Meu celular está tocando insistentemente e eu só desejo que isso seja parte de um sonho, porque tudo o que menos preciso agora é abrir meus olhos e acordar em uma realidade que não seja a que estou vivendo. Demorei tanto para conquistar esse momento, que tenho medo de acordar e perceber que tudo não passou de um sonho em que eu estava deitada na cama do Juliano e sendo abraçada por ele. São incontáveis os tantos sonhos que já tive com esse homem e nunca sequer imaginei que conseguiria essa façanha de amanhecer ao lado dele.
Não me vejo como a princesa do conto de fadas, não me acho a mulher mais gostosa do pedaço e nem tenho apetrechos para atrair o olhar dos homens logo de primeira, a não ser meus olhos verdes, isso geralmente atrai os homens. Apesar do padrão “loira de olhos verdes”, já ouvi que sou sem sal. Ouvi isso de um ex-namorado, ele estava cochichando com um amigo e usando esse argumento para acabar o namoro. Bom, é assim que me rotulo hoje em dia: sou bonita, mas sem sal. Primeiro as pessoas se aproximam de mim pelo meu conteúdo, e minha aparência vem logo em seguida. Minha amiga Luna fala que isso é por conta da minha autoestima baixa. Eu que tenho meus 26 anos, estou solteira e sem nenhuma perspectiva de deixar de ser, quer dizer, agora preciso me corrigir e usar essa palavra toda no passado, afinal, neste momento eu estou com o Juliano e se ele me deixou dormir aqui, isso deve significar alguma coisa.
O Juliano treina comigo na Hípica, mas sem muitos recursos financeiros. Não tem bons cavalos para competir e não consegue boas colocações no pódio. Ele é bom no que faz, mas o que ele tem mesmo de bom é uma desenvoltura fora do comum na cama, algo que ouvi as garotas da Hípica falando super bem. Sim, ele é um troféu bem disputado por lá, e hoje ganhei tanto o troféu do meu salto de 1,10m, quanto o Juliano. Vou repetir: que me deixou dormir em sua casa, em sua cama e abraçadinho comigo.
O celular continua tocando e quando o Juliano se mexe, percebo que não é sonho e que se eu não der um jeito desta m***a parar de tocar, ele vai acordar mais rápido do que eu planejei e será o fim de nosso romance atual, porque ainda não tenho o plano para tornar isso tudo aqui mais durável, já que tudo começou com uma promessa que não vou conseguir cumprir, que é dividir minha égua com ele nas competições.
Abro os olhos e o mundo está girando. O teto está se movendo? Meu Deus, que ressaca dos infernos é essa?
O celular continua tocando, me desvencilho das pernas pesadas desse gato épico, tenho ainda mais raiva quando tenho que também me desvencilhar de seus braços fortes para me sentar na cama, porque tudo o que quero é ficar curtindo meus últimos segundos de tantas vitórias. Olho ao meu redor e tudo está em movimento.
— Atende logo isso, Bianca — ele resmunga sorrindo, mas sem abrir os olhos. Ele costuma ser sempre amável e é uma das coisas que mais me encanta. Gosto do seu sorriso perfeito, gosto de seu rosto liso sem nenhum furo de barba que precisa ser feita, gosto de seu cabelo liso que é penteado para trás de forma perfeita. Ah, como eu almejei tudo isso, como eu sonhei com esse dia perfeito!
Eu pisco algumas vezes, ainda encantada o observando só de cueca. Será que agora é a hora que a pessoa que está me ligando desiste e eu me deito de novo com ele na cama, e então ele me abraça de novo?
Parece que não, porque o som do meu celular aparenta estar mais alto que o normal e está me dando a sensação que vai explodir meus tímpanos. Solto o ar com força e com muita raiva, quem quer que esteja atrapalhando este meu momento memorável, acabou de ganhar uma inimiga mortal.
Finalmente, acho o meu celular barulhento na mesa que fica bem pertinho da cama. Junto com minhas roupas. Junto com as roupas dele. Ai, meu Deus, nem estou acreditando que finalmente ele me enxergou, nem acredito que foi para mim que ele olhou e disse que eu era a melhor Amazona da Hípica. Tudo bem que isso só ocorreu depois que, de forma proposital, eu comentei para nosso treinador que se o Juliano saltasse com a Lancelot, ele iria para o pódio, assim como eu, e é claro que fiz isso quando ele estava perto o bastante para ouvir... Meu treinador, que detesta o Juliano, foi super contra, mas aí o Juliano já tinha ouvido e pronto, não saiu mais de perto de mim. Bebemos juntos, ele me falou coisas incríveis, eu sugeri que ele iria montar minha égua e o resultado é este de agora.
Se eu soubesse que seria assim tão fácil, teria prometido isso há mais tempo. Quer dizer, não teria não, tenho ciúmes da minha égua, tenho medo que ela se machuque, até porque, embora o Juliano seja um bom cavaleiro, ele não tem muita técnica e como não se dá bem com o meu treinador, ele termina se arriscando muito e está fora de cogitação ver minha Lancelot se machucar. Só sei de uma coisa: depois que eu atender o celular, me deitar com meu gatinho e fazer muito s**o, preciso pensar em alguma estratégia para mantê-lo por perto sem estar relacionado com minha égua.
— Bianca, atende logo — ele resmunga de novo e desta vez abre os olhos, fazendo careta. Eu me apresso para ir pegar o celular.
Quando me levanto, uau, o mundo está girando e me sinto dentro do livro da Bela e a Fera, onde os móveis parecem ter vida e ficam andando… Ou será que é Alice do país da maravilha? Onde tudo está maior ou menor?
Ai, meu Deus!
Preciso ser breve, o celular continua muito insistente, alguma urgência deve estar acontecendo e este pensamento me faz focar no que preciso, que é atender essa p***a de celular o quanto antes. Eu vou tateando os móveis e andando como consigo, porque a ressaca está bem ativa e olha que já tem horas que parei de beber. Com certeza, foi a falta de água, lembro do meu treinador alertar isso antes de ir embora da festa, além de ter deixado claro que não aprova meu relacionamento. Meu treinador era um dos melhores amigos de infância do meu pai, então, quando meu pai faleceu, o Sr. Francisco me adotou como filha.
A dor de cabeça surge e eu preciso apenas culpar o meu celular que toca sem parar, foi ele que me fez ficar com dor de cabeça, e não há relação com as duas garrafas de cana que eu e Juliano tomamos juntos, não é?
Alcanço finalmente meu celular e percebo que a ligação é da fazenda dos meus falecidos pais, que meu irmão anda administrando. Graças ao dinheiro que ele me manda mensalmente, consegui comprar a Lancelot e continuamos dando seguimento aos sonhos de nossos pais, que era manter a fazenda em perfeito funcionamento.
— Até que fim você atendeu. — Uma voz áspera e cansada, bem desconhecida, fala.
— Quem é? — pergunto, porque a voz está longe de ser do chato do meu irmão e, sinceramente, não conheço mais ninguém que trabalhe por lá. Há anos não vou para a fazenda.
— Aqui é o Vitalino.
— Vitalino? — minha pergunta saiu um tanto confusa, porque eu continuo sem saber quem está me ligando.
— Vitalino, amigo do teu pai, menina.
Uma vaga lembrança de alguém com esse nome, mas se for a mesma pessoa que eu estou pensando, é um senhor que mora em um sítio que fica em frente à nossa fazenda. Mas, sinceramente, eu estou tão bêbada ainda que posso estar confundindo tudo.
— Sr. Vitalino, me desculpe a cabeça esquecida, mas cadê o Duda? Ainda não sei como posso ajudar ao senhor.
— Teu irmão foi preso e é só por isso que estou te ligando.
— Hã? O quê? — Deve ser algum pesadelo, tudo começou com um sonho bom de estar deitada com o Juliano e logo sem seguida entrei em um pesadelo. Pisco os olhos e me dou um beliscão. — Aiiiii! — Tudo isso realmente é verdade? Ainda tenho minhas dúvidas, mesmo sentindo meu braço doer com minha quase mutilação.
— Oxe, menina, está tudo bem?
— Eu que pergunto ao senhor. O que está acontecendo?
— Como estava dizendo, teu irmão foi preso tem uns dias, ele colocou advogado para tirar ele de lá, mas parece que as coisas estão demoradas demais e a tua fazenda está aqui jogada, sem ninguém à frente. Os bichos precisam de comidas, a colheita precisa ser feita e tem a vaquejada para organizar.
Meu Deus, eu nem sei em o que pensar primeiro, me sinto tonta com o tanto de informação.
— Meu irmão foi preso?— é o que consigo perguntar.
— Oh, menina! Tu tem cabeça de vento mesmo, hein? Bem que teu pai me falava. Mas preste atenção, eu tenho mais o que fazer. Saia daí dessa selva de arranha céus e venha para sua casa organizar a bagunça que teu irmão fez.
— Eu ir para aí? Sr. Vitalino, isso é com o Duda, é ele…
— Menina, ele está preso. Tu já pensou se aqui ficar abandonado por mais tempo, como será? Tem trabalhadores para pagar, tem tanta coisa para fazer.
Engulo em seco e parece que a lucidez vai chegando depressa, levando a bebedeira embora.
— Eu não vou mais me alongar no telefone, porque, como te disse, estou ocupado. Se precisar, quando chegar, posso ajudar você com algumas coisas, mas venha, porque eu não vou tomar conta de nada dos outros. Teu pai era meu amigo, mas ele sempre soube que minha vida é corrida, ele teve dois filhos e vocês dois que precisam colocar as coisas para moer.
— Sr. Vitalino, eu sou dentista…
Ele desliga na minha cara. Eu fico com o celular na mão, ainda me conectando com as palavras dele. Ligo de volta para o número, mas ninguém atende. Eu ligo para o celular do meu irmão, mas só dá desligado. De repente, sinto uma raiva extrema do meu irmão, porque, p***a, o que danado ele fez para ser preso? E porque não me procurou? Há quanto tempo isso aconteceu? São tantas perguntas irritantes e indignantes que surgem e minha cabeça, que de novo me sinto tonta, mas não mais pela cachaça, estou bem sobrea para odiar muito o meu irmão.
Não sei o que ele fez, mas é um fato que não posso deixar a fazenda abandonada. Juramos no leito de nosso pai que cuidaríamos da fazenda, juramos que manteríamos a vaquejada viva, porque o parque da cidade levava o nome de nossa mãe. Eu só preciso achar meu irmão, tirar ele da cadeia e assim que der uns esporros nele, o colocar no eixo e obrigar que continue administrando a fazenda. Só ele saberia fazer isso, o máximo que eu sei é o horário de tirar leite das vacas e andar de cavalo pelas delimitações de nossas terras. O restante, ele aprendeu com nosso pai e eu abri mão de tudo para estudar Odontologia e me tornar dentista. Eu tenho os meus sonhos que envolvem cidade, consultório e hipismo, e ele os dele que envolvem a fazenda e a vaquejada. Ou pelo menos, assim deveria ser...
Um beijo na bochecha me desconectou temporariamente das etapas coerentes que preciso executar para ter de novo a vida no seu trilho.
O Juliano está bem na minha frente, só de cueca e continua impecável. Como alguém pode acordar assim, tão lindo? E ver toda essa beleza me dá ainda mais raiva do meu irmão, afinal, eu me lembro que vou precisar me ausentar uns dias e isso pode envolver o Juliano de novo com outra garota, e então eu entre na sua lista de pegadas passageira da Hípica.
— O que a minha Amazona favorita está pensando? Qual a urgência daquela barulheira toda? — Ele balança as sobrancelhas.
— Meu irmão aprontou algo e eu preciso ir à fazenda do meu pai — falo com decepção.
Ele me observa atento e eu fico tentando desvendar seus olhos, que tendem sempre a entregar o que está pensando. Ele é bem previsível, o que acho um saco, mas sua beleza compensa.
— Acha que vai demorar muito por lá? Temos competição em alguns dias e se estou lembrando bem, você me prometeu… — Ele beija minha boca. — Dividir a Lanceloti comigo.
Ele me beijou, depois de uma noite de muito movimento bom dentro de mim e isso já é um bom sinal. Todos me falaram que ele é do tipo de pessoa que transa uma só vez e depois quer só ser amigo. Ele me beijou agora, de novo. Talvez não precise de muito esforço para que isso aqui não seja tão passageiro como costuma ser com as outras meninas e, talvez, essa distância de alguns dias não vá atrapalhar nada.
Mas aí vêm em minha mente suas últimas palavras: Lancelot.
Meu Deus, estou mesmo ferrada! Cheia de problemas para resolver e tudo por conta do meu irmão i****a e da minha paixonite aguda pelo Juliano.
Preciso ganhar tempo para pensar em alguma estratégia para tirar minha égua desse joguinho de sedução. Uma coisa já é certo e bom, ao menos eu já tenho algumas reticências com ele, o fato de ele não ter colocado um ponto-final como existiu com as outras meninas, me dá a esperança de que para ele nossa noite juntos também tenha sido diferente do que costuma ser com as outras.
— Deve ser algo rápido. Vou falar com meu irmão nesse fim de semana e volto na segunda para treinarmos juntos ainda essa semana.
— Então eu posso mesmo ir treinando com a Lancelot para a próxima competição?
Engulo em seco e forço um sorriso, mas a verdade é que quero mesmo responder que não.
— Vamos conversar com nosso treinador e ver as possibilidades. A Lancelot precisa aguentar o tranco de nós dois montando nela em competição.
Coloco o Sr. Francisco no jogo, afinal, ele não vai aprovar essa divisão e não é só pela Lancelot.
— Ela é só uma égua, vai aguentar com certeza. O Francisco não entende de cavalo, está lá por puro favor, além de que, ele me odeia. — Ele pisca com um dos olhos. — Ele só me treina porque eu p**o bem a Hípica, e ele é um funcionário de m***a que tem que fazer o que a gente quer.
Não, ela não é só uma égua e não, o Sr. Francisco é muito mais que isso. Ele ama o hipismo, ama o que faz e a Hípica só é o que é, por conta dele. Mas aí o Juliano me beija na boca de novo e perco a vontade de me expor a uma briga que, embora seja necessária, pode ser adiada por alguns minutos, ou talvez horas, dias…
Agora eu só quero continuar esse beijo e ter certeza que a desenvoltura do Juliano é tão boa quanto foi na noite passada, quero ter certeza de que não foi sonho. Nestes próximos minutos é só isso que quero me preocupar, aí depois eu penso no restante de coisas que preciso resolver nos próximos dias.