Capítulo 01

2634 Words
Eu sentia os calos em meus dedos roçando contra o volante escorregadio, a cartilagem tão entorpecida pela falta de circulação do sangue que nem mesmo o assobio gélido do vento entrando pelas quatro janelas entreabertas fora capaz de ajudar. Meus olhos fitaram a água chegando até os meus joelhos, e, mais uma vez, ergui a cabeça com cuidado — temendo alguma concussão com o provável acidente —, e tentei enxergar o lado de fora. Ainda estava escuro, mas eu podia jurar que os números no painel marcavam 6:35 da manhã antes que se apagasse completamente. A demora pelo nascimento do sol era só mais uma de minhas inúmeras e ínfimas preocupações. Havia ainda aquela principal: Como e por quê eu estava dentro de um carro quase completamente submerso? O espelho retrovisor refletiu uma imagem que não me pareceu familiar. Um rosto levemente arredondado de cor pálida, lábios cheios e olhos de pálpebras caídas, protegendo grandes esferas de íris na cor marrom-uísque. Meus longos cabelos de um preto intenso provocavam sombras ao redor dos meus ombros — sombras que eu podia jurar estarem se movimentando e aumentando como um telespectador curioso para enxergar adiante — provocando-me momentos de pânico repentino, em que eu me virava apenas para encontrar o vazio, depois, retornava o meu olhar para os meus pés congelando pela água fria e permanecia estudando a dormência dos meus dedos. Como se respondesse a um chamado distante, meus ouvidos estalaram com um zumbido. Finalmente fui capaz de mover as minhas mãos, guiando-as até a minha cabeça. Meus dedos embrenharam-se em meus cabelos, tocando, reconhecendo, e um vinco se formou em minha testa quando encarei aquela imagem no espelho. Alguma coisa não parecia certa com aquele corpo. Algo não parecia certo comigo. Soltando o ar em pequenas polegadas, testei puxar uma das pernas. Água respingou e retumbou em meus ouvidos, mais alto do que eu esperava que soaria pequenas doses de gotículas. Novamente aquela cautela me fez girar a cabeça para trás, buscando uma ameaça. Você está segura, eu repetia enquanto puxava a outra perna. Minhas calças pesavam e grudavam na minha pele, mas isso não chegava perto da coisa mais preocupante para mim. Quem exatamente sou eu? Perguntei em um murmuro seco, procurando pela resposta em cada suporte ou pequena alcova do carro. Acreditei que se estava em um carro que fosse meu, haveria algum documento ou certificado, e quase gritei de alívio quando puxei o quebra-sol e uma carteira despencou em meu colo. Puxei o primeiro documento com foto, e lá estava a mesma garota que me olhava no espelho. Eu desci e ergui o meu olhar para ter certeza, e eu tinha. Meu nome, ao que dizia o documento, era Keigh Flamel, nascida em San Diego, Califórnia, poucos meses para completar dezenove anos. Com o cenho ainda franzido, deixei o documento no banco do passageiro e retornei o meu olhar para o retrovisor, buscando enxergar o lado de fora. Ignorando a estranha frieza na maneira que me observava, fiz um segundo autoexame a procura de possíveis ferimentos. Eu estava intacta, com exceção de uma pequena dor abdominal, mas completamente sã e salva de um acidente que lançou o meu carro em um lago, ou qualquer coisa parecida. Meus dedos ainda congelados protestaram quando abri a porta do carro e saltei na água, encharcando todo o material do Jeans que inicialmente não estava molhado e umedecendo consideravelmente as pontas dos cabelos que iam até a cintura. Antes de chegar à margem do riacho que produzia pequenas ondas por correr suavemente ao meu redor, pensei se não teria sido uma boa ideia verificar os bancos de trás de maneira minuciosa. Quem sabe o que eu poderia ter encontrado ao menos em busca de um agasalho, pois ali fora, com o vento da calada madrugada gelada e com roupas molhadas... Pareceu insano usar apenas uma camisa e calças. Eu tremia tanto quando me coloquei de pé, que o ruído estalava em meus ouvidos, assustando-me o tempo todo. Trinquei os dentes, sentindo um leve desconforto no maxilar, e dobrei os braços ao meu redor, protegendo-me da maneira que me cabia enquanto girava no mesmo lugar, realizando um reconhecimento tático. Não sou capaz de dizer como parte de mim ainda se mantinha tão cautelosa e estupidamente calma em uma situação desesperadora, mas eu continuei respirando lentamente, controlando cada impulso que me implorava para correr e gritar. Olhei para o carro ainda estacado na água, e tracei uma linha até o alto, onde encontrei uma pequena ponte. Não era de se surpreender que eu houvesse caído de lá. Qualquer pessoa com um pouco de álcool em seu sangue teria perdido o controle em uma ponte sem muretas. Eu não admitia a terrível verdade de que não estava bêbada. Pelo contrário. Minha sobriedade era maior até mesmo para alguém que acabara de sofrer um acidente. Eu até mesmo tentei encontrar um meio para escalar até a ponte, mas ela era protegida por terra seca e solo instável. Escalar não estava na minha lista de prioridades, e parecia mais difícil do que se vê em filmes, então girei em meus calcanhares e me aventurei pela trilha de terra, cujo chão de pedras soltas e plantas rasteiras se estendia até uma aberturå para a floresta silenciosa adiante. Era estupidō. Eu sabia disso. Entrar sozinha em uma floresta, logo após um acidente, não é algo muito inteligente de ser feito. Acrescente ainda a escuridão tão referente à noite e ao terror, longe de um amanhecer iminente, e o título de burrice tem um novo dono. Meus passos eram propositalmente altos. Acreditava que essa seria uma maneira de espantar qualquer animal a espreita. E pareceu funcionar por um tempo. Galhos farfalhavam ao longe, criaturas fugindo de meu caminho. As traiçoeiras plantas rasteiras me faziam tropeçar de tempos em tempos, e isso me distraía dos galhos mais altos, onde espinhos esperavam para beijar o meu rosto em uma passagem dolorosa. Minhas bochechas queimavam quando algo me fez girar a cabeça repentinamente para a esquerda. Eu pensei ter ouvido um ruído, uma canção, e, então, silêncio. Foi rápida o suficiente para que eu soubesse a sua importância. Venha para mim, parecera dizer. Pisquei várias vezes, tentando decifrar o som, apesar de não escutá-lo mais. Era como uma voz jovial e velha, o chamado de um amante e uma mãe, rápido e lento. Sombrio. Minhas pernas moveram-se por conta própria e eu me peguei correndo pela trilha, sufocando as plantas rasteiras com os meus tênis pesados pela água. A floresta nunca parecia ter um fim, e eu estava quase me rendendo ao cansaço quando outro som me fez parar. Este não era uma canção, e não se parecia com um chamado. O chão estremecia enquanto o som se aproximava. Cada vez mais perto, ameaçador, h******l. Uma imagem desagradável correu em minha cabeça. Presas, patas e a maldade pairavam sobre uma criatura cujo rosto eu era incapaz de enxergar. Corra, corra, venha até mim. Não precisei ouvir um segundo comando, desatei a correr por entre as arvores mais próximas do que deveriam, e me embrenhei em cada passagem de rochas bloqueando o caminho. Galhos explodiam atrás de mim, esmagados por algo mais pesado do que eu poderia lidar, maior do que eu imaginava. O próprio solo pareceu se mover sob meus pés, lançando-me adiante com cambaleios. As arvores uniam-se ainda mais enquanto eu passava, como se a criatura em meu encalço houvesse despertado a floresta. Como se as próprias arvores enegrecidas pela noite estivessem tentando me proteger. Escorreguei em uma parte úmida no solo e me apoiei em uma arvore, apertando uma das mãos em meu estomago. Minha testa arranhou-se contra a casca do tronco, e arrepios percorreram a minha pele com o som, ainda tão alto e próximo que eu podia dizer que o animal estava exatamente a poucos passos de me pegar. Engoli a queimação em minha garganta, e tropecei novamente, girando em volta. Parecia que eu estava correndo em círculos, presa no mesmo lugar. Não ousei esperar que a criatura aparecesse para me guiar um caminho, parti adiante, suspirando um aleluia quando o caminho se abrira para mais uma fendå nas rochas. Eu acreditava que atravessando-a encontraria uma rota de fuga. Eu tinha certeza que só precisava atravessar. E eu fiz. Gelo percorreu em minhas veias, forçando-me a soltar um grito pelo choque em meu corpo aquecido pela corrida. Cabelos e pedaços da minha roupa se agitaram pela lufada de ar que me atingiu de imediato, e um segundo depois, não havia escuro ou qualquer floresta. Eu estava em uma colina, olhando para o que pareceu ser um extenso rio que se estendia ao horizonte, banhando o sol poente em um tom profundamente escuro de marrom-avermelhado, deslizando entre uma ravina rochosa. O desfiladeiro não parecia ter um começo e sequer um fim, serpenteando entre as rochas abaixo do intenso tapete em tom de verde-claro das vegetações em sua encosta. Meu peito se encheu de alivio, mas a minha cabeça gritou contra as inconveniências. Aquilo parecia malditamente errado. Era lindo, profano, e sombrio... Como uma armadilha para quem quer que ousasse pular daquele penhasco, ocasionando em uma queda livre para as pedras impiedosas abaixo. Confesso ter considerado a queda, a julgar pela sequência de sons que me alcançaram no momento seguinte. Eu não dei mais do que três passos sobre a grama verde e fresca até escutar um grito gutural e olhar atrás, onde a paisagem verde e brilhante contorcia-se ao redor de uma pata enorme — maior do que as minhas duas mãos juntas — e garras tentavam me rasgar. O animal havia, de algum modo, encontrando-me naquele lugar. Então eu corri com toda a minha força restante, sentindo minhas coxas arderem pela velocidade. O chão estremeceu novamente e eu cheguei ao final do penhasco, onde me encontrei encurralada, com duas possibilidades de morte pairando sobre a minha cabeça. E o peso dessa iminência pareceu verdadeiramente sério, porque me senti pesada e abalada, senti que meu corpo entrava em um colapso que jamais senti em toda a minha vida e me peguei buscando por uma oração, buscando nas memórias por uma prece e não havia nada. Desespero me varreu, tão rápido que não senti meus joelhos cederem, até o gramado pinicar os meus dedos das mãos. O animal se aproximava; eu sentia. Não tinha coragem de olhar. Na verdade, parte de mim se recusava a reconhecê-lo. Fiquei de costas, ajoelhada, encostando minhas mãos na grama verde, em busca daquela voz, daquele canto que havia me levado até ali. Em busca do que quer que tenha me feito sobreviver a um acidente de carro sem nenhuma sequela, do que quer que tenha despertado a floresta ao meu favor, do que quer que me fazia sentir pesada e fria, como se algo em meus ombros estivesse lutando para se libertar e me defender. Salve-me. Salve-me. O rugido da criatura soou junto com uma baforada em minha nuca, e meu corpo esfriou quando a primeira daquelas garras alcançou minhas costas num corte certeiro. Mas apesar da dor, apesar do grito que soltei, minha mente tornou a implorar. Preciso de você. Preciso de você. Meu tronco foi puxado com tanta violência que o grito em minha garganta ficou preso, resfolegado pela visão da imensa bestå diante de mim. E eu soube o motivo de ter evitado tanto olhar... De ter evitado que meu medo desse poder a sua maldade intrínseca. Era uma criatura horrenda, alta e de corpo humanoide escuro que terminava em garras e patas. Havia três cabeças sobre o pescoço escamoso — uma humana, outra de gato e a última de uma serpente. As três cabeças sibilaram para mim, e as garras que me prenderam cravaram-se mais fundo em torno das minhas costelas, rangendo ossos e sangue, me arrastando com ele para longe do penhasco, embora eu gritasse e arranhasse a grama do chão em uma falha tentativa de me manter ali. Gritei e chorei. Chorei e amaldiçoei aquela criatura. E continuei chorando enquanto implorava: Salve-me, príncipe dos sete infernos. Salve-me. Fechei os olhos quando um sorriso deformou a cabeça humana, quando senti a dor e o choque de estar sendo esviscerada sem qualquer direito de defesa. E implorei. Implorei para o vento, para a água abaixo do penhasco, para o gramado verde que se manchava com o meu sangue rubro. Implorei ao fundo da minha alma, então algo mudou. Primeiro eu senti um odor diferente, como a chama de uma vela acesa, senti o cheiro de fogo — não enxofre. Fogo puro. E vermelho crepitou em minha visão deturpada pela bestå diante de mim, e por um momento imaginei que meu sangue havia se derramado tanto que uma parede estava sendo formada com ele. Mas então a criatura também se virou para olhar sobre o ombro, e eu tive certeza de que aquele vermelho que queimava com labaredas e tremeluzia não era sangue. Era uma chance de viver. E foi por minha vida que decidi me mover, rolando por baixo da criatura, mesmo com sangue e ossos gemendo. Ela imediatamente se voltou para mim, determinada a terminar logo com aquilo, mas o chão entre nós se partiu em um pequeno tremor de terra, antes que, um segundo depois, um homem aparecesse diante da rachadura, diante de mim, trajando uma armadura de aço negrō. Ele sequer disse uma palavra, sequer pareceu reconhecer a criatura. O homem simplesmente desembainhou sua espada, a lâmina de um preto tão intenso que o mundo pareceu escurecer ao redor. E,tão fácil quanto pareceu, ele cortou a criatura em duas, partindo-a ao meio com um canto do aço contra o vento. Inspirei, sentindo um odor terrível vindo da criatura fumegante. Ela estava pegando fogo, com o que quer que houvesse naquela espada. Estava queimando a criatura que permaneceu viva mesmo com o corte fatal. Meu estômago se revirou e doeu em reconhecimento, porque eu também estava viva com um corte profundo em minha barriga, com sangue escorrendo e ossos doendo. Mas estava viva. E tudo aquilo pareceu errado e perturbador. O homem diante de mim esperou até que a criatura queimasse, até que suas cinzas não fossem mais visíveis conforme o vento a levou dali, e embora não tivesse se passado mais do que alguns segundos, ele pareceu profundamente abalado ao se virar para me olhar. Meu salvador não era um Deus, mas sua aparência não era nenhum pouco difícil de se babar. Cabelos castanhos na altura dos ombros voaram para o seu rosto quando um vento sombrio nos atingiu, uma barba cheia e escura escondendo parcialmente as feições angulosas e extremamente belas. E ali, de pé com a espada suja de sangue, percebi o quão letal era a sua presença. Olhos de um castanho tão escuro que poderia ser preto me observaram, e eu notei como com a barba cheia aquilo combinava perfeitamente com o maxilar pronunciado e os lábios rosados e belos. Mesmo sob a armadura eu podia ter certeza da massa muscular e da força escondida ali dentro, considerando também a grande estatura do homem. Agora de frente para mim, eu pude ver que a sua armadura não era de um todo preto. Havia um vermelho escuro e profundo serpenteando todo aquele aço negrō na parte frontal, em um formato de uma imensa cobra que cuspia fogo abaixo de sua língua bifurcada centralizada no peito da armadura. Esperei por tudo o que viesse a seguir, uma nova possibilidade de morrer, um novo ataque. Tudo. Menos por aquela força letal se colocando sobre um dos joelhos, conforme sua cabeça se abaixava em uma reverência tão profunda que o mundo ao nosso redor pareceu prestar atenção, conforme ele falou: — Bem vinda de volta, majestade.
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