— Perdoe-me, padre, pois eu pequei.
Além das grandes portas de madeira envernizada e através das janelas de vidro basculante, ouviu-se um leve estampido de trovão, onde quer que fosse um raio caindo não muito longe dali. Como se de alguma forma os anjos já soubessem quem estava diante do altar daquela igreja, ajoelhando-se diante de um homem completamente ignorante ao perigo.
— Estou escutando, criança — respondeu o padre gentilmente.
Alanea sorriu brevemente, sufocando com poder sombrio e infernal aquela parte obscura que começava a tomar forma abaixo de sua pele, incitando-a dissolver aquele homem em poeira e fogo. Mas ainda era pouco poder. E ela não arriscaria usar qualquer coisa que não as próprias mãos. Não ali em solo sagrado.
— Tenho pecado além do que é possivel para um ser humano, padre. Temo que minha alma não seja perdoada.
O padre ajeitou o colarinho de sua vestimenta, embora não estivesse nem um pouco interessado em desviar a atenção da pessoa diante de si. De fato havia se perguntado sobre a origem da estranha garota que momentos antes implorara por ajuda diante das portas da capela, pedindo para que o padre a escutasse com urgência, como se fosse perder a vida se tivesse que esperar pelo dia seguinte — dia da missa de domingo, e dia em que ele deliberadamente estava disponível para confissões.
E, de fato, ela parecia alguém que fosse perder a vida muito brevemente, pois não passava de uma garota magra e pálida, com cabelos vermelhos como o fogo crepitante e olhos castanhos nublados de lágrimas.
O que o padre jamais poderia imaginar é o que o próprio m*l espreitava sob os ossos daquela jovem, e era este mesmo m*l que a havia levado até ali. O mesmo m*l que permitia que ela escutasse com clareza qualquer pensamento do padre, como se pudesse escutá-lo sussurrar em seus ouvidos.
Estava atuando. Para o padre, para Deus, até mesmo para o próprio diabō. Mas nunca para si. Estava certa de que aquela era a única maneira de recuperar o controle de seus poderes. Para acabar com a guerra antes que ela começasse.
E, por um mísero segundo, ela sentiu pena do padre. Sentiu pena do que deveria fazer com ele. Sentiu pena, porque ele realmente estava disposto a escutá-la e afugentar os seus medos, porque ele, de fato, estava disposto a oferecer abrigo e comida para ela — cujo ele imaginava ser uma jovem sem-teto. Mas tão logo sentiu, tão depressa o sentimento se foi, fazendo com que uma pontinha de rancor envolvesse seu coração.
— Deus sempre perdoará as almas que são sinceras para com suas ações, criança — prosseguiu o homem, abaixando-se para se igualar a altura dela. — Seu coração deve ficar em paz ao rezar três pai-nosso e duas ave-maria junto ao terço.
Alanea quis rir, dizer que rezar já não fazia parte de sua realidade há meses, anos, séculos. Mas ainda não. Em vez disso, obrigou-se a olhar para o padre através dos cílios, enchendo seus olhos com mais lágrimas falsas, completamente ciente do novo relâmpago que retumbou nos céus.
— Eu não acho que Deus possa me perdoar — ela disse, bastante ciente do clarão do raio que refletiu pelas janelas direto para o altar, onde uma imagem de jesus cristo crucificado repousava. Observou a imagem e semicerrou os olhos, esperando que se movesse, que os santos daquela igreja tentassem impedi-la por conhecer suas intenções. Por conhecer a maldade em seu coração. Mas nada fizeram. Então, ensaiou um sorriso frágil e o dedicou ao padre. — Tirei vidas inocentes, e sucumbi ao m*l, perdi minha humanidade enquanto tentava descobrir quem era e qual era meu próposito nesta terra, nesta nova vida.
O padre recuou levemente o tronco, por fim, franzindo o cenho. Estava quase, ela refletiu imediatamente. Estava quase conseguindo trazer o melhor que podia obter de pessoas com fé inabalável: o medo.
E com o medo... com o medo ela se tornaria o próprio terror dos sete infernos. E era em busca disto que estava ali. Em busca da blasfêmia, da vergonha e do pecado.
Pois nenhum santo, nenhum anjo poderia impedi-la de pisar em solo sagrado, mesmo com seu sangue demoníaco, pois ela estava exaurida, totalmente drenada de seus poderes. Não era mais do que uma criatura vazia e oca.
E aquele padre em sua pequena capela era o que ela precisava para retornar, para provar a Lúcifer — seu pai — de que era forte o bastante, de que retornaria ainda mais forte se ele permitisse, e levaria o caos àquele inferno que conheceu, que faria com que pagassem pela perda de seus poderes e que mataria cada maldito anjo caído que encontrasse em seu caminho.
Mas ainda não. Não enquanto o padre não sentisse o medo genuíno. Não enquanto ele não implorasse por Deus e seus santos; não enquanto sua Divindade não estava olhando para eles.
— Do que está falando, minha filha? — sussurrou o padre, parecendo preocupado com a sanidade da garota.
— Estou falando, padre, dos homens que matei para retornar ao inferno por cinco séculos. Das guerras que causei no mundo humano, para reencarnar quantas vezes fossem necessárias. Estou falando das crianças que matei no ventre de suas mães para que pudesse me tornar sábia e bela pelo resto de minha vida imortal — ela falou, erguendo-se em um joelho, visualizando-o de cima, como uma rainha sem trono. — Estou falando que não há um Deus misericordioso como todos pensam, e nem um bom motivo para que o senhor tenha dedicado anos aprendendo sobre seus ensinamentos. Porque ele não pode salvar você. Porque eu escolhi você. Escolhi matår e fazer você sofrer. Porque eu preciso voltar ao inferno. Preciso terminar a minha missão nesta vida para começar a próxima, e tudo começa neste dia, como em todos os séculos. Este mesmo dia em que uma jovem mulher aparece pedindo ajuda em uma igreja, onde consegue levar um padre ao pecado ou a completa destruição de sua alma, e então, ela retorna, sem memórias, sem lembranças de cada vida tirada e cada século vivido. E você, padre, é o meu escolhido.
Alanea viu, tão fácil quanto inalar e soltar o ar, quando o padre empalideceu e engasgou. Viu quando ele vagarosamente se levantou, claramente aturdido, mas já não pensando que se tratava de uma doente mental. Pois ele se agarrou ao terço em seu pescoço e segurando a cruz entre os dedos, começou a murmurar:
— Que Deus tenha misericórdia de sua alma.
E então ela sorriu.
Dentes brancos como os ossos da morte reluziram sob seus lábios bonitos, e lá fora, os relâmpagos pararam, pois Deus estava olhando. Pois ele estava mandando seus cães e querubins para proteger o padre. E ela sentiu a presença deles; sentiu a pureza. Sentiu o chão estremecer abaixo de seus pés conforme caminhou para o altar, seguindo o padre que caminhava aos tropeços para trás.
— Eu não preciso de misericórdia, padre — respondeu, alcançando-o abaixo da imagem de jesus cristo, e aproximando-se o máximo que podia para sussurrar contra seu rosto lívido e chocado. — Preciso que a sua fé me condene ao inferno por mais um século, porque eu tenho uma guerra para evitar.
Então ela inclinou a cabeça para o lado, e o padre imitou seu movimento, embora o tenha feito contra sua própria vontade, apenas momentos antes de vê-la erguer as mãos ao lado da cabeça dele e forçar ao lado oposto. Num momento ele estava encarando-a com olhos arregalados e boca seca de palavras, noutro, estava com o pescoço quebrado e os olhos opacos e sem vida.
O estralo do osso se partindo no pescoço do padre ressou em seus ouvidos, apesar de não ter durado muito tempo, pois trombetas soaram acima, muito acima de sua cabeça, anos-luz para cima do céu, onde Ele a observava mais uma vez condenar sua próxima reencarnação. Onde seus cães e anjos rugiam em fúria por suas ações em vida e a expulsavam do céu por mais um século.
E lá estava ela, filha de Lúcifer, receptora de Lilith, pisando em solo sagrado, agachada diante de um padre cujo corpo fazia questão de desmembrar com as próprias mãos, soltando sua fúria e força imortal, apesar de não ter quaisquer resquício de poder sobrenatural que havia tido no começo de tudo. E acima dela, eles a amaldiçoavam, rugiam em fúria, soltando seus cães para recolher aquela alma impura.
Alanea se voltou para a imagem acima do altar e fez o sinal da cruz em sua testa, muito ciente dos sons se aproximando, da morte chegando junto com os cães celestiais. Era o ato final de sua blasfêmia.
— Ajude-me, pai. — Pediu, e não era a Deus que se referia.
Ele escutou, e o chão tornou a estremecer. Muito mais rápido do que os cães celestiais, Lúcifer pessoalmente foi ao seu socorro, porque ele sabia quem era sua primeira filha e do que ela era capaz. E ele não fez com que ela voltasse ao inferno, não a deixou desamparada e sem poderes.
Ao contrário, ceifou sua vida imortal como um estalar de dedos e jogou a alma de Alanea ao vento, para que reencarnasse e novamente pudesse voltar ao inferno quando estivesse pronta para reinar por mais um século.
E, quando voltasse, que todos se lembrassem das orações a Deus e seus santos, pois a rainha do inferno estaria ainda mais sedenta por poder e fogo.