábios grotescos do homem gordo, estava também eu caminhando numa rua que não recordo o nome atrás de dois completos desconhecidos.
De todos os livros que li, os romances policiais eram os melhores. Nunca fui um douto em coisa nenhuma, mas a esperteza de Sherlock Holmes me suspendia para um mundo de fantasia do qual eu pensava tudo ser capaz de deduzir. Por receio, mantive uma distância dos homens que continuavam caminhando e cochichando na mesma rua. A cada passo que eu dava, podia sentir meu coração pulando e querendo saltar pela minha garganta. “Ora bolas, João Márcio, seja homem!” era o que eu repetia na cabeça.
Nos meus 33 anos de vida, a gente sabe quando algo está acontecendo para nos arrebentar. Seja para bem ou m*l, como a primeira vez que bebi uma dose de uísque escondido do meu pai lá de volta em casa ou como a primeira vez que me deitei com uma mulher. Eu sabia que os próximos passos e decisões que eu tomaria me arrebentariam para sempre. Só que tendo ao prever sempre o desastre, como quando minha mãe sofreu de varíola e eu pensei que ela ficaria parecendo um cachorro sarnento para sempre.
Enfim, os dois indivíduos cruzaram para o outro lado da rua e entraram numa viela com um terreno baldio do lado. Quem tem um pouco de criatividade já consegue exatamente prever o que estou prestes a contar. Eles adentraram ao matagal, eu me mantive distante e os perdi de vista. Achei que não seria esperto de minha parte entrar ali, sabe-se lá o que poderia estar acontecendo com todo aquele papo de corpo e de morte.
Teria o raquítico ruivo matado um oponente, talvez para salvar a honra de sua irmã ou numa briga de bar? Seria o gordo do cabelo encaracolado um bandido, o dono do jogo do bicho, um capanga do prefeito? Ignorei o que esgoelava minha consciência e adentrei no mato atrás da resposta. Se havia um morto, não importava, desde que eu não fosse percebido pelas duas entidades que me apareceram naquele ônibus 135.
Meu passo no mato fazia barulho e a lama do solo úmido sujava minha botina. Não consegui ser discreto, vagaroso ou invisível como deveria porque dei logo de cara com um homem ruivo de joelhos em volta daquela cena h******l que, de certo, era de total autoria e responsabilidade dele. O homem gordo da blusa verde segurava uma pá como se fosse um machado, lembrei-me logo da revolução e de como eles arrancaram pescoços por muito menos que aquela cena.
Pude ver o pavor e a barbaridade do mundo naqueles olhares. Só que como tudo no mundo é cinza e não há divisão de cores como nos potinhos de tinta que a gente encontra nas papelarias, havia também misericórdia e um tipo estranho de amor naquela cena sangrenta. De fato, havia um corpo. Homem que sou, não pude conter minhas lágrimas e meus joelhos também se renderam ao chão. Estava agora face a face com o ruivo, o corpo estendido entre nós e o gordo como um estripador prestes a acabar com a sessão de t*****a.
A vítima? Uma garotinha de cinco anos em posição fetal, lágrimas choradas por todo lado, por um cachorrinho doente que foi morto por seu pai. A história toda se tratava do tiro de misericórdia para um paciente incurável. O homem ruivo, Roberto, ficou tão abalado que não conseguia sequer mexer no bicho para jogá-lo num buraco de terra qualquer. Sua fraqueza era também sua grandeza e por isso foi buscar o primo que era homem bruto para fazer o enterro dos tantos miolos estourados daquele cachorrinho.
Eles ficaram um pouco desconcertados com minha presença e com a força das minhas lágrimas, mas era uma cena tão bonita que não pude me conter. Depois, enterro feito e mãos limpas, dividimos um café na padaria e entendi toda essa história que acabei de contar. Voltei para o meu quarto e sala, direto para me limpar no cano de água gelada do banheiro, agradecendo a São Pedro pela chuva que enviou e por me escorregar para um retrato do mais puro amor e covardia.