Capítulo 01

1412 Words
MEUS PAIS ENCARAM-ME apreensivos da outra ponta da mesa, enquanto eu balanço meu corpo na cadeira giratória de um lado para o outro. Faz alguns minutos que estamos nessa situação, ambos cancelaram todas as reuniões que teriam hoje e esperam que eu dê a******a para que me expliquem porque mentiram para mim durante dezenove anos e esconderam de mim um fato tão importante. Honestamente, acho que nada do que me disserem agora fará com que eu os entenda.    — Tudo bem, podemos começar — digo, parando meus movimentos e cruzando as mãos acima da vidraçaria da mesa. — Quero que sejam sinceros e me contem tudo.    Os dois entreolham-se, mamãe com um olhar duro e papai com um olhar de culpa. Arqueio uma de minhas sobrancelhas à espera de uma resposta e ambos assentem.    — Tudo o que você leu nos documentos é verdade — minha mãe começa e sua confirmação embrulha-me o estômago. — Seu pai queria muito um filho e eu não podia lhe dar, então quando fomos para o Brasil visitar nossa família, uma amiga nos sugeriu Gestação por Substituição. A ideia parecia incrível, então conhecemos uma mulher que estava dispos...    — Uma mulher? Qual é o nome dela? — a interrompo.    Visualizo mamãe abrir a boca e fechá-la sem emitir nenhum som. É papai que, então, toma frente e responde-me:    — Pilar Duarte. — O nome soa com dificuldade, como se não o pronunciasse a anos. — Ela estava disposta a nos ajudar e por não termos nenhum vinculo, foi um processo bastante árduo. Tivemos que correr atrás de advogado, clínica especializada e fazer acompanhamento psicológico. Mas conseguimos, fizemos a fertilização e depois de alguns meses, descobrimos que tratavam-se de gêmeos. — Papai sorri e o brilho em seus olhos me faz sorrir também. — Duas lindas menininhas. Nós ficamos muito felizes com a notícia.    — Fale por você, querido — responde mamãe, seca e áspera. Desvio a atenção de meu pai para olha-la. — Achávamos que a criança era nossa filha, mas não. Só descobrimos após o nascimento, ao estranharmos o cabelo ruivo e pedirmos um exame de DNA. Era filha de Pilar. Então retornamos para Costa Rica e a deixamos no Brasil com sua verdadeira família. — Visualizo-a dar de ombros. — Você nunca a conheceu porque ela não é nossa filha, tampouco sua irmã.     A indiferença e postura defensiva de mamãe deixa-me confusa. Se era só isso, por que tamanha preocupação mais cedo? Suas ações não condiziam em nada com os fatos.    — Você não está contando toda a verdade — retruca papai.     — Estou contando tudo que ela precisa saber.     Mamãe volta-se para meu pai. Encosto as costas na cadeira e retiro as mãos da mesa para cruzar os braços acima do peito.    — Não, não está.    — Pois bem, conte você, então, e desfaça a imagem santificada que sua filha tem de você.    Franzo o cenho e encaro papai. O que era tão grave a ponto de mudar minha visão sobre ele? Pendo o corpo para frente e deixo minhas mãos caírem ao lado do corpo.    — O que estão deixando de me contar, papai?    Ele molha os lábios, desviando o olhar de mamãe para mim. A morena o encara desafiadora e a expressão de culpa em seu rosto fica ainda mais nítida.    — Ela é sim sua irmã. Sua meia-irmã. Eu tive um caso com a Pilar e isso ocasionou uma superfetação. Marjorie é minha filha.    Minha boca entreabre-se e meus olhos arregalam-se. Paro petrificada. Juntos há mais de vinte anos, meus pais sempre foram o exemplo de relacionamento que eu gostaria de ter futuramente, mas nunca me perguntei o que tiveram que suportar e perdoar durante esse tempo. Fito Agnes, minha mãe, que havia abaixado o olhar para o chão, com compaixão. Ela havia mesmo perdoado uma traição?    Para Freud, o sexo é uma moeda dupla: nossa força e nossa fraqueza, e tudo isso é apenas mais uma prova de que isso é verdade. Levanto-me sentindo minha cabeça doer e observo meu pai abrir a boca para falar. Ergo minha mão no ar em sinal de que não quero ouvi-lo.    — Já escutei demais por hoje — digo, dando a volta e caminhando até a saída do escritório. — Nada do que disser vai anular o que você fez.     A mágoa nos olhos de meu pai acerta em cheio meu coração mole, mas é a sua frase seguinte que me faz abandonar a maçaneta da porta e ouvi-lo:    — A história não acabou, Maitê.    — Como não? — pergunto, exasperada.    — Otávio, não — pede mamãe, tocando seu braço. — Por favor.     O homem afasta-se de seu toque e sem desviar o olhar de mim, dá a cartada final:    — Isso não cabe à você, Agnes. Pilar está doente, filha, e quer lhe conhecer.     [...]    Fito o teto creme do meu quarto, enquanto mantenho-me deitada na cama com as mãos sobre a barriga. Desisti da faxina e a situação em que meu quarto se encontra deixa claro isso, contudo, a desorganização sequer me incomoda, só consigo pensar que há uma mulher que me carregou por nove meses mundo à fora querendo me conhecer e uma irmã que eu dividi o útero e nunca soube da existência.    “Isso não cabe à você, Agnes”. A frase que meu pai dirigiu a mamãe soa em minha cabeça com um mantra, recordando-me que, de fato, a decisão é minha.     Escuto a melodia suave do meu celular tocando, mas não me movo. A ligação cai e alguns segundos depois, a melodia soa novamente. Ergo meu corpo visualizando o aparelho em cima da cômoda com o nome de Mia piscando na tela. Arrasto-me e capturo-o, atendendo a chamada e vendo-a fazer uma careta.    — Credo, Ma. Você está um caco. Por acaso anotou a placa do caminhão que passou por cima de você?    Dou risada. Conheci Mia durante a minha infância e chega a ser espantoso como mesmo sendo o completo oposto uma da outra em diversos aspectos nos tornamos melhores amigas.    — Bom dia para você também, Mia — resmungo, ajeitando-me na cama e focando a câmera em meu rosto. — Sua aparência não está muito diferente da minha.    Do outro lado da tela, minha amiga colocou o celular apoiado em algum lugar e caminha por sua cozinha, preparando seu café da manhã. Ela ainda está de pijama e o tecido alaranjado dá contraste à sua pele acobreada. Seus cachos estão presos em um coque e alguns fios rebeldes insistem em escapar do mesmo. Ela senta-se na cadeira e despeja o líquido de uma jarra no copo.    — Eu me sinto ótima. Está vendo esse sorriso? — pergunta apontando para a fileira de dentes brancos visíveis, após passar geleia em sua torrada. — É o sorriso de quem teve uma ótima noite de sexo.     Sorrio ladino, enquanto ela toma seu suco.    — Você não tem jeito.     — E você está muito tristonha. Aconteceu alguma coisa?    Deixo escapar uma lufada de ar. Sei que caso eu negue, Mia saberá que eu estou mentindo, porque ela me conhece melhor do que eu mesma e desde pequena sempre fui uma péssima mentirosa.    — Descobri que fui concebida por barriga solidária, que papai traiu mamãe, que tenho uma irmã gêmea e que a mulher que me carregou está doente e quer me conhecer. — Jogo as informações tudo de uma vez e ouço a tosse insistente de Mia do outro lado da linha. Ela se engasga com a torrada que tinha levado à boca e arregalo os olhos. — Mulher, você está bem?    Quando sua tosse cessa, Mia beberica o líquido e me encara.    — Que vida agitada, Ma. Melhor que novela mexicana. — Semicerro os olhos com seu comentário. — Mas e aí, o que você pretende fazer?    — Sinceramente, eu não sei. O que você faria?    Ela dá de ombros, levantando-se e recolhendo as louças sujas para coloca-las na pia. Pega o celular em mãos e o aproxima de seu rosto.    — Não é o que eu faria que está em questão aqui, diferente de mim sei que isso vai te corroer até que você as conheça. Precisa ouvir o que o seu coração quer.    Assinto, pensativa. Eu coloquei essa decisão como um bicho de sete cabeças, mas meu coração já havia decidido o que queria no instante em que peguei aquele documento em mãos.    — Você está certa, Mia. Eu vou para o Brasil. 
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