Acordo sentindo a minha cabeça tremendo, uma música alta conhecida bem no meu ouvido e sei que o culpado disso tudo é meu celular, que está na minha bolsa, que essa noite virou um travesseiro.
Estou dolorida e, sem sombra de dúvidas, dormir no feno foi a minha pior invenção dos últimos tempos. Pego o celular e vejo que é o Sr. Francisco.
— Como passou a noite? Está tudo certo por aí? — ele pergunta.
— Bom dia, antes de tudo!
Ele resmunga baixinho.
— Tenho certeza de que você está escondendo algo, então não é tão bom dia assim. Seu pai me deu uma incumbência muito difícil, que é te manter protegida.
— Sério que você acha isso tão difícil? Sou quase um anjo, não te dou trabalho e nem me meto em confusões.
— Só se torna difícil justamente porque você gosta de se meter em confusão.
— Não seja exagerado.
— Bom, posso listar várias vezes que você tornou essa minha missão quase impossível, mas a penúltima foi se envolver com aquele i*****l.
— Penúltima? — pergunto enquanto me espreguiço.
— Sei que a última você ainda não me disse e por isso, afirmo que hoje não é um bom dia.
— Está tudo certo e volto para casa no fim do dia, e você verá que hoje foi sim um bom dia!
— Cadê o Duda? — Ele me conhece o bastante para saber que estou me metendo em uma enrascada.
— Andando de cavalo. — Essa é a única desculpa que me vem, tendo em vista o local onde estou.
— Certo! Você vem jantar conosco? Precisamos conversar sobre a Lancelot. Aquele Juliano está me enchendo o saco desde ontem, dizendo que você o liberou para montar nela, mas eu já te disse que sou contra. Ele vai machucar sua égua e você vai ser prejudicada nas competições. Estamos com bons pontos e uma boa classificação geral.
Ai, meu Deus, o Juliano! Tanta coisa aconteceu em um curto espaço de tempo, que eu quase esqueci do meu gatinho que precisa de uma boa desculpa para ficar bem perto de mim e bem longe da minha égua.
— Certo, hoje à noite a gente conversa e decidimos como faremos, mas não seja tão negativo de primeira com ele, senão você pode o assustar.
— Bianca... tanto cara para você se envolver, aí você escolhe o pior.
— Essa sua classificação é discutível.
Me assusto quando escuto um barulho fora das baias.
— Eu preciso ir, ok? Mais tarde a gente conversa.
— Ok.
— Não esquece, ele precisa acreditar que irá montar a Lancelot.
— Já disse que sou contra.
— Eu também, mas ele não precisa saber, ok?
Ele bufa.
— Ok.
Me levanto e percebo que ainda estou vestida com uma camisa que não é minha. Preciso devolver antes de ir embora daqui da fazenda, o que é uma péssima ideia, porque envolve ver aquele cara de novo, ter que agradecer e encarar aquele rosto desleixado com olhos sombrios, mas com um corpo extremamente atrativo.
Quando saio das baias, vejo o Zangado andando na direção da saída da fazenda. Ele ainda veste a mesma roupa de ontem e me pergunto se dormiu aqui, ou se simplesmente não tomou banho. Mas prefiro não saber, do jeito que ele é m*l-humorado, vai acabar com meu bom humor matinal em segundos, e bom, eu só quero rever a Zelinha, entender o que aconteceu e colocar as coisas no eixo antes de ir embora. Essa vida aqui não me pertence mais, e o Duda que precisa continuar fazendo o que prometeu para nossos pais.
De manhã, a fazenda aparenta ainda mais abandonada, mas ver alguns bois pastando me animam. Não estão gordos como eram na época do meu pai, mas também o pasto não está ajudando. O Duda fodeu muito com tudo isso aqui, impressionante.
— Zelinha? — Entro na casa, perguntando.
Ninguém responde e eu continuo entrando na casa, percebo que internamente as coisas não estão tão mudadas. Os móveis rústicos, os cristais da minha mãe, o bar com bebidas intactas e caras que meu pai tinha o hábito de colecionar... Na mesa de jantar há uma toalha de renda renascença que minha mãe gostava de tecer.
— Oxente, Bianca?
Reconheço de imediato o tom calmo e sereno da Zelinha.
Eu me viro e vou de encontro a ela, que me abraça forte e eu retribuo, me sentindo realmente em casa com segurança pela primeira vez desde que cheguei aqui. Deixo algumas lágrimas escorrerem pelo meu rosto, porque estou emocionada em vê-la. Não sei o que ocorreu aqui, mas é bem claro que as coisas não estão fáceis e ela continua conosco, isso é muito emocionante.
— Menina, como você está linda. — Ela se desgruda de mim e me analisa. — Sempre magrinha, hein? Não está comendo direito, não é, mocinha?
Eu sorrio e ela enxuga minhas lágrimas.
— Venha, vou passar um café para a gente. Você chegou hoje?
— Não, cheguei ontem.
— E onde você estava? — Ela me analisa de novo enquanto estreita os olhos. — Essa roupa... — Ela toca na blusa que cabe três vezes o meu corpo. — Eu conheço essa roupa.
— Bom, tiveram alguns acontecimentos essa noite, mas resumindo: o vizinho me ajudou um pouco. Então é por isso que você deve conhecer essa roupa.
— Ele não é uma pessoa fácil, o pessoal morre de medo dele, pois depois do que aconteceu, as pessoas ficam achando-o com um parafuso a menos. — Ela suspira, me carregando pelo braço pelo corredor que leva à cozinha. — Mas é um menino bom, tem ajudado bastante a gente aqui, e o que fez ficou no passado.
Logo vi que ele carregava em seus olhos algo sombrio, e isso aguça ainda mais minha curiosidade para saber o que aquele homem carrega em seu coração, que é capaz de pôr medo nas pessoas.
Me sento na mesa, enquanto ela começa a coar um café.
— Há quanto tempo o Duda foi preso?
— Três meses, na verdade vai completar quatro meses semana que vem.
— E como vocês estão fazendo para pagar as contas e manter a fazenda ainda funcionando? Por que não me ligou para que eu pudesse ajudar em algo?
O cheiro de café toma conta da cozinha.
— Eu não tinha seu telefone.
Ela me entrega uma xícara cheia de café.
— O que você vai querer comer?
Não vou mentir que estou com fome.
— Pode ser um sanduíche.
— Para sua sorte, fiz queijo coalho essa semana, viu? — ela brinca.
Eu amo os queijos que a Zelinha faz, amava quando meus pais levavam para capital um pouco do que ela fazia aqui na fazenda.
— Você falou que não tinha meu telefone, mas me ligaram daqui, Zelinha.
Ela começa a assar o queijo coalho.
— Sou analfabeta, menina, você não sabe? E com toda sinceridade, quando seu irmão foi preso, ficamos desesperados, porque tínhamos medo que ele voltasse para aqui e tinha também o Vinícius, que começou a vir aqui e tomar a frente das coisas. A gente ficava sem entender, porque ele era amigo do Duda e era ex-noivo da Rafaela. No fim, a gente seguiu o rumo da corrente, até que conseguiram falar com você.
— Hã? Não entendi nada.
— Qual parte?
— Tudo. Começa do começo. Eu não entendi nada.
— Você não conheceu o Vinícios?
— Ah, verdade, o nome dele é Vinícios.
Ela me entrega o sanduíche e se senta à mesa comigo.
— Bom, então vamos começar do começo.