Capítulo 11

1758 Words
ESPERANÇA. Uma palavra. Quatro sílabas. Nove letras. Peso imensurável.  Dizem que quando se está à beira da morte, dar esperanças de que se pode viver após alguém ter tido a certeza de que não, não se pode, é uma das piores e mais cruéis coisas que um ser humano pode fazer. Talvez mais c***l do que tirar um filho de uma mãe.  É por isso que médicos são tão assertivos em seus diagnósticos, eles não podem dar espaço para a não compreensão, para a dúvida e o pensamento de que talvez eles tenham dito algo diferente, de que talvez não seja isso.  Pilar perdeu a esperança há muito tempo e eu, com minha insistente inconveniência em acreditar que nem tudo está perdido, lhe dei esperança mais uma vez. Lhe pedi algo que ela não queria e ela, com sua alma doce e bondosa, aceitou; por que convenhamos: que mãe não faria tudo para ver seu filho sorrir, mesmo que isso vá lhe matar aos poucos?  — Você deveria ir embora, Maitê, e não falo isso por mim.  Levanto meus olhos opacos do capuccino acima da mesa e encaro os esverdeados de Marjorie, que com chateação em sua face mexe o canudo em sua lata de Coca-Cola; uma péssima escolha para o café da manhã, inclusive. Observo as olheiras fundas em seu rosto e o cabelo cacheado preso em um coque desajeitado com diversos fios desgrenhados. O estado da roupa amassada não é muito diferente de como a minha se encontra.  — Perdão, eu não entendi — digo, como se não tivesse sequer lhe escutado, esperando uma explicação. — Se não é por você, por quem é, então? Sua mãe me pediu que estivesse aqui.  — Talvez ela não soubesse que você a faria tão m*l. — Ela dá de ombros e eu arqueio uma de minhas sobrancelhas. — Tudo, absolutamente tudo o que ela queria, era morrer em casa, ao lado de sua família, e agora ela está presa a uma cama, porque você pediu.  Ontem à noite, após descobrir que não sou compatível e derramar todas as lágrimas que haviam se acumulado dentro de mim, eu entrei no quarto de Pilar, sentei ao lado de sua cama, segurei suas mãos e lhe disse:  — É hora de termos uma conversa bem séria, mocinha. — O tom advertindo-a foi facilmente quebrado pelo meu semicerrar de olhos.  Segundos depois, vi um sorriso ladino surgir no canto de seus lábios.  — Você também não é compatível, não é? — perguntou, e eu apenas assenti, sentindo a culpa e decepção me invadir novamente. — Está tudo bem, querida, eu não esperava nenhum resultado diferente.  Apesar do aperto forte em minhas mãos, eu sabia que era mentira, pois até mesmo o ser mais cético deveria estar torcendo para que aquele maldito exame desse positivo. Todavia, afastei a negatividade.  — Bom, eu posso não ter dado positivo, mas tenho certeza que em breve alguém dará e para que isso seja possível, precisamos conversar sobre o restante de nossas opções.  Em um instante, a ternura e a compaixão que eram sentimentos palpáveis para qualquer um naquele quarto, deram espaço a frieza e indiferença. Pilar afastou suas mãos de mim e desmanchei meu sorriso, assim como ela. Droga.  — Achei que eu já tivesse deixado claro quanto a minha escolha, Maitê.  Suspirei. Eu precisava convencê-la, era hora de ser dura com ela, então eu fui:  — Você tem cinco meses de vida, Pilar, quando poderia ter tido bem mais. Você não me fez cruzar o mundo para assisti-la morrer, então a senhora vai sim fazer o tratamento, queira ou não!   É, talvez ser dura queira dizer que eu tenha jogado baixo, bem baixo, mas no fim consegui o que eu queria. Dou de ombros, afastando os pensamentos, enquanto volto minha atenção à Marjorie.  — Eu não pedi, eu apenas mostrei que isso é o melhor para ela.  — Não mostrou, não — ela exaspera, e eu bebo um gole da bebida. — Você praticamente a obrigou quando sabe que não há solução.  Eu não havia contado a ninguém sobre a proposta de papai, eu já dei esperanças demais as duas e não quero que isso se repita. Não até ter certeza de que ele é compatível.  — Você prefere acreditar nisso, porque sente medo, é a escolha mais fácil; soa cômodo demais — eu explico, colocando a xícara vazia sobre a mesa e olhando em seus olhos para dizer: —, é uma pena que você não saiba sobre tudo.  Levanto-me da cadeira, pegando minha bolsa e a conta abaixo do porta-guardanapos.   — Onde você vai?  — Onde nós vamos — corrijo. — Pilar terá a primeira sessão de quimioterapia hoje, precisamos estar lá.  [...]  — Olha quem chegou — Marjorie cantarola, adentrando o quarto de Pilar com uma bandeja com um café da manhã saudável e balanceado, para não quebrar a dieta que ela vem fazendo nos últimos meses devido a doença.  — Graças a Deus! Comida de verdade! — Dou risada atrás da porta, atraindo sua atenção. — E você, por que está escondida aí?  — Aff — resmungo, adentrando o quarto com as mãos atrás das costas, enquanto ela me olha desconfiada. — São para você.   Retiro as mãos de trás do corpo, trazendo-as para frente deste e lhe mostrando o buque com flores de diversos tipos, já que eu não sabia quais eram suas preferidas. Aproximo-me para entrega-las e ela as pega em seu colo, levando-as para suas narinas. Sorrio leve, seguida por um click, e quando giro meu corpo para o lado, percebo que é Marjorie que acaba de tirar uma foto de Pilar.  — Ah, eu quero ver. — Corro até ela para ver a foto e ela ficou linda.  O contraste do sol adentrando pela janela entreaberta e das cores amarela, rosa, vermelha e branca vinda das flores com sua pele branca e seu cabelo ruivo.  — Obrigada, meninas. Vocês são incríveis e fico feliz que estejam finalmente se dando bem — Pilar diz, e Marjorie e eu nos entreolhamos.  — É claro, Maitê percebeu que era burrice implicar tanto comigo se precisaríamos conviver juntas por tanto tempo. Temos que nos unir e ser amigas.  Vagabund4. Semicerro os olhos para ela, mas trato de abrir um sorriso forçado, antes de lhe dizer:  — Com certeza, irmã.  Desde que conversamos na praça, temos agido conforme o combinado, o que tem sido ótimo e unicamente para poupar nossa mãe de mais uma dor de cabeça, mesmo que outrora isso custe nossa paz. Ela ao menos parece mais tranquila agora.  Pilar colocou as flores em um vaso com água ao lado de sua cama, o que deu um pouco mais de vivacidade e i********e ao lugar. Ela comeu toda a comida que trouxemos, enfatizando tantas vezes o quanto a comida de hospital é r**m, que seria difícil de contar se eu quisesse. Quando ela terminou, uma médica adentrou o quarto, perguntando se estava pronta para iniciar o tratamento. Foi uma longa conversa sobre sua doença, os cuidados e os riscos, além da importância sobre o tratamento. Agora, próximo ao horário de almoço, a médica retirou-se prometendo voltar em breve e Pilar nos olha apreensiva.  — Vai ficar tudo bem, mãe — é Marjorie quem diz, segurando sua mão e mantendo-se sentada ao seu lado. — Estamos aqui com você.  — Não é isso, filha. — Arqueio uma de minhas sobrancelhas, depositando toda e total atenção nela. Sua mão livre passa pelo seu cabelo liso ruivo. — Eu quero raspar, a quimio vai deixa-lo com falhas e eu não quero ter que passar por isso. Acordar todos os dias e ver os fios no meu travesseiro, na escova, no chão, no banheiro... é, eu quero raspar.  Levo alguns segundos para processar o que isso significa, diferente de Marjorie que parece ter absorvido tudo isso muito antes de ela lhe contar.  — Eu imaginei que ia querer isso, então trouxe uma máquina. Quando quiser, é só me falar e faremos.  — Comprou uma máquina só para isso? — pergunto, surpresa.  — Claro que não! Eu raspava a lateral do cabelo, mas estou deixando crescer, no final até que será util.  Assenti, imaginando como seria Marjorie com a lateral raspada. O pior é que qualquer coisa parece combinar com ela, então imagino que não tenha ficado tão r**m. Afasto meus pensamentos da imagem de minha irmã e volto a focar em Pilar.  — Agora. Quero raspar agora.  Ok. Tudo isso parece muito mais real agora. Ainda mais real quando minha meia-irmã se levanta, puxa sua mochila preta e de lá tira uma máquina da mesma cor. Desfaço a cara de boba e caminho até minha mãe, ajudando-a a se levantar e caminhar até o banheiro.  — Seu pedido é uma ordem, alteza — brinco no meio do caminho para descontrair, e ela solta uma risada breve e nasalada.  Ela passa muito tempo se olhando no espelho, contornando seu cabelo com as pontas dos dedos, visualizando-o por uma última vez. Nem Marjorie, nem eu, ousamos apressa-la. Damos a ela todo o tempo do mundo para se despedir, pois por mais que tentemos nos colocar em seu lugar, nunca conseguiremos chegar nem perto do que ela está sentindo nesse momento.  Querendo ou não, o cabelo é um dos principais traços de feminilidade de uma mulher, cujo qualquer mudança, seja a cor, um corte de cabelo, uma finalização não bem sucedida, pode acabar com sua autoestima.  Tremo quando ela pega a máquina e a liga no zero. A primeira passada e uma grande quantidade de fios ruivos cobrem o azulejo branco do banheiro. Não há mais como voltar atrás. Para muitas, um momento como esse é libertador. Para outras, é apenas mais uma tortura. Não sei dizer em qual desses patamares Pilar está quando lágrimas começam a jorrar por seus olhos e molhar a sua pele.    A última mecha se vai, seus dedos passam por seu couro cabeludo, mas não há mais nenhum vestígio de cabelo ali. Marjorie e eu nos aproximamos, abraçando-a tão forte quanto podemos, enquanto sussurramos que tudo ficará bem. Lágrimas umidificam meus olhos também, mas não ouso deixa-las cair.  Arrastamo-la para fora do banheiro para acalma-la, no entanto, é o que acontece a seguir que lhe faz desmoronar de vez:  — Pilar? — é a voz de papai quem diz, soando grave, como se algo a impedisse de sair por completo.  Do batente da porta, observo-o dar dois passos para se aproximar.  — Otávio? — Pilar diz trêmula. — O que faz aqui?
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