As ruas estavam cheias. Haviam crianças, adolescentes, adultos, usuários, traficantes. Todos se misturavam como iguais. Todos agiam naquela noite de sexta-feira como se nunca tivessem visto suas atividades duvidosas durante o dia. Todo mundo se cumprimentava com alegria.
Os carros se amontoavam nas ruas de mão única e os sons eram destoantes e incômodos. Eu fiz cara f**a para cada homem que me observou por mais de uma vez, mesmo que Mariana tenha grudado seu braço no meu e ficasse me beliscando para não agir com tanto asco com os olhares de admiração. Eu odiei aquele vestido.
Eu odiei aquelas pessoas. E odiei a noite por estar limpa e sem sombra de chuva. Eu queria mesmo que tudo molhasse naquela noite. Nada me daria mais prazer do que ver as pessoas correndo para proteger seus equipamentos de som, ou as garotas jovens com seus cabelos forçadamente alisados. Eu odiava todos.
— Juju, pare de fazer essa cara, vamos acabar arranjando problemas com as outras mulheres — sussurrou Mariana, mas nem faria a diferença se ela falasse alto. A música era tanta que eu nem conseguia escutar meus próprios pensamentos. Fiz cara f**a quando um homem assoviou para mim, e contive todos os meus impulsos de voltar lá e bater com a cabeça dele no capô do seu carro. — Juju, estou falando sério. As mulheres daqui tem uma política ainda mais dura do que os homens. Você precisa tomar cuidado com o jeito que olha ou fala de alguém.
— Pois deixe que venham — falei em voz alta, e olhando diretamente para uma menina que não deveria ter mais do que quinze anos e estava me encarando da cabeça aos pés. — Deixe que venham para que eu mostre como é que se conserta uma cara f**a.
— Juju, não arranje brigas — disse Mariana, dando risada. — Você ficaria chocada se soubesse que a maior parte da crueldade contra as mulheres não acontece a mando dos traficantes, mas por conta dessas mesmas mulheres que você está chamando para a briga. Eu também adoraria bater em metade delas, só que muitas tem a p******o dos irmãos. Você sabe que eles podem muito bem agir mais depressa do que a polícia. Não dá pinta, ou eu vou sair correndo e você vai apanhar sozinha.
Eu dei risada, verdadeiramente sentindo o humor. Estava para nascer quem algum dia me bateria. Ninguém, nunca, em hipótese alguma, já tocou em mim com a mão vazia. Um mestre as artes marciais teve de usar uma faca para poder me machucar de verdade, porque não se garantia nos punhos.
Era impossível que aquelas mulheres conseguiriam fazer alguma coisa, não importava se atacassem em bando. Eu não precisava de nada além de dois segundos para aprender como derrubar ou imobilizar alguém. Eu tinha estudado a vida inteira para aquele trabalho.
Se eu fosse tão fácil de ser combatida, não seria uma das poucas a ingressar no BOPE. Me impressionava que Mariana pudesse conter algum resquício de medo em seu corpo. Ela também era muito boa em combate. A vida na favela deveria mesmo estar mexendo com a sua cabeça.
Atravessando boa parte da muvuca de pessoas que se espremiam e erguiam bebidas para o alto, nós finalmente chegamos ao dito bar em que o alto escalão se encontrava em peso. Já na porta, ficou bem explicado os motivos para Mariana não conseguir entrar com facilidade.
Os seguranças do dono do morro estavam ali, barrando a entrada como uma porta humana. Mesmo carregando a cesta com os ovos, eles ainda investigaram cada um dos alimentos, e ainda fizeram questão de perguntar por mais de uma vez o que ela estava fazendo ali.
Tive a impressão de estar num interrogatório. E eu soube dizer, sem gaguejar, exatamente a mesma versão que Mariana contava, até apelando para o lado emocional ao mencionar a avó da garota.
Os seguranças ainda tiveram a audácia de perguntar em voz alta se a dona do bar esperava alguma encomenda, no que ela demorou bastante para responder que sim. A noite estava fria, apesar de não haver chuva.
E ficar lá fora enquanto eles decidiam se nos deixariam entrar ou não, me deixou irritada. Eu tive de morder a língua para não falar nada, porque a vontade era passar direto por eles e pegar o dono do morro pelas orelhas.
Mariana manteve o braço colado no meu para evitar que eu fizesse qualquer movimento brusco, e eu notei que ela estava tensa. Por fim, os homens se arrastaram de má vontade para o lado, permitindo a nossa entrada.
O bar era comum. Eu tinha frequentado alguns bares locais do centro da cidade quando mais jovem, quando a vida não tinha muita graça e eu afogava minhas mágoas no álcool. No entanto, a maior diferença naquele bar, era que ele permanecia parado no tempo.
Existia uma mesa de sinuca num canto, um banheiro ao lado dela, poucas mesas e cadeiras de plástico, um balcão largo que fazia uma volta para que o atendente atrás pudesse se locomover com bastante liberdade. O baleiro sobre uma parte de vidro do balcão me fez sorrir. Era como estar de volta à minha infância.
Foi ótimo e agradável, mas apenas por um segundo. Apenas até eu reparar num dos cantos mais afastados do bar, onde um grupo de homens se sentava numa mesa, conversando animadamente, e um deles se mantinha de pé no balcão, girando uma garrafa de Vodca barata num copinho de dose. Era ele. Picasso.
Eu jamais admitiria em voz alta. Ninguém no mundo me faria dizer que Picasso fazia jus ao nome do pintor, porque ele era um artista feito por sua própria beleza. Os cabelos dele eram curtos e pretos, tão escuros quanto a sua roupa comum, uma camisa sem mangas e uma calça jeans com pequenos recortes nas coxas.
O corpo do homem demonstrava uma vida atlética, e os braços fortes eram cobertos por tatuagens de aspecto agressivo. Os dedos da mão direita estavam cobertos pelo o que pensei ser um conjunto de anéis de ouro, mas era nada mais e nada menos do que um soco inglês.
O rosto ainda era uma incógnita, porque a cabeça dele estava levemente inclinada para o seu copo, e ele parecia profundamente amargurado. Quase nem parecia o dono do morro, mas eu o reconheci ali, antes dele sequer notar a minha presença.
E eu negaria para quem quisesse ouvir, mas, talvez fosse pelo desafio e a vontade de capturá-lo antes de todos, é que logo naquele primeiro momento, o meu coração já pulsava numa frequência diferente, antes mesmo que eu pudesse reparar.