[ Alguns detalhes simples da primeira versão foram trocados ]
— Está pronta? — Meu pai perguntou sem muito interesse, ajustando a gravata na sua blusa branca.
— Sim. — Falei, colocando as minhas sapatilhas e me encarando no espelho.
Saia longa e branca, blusa preta e com um desenho do smiliguido com uma frase qualquer — que não me importava e um par de sapatilhas de pretas. Na minha cabeça um coque perfeito e simétrico — feito pela minha mãe.
Encarei o gloss na minha mesa e parei na frente do espelho, espalhando uma camada leve pelos meus lábios grossos.
— Tire isso agora, menina. — Meu pai berrou, aparecendo na minha porta.
O encarei assustada, passando as costas da mão na boca e me afastando do homem raivoso a minha frente.
— Que tipo de mulher você acha que é? — Ele perguntou. — Onde arrumou isso?
— E-eu ganhei de uma amiga de aniversário... — Expliquei, com os olhos repletos pelas lagrimas.
— Não quero, eu já falei.. — Ele disse, colocando o tubo no bolso. — Você vai a igreja e não a um bordel, se dê o respeito ou ninguém irá respeitar você e acabará como as outras meninas da sua idade, grávidas.
— Eu já tenho quinze anos. — falei chorosa.
— E enquanto morar no meu teto, você fará o que eu mandar.. — Ele segurou meus pulsos com certa força. — Você me ouviu?
Assenti com a cabeça, sentindo um soluço querer escapar pela minha garganta. Eu estava com medo, meu pai era tão agressivo.
Minha mãe me encarou com a testa franzida e um olhar triste, chamando o meu pai baixo, tirando a sua atenção de mim.
— Vamos. — Ele disse grosso. — Engole o choro e desamarra essa cara.
Apenas assenti, sem coragem alguma de proferir um piu. Eu estava cansada. Além de me tratar como a sua empregada particular, meu pai proferida palavras horríveis para mim e me agredia algumas vezes. Dizia estar me protegendo do mundo.
Meu sonho era correr da casa dele, mas a vida, infelizmente, não era como as histórias que eu lia no w*****d e o mundo era mundo mais sujo que isso.
Quando saímos da casa — de dois quartos, começamos a subir o moro em direção a igreja que ficava a algumas ruas da minha.
Sempre de cabeça baixa e sem coragem de encarar os demais, engolindo a vergonha de me sentir diferente das outras garotas, andava o mais rápido que eu podia, sem proferir uma sequer palavra.
No auge dos meus quinze anos me lembro de encarar os olhos de João Guilherme toda vez que eu passava na frente da boca de fumo do morro. Ele era filho do antigo dono do morro, Andrézinho — que desapareceu a alguns anos — e afilhado do atual dono do morro, ou melhor, um homem que apenas cuida das coisas até que João possa tomar posse do cargo.
Virava e mexia e o menino estava se atracando com alguma mulher na porta de algum estabelecimento ou sentado com os caras da boca na mesinha da esquina. Jogavam truco, baralho, até xadrez.
Hoje não foi diferente, mas não consegui o encarar por muito tempo, olhei para o chão novamente e segurei o choro, sentindo que iria explodir a qualquer momento.
— Ô, seu Marcos. — Ele gritou, fazendo o meu pai olhar para trás. — Chega aí.
Meu pai foi até lá a passos largos. O menino com um alto volume na cintura trocou algumas poucas palavras com o meu pai, antes que ele voltasse com uma carranca e me fuzilasse com o olhar.
— Seu Marcos. — Ele chamou uma última vez. — Pensa no que eu te falei, assim como o meu pai, eu não gosto que machuquem quem eu gosto.
Meu pai engoliu em seco e voltou a andar, segurando a mão da minha mãe a puxando para dentro da igreja rapidamente. Os segui correndo, dando uma olhada para JG que sorriu para mim e bateu continência.
•••
Não consegui prestar atenção em sequer uma palavra proferida pelo pastor naquela noite. Encarei o teto, o ventilador, alguns jovens conversando em um dos cantos, a bíblia, meus dedos, tudo.
Nada me tirava a indagação do que João Guilherme teria para falar com o meu pai.
Enquanto desciamos o morro acompanhados por algumas irmãs da igreja que conversavam animadas com a minha mãe, procurei João com os olhos e não o encontrei, me sentindo um tanto frustrada.
Terminamos de descer as duas ruas restantes e olhei para a barraca de salgados que havia na frente da minha casa e senti o meu estômago roncar. João estava lá.
— Pai, me compra um salgado? — Pedi, encarando seus olhos brilhantes.
— Você acha que eu tenho dinheiro para ficar gastando com futilidades, garota? — Ele esbravejou, enquanto girava a chave no portão. — Entra pra casa.
— Mas, pai.. — Eu Choraminguei.
— Não e pronto, Victória. — Ele gritou, me puxando com certa brutalidade.
— Ou, ou, ou, que que tá rolando aqui? — João Guilherme se aproximou com um copo de suco nas mãos.
— Nada. — Meu pai disse seco.
— Solta a menina, p***a. — Ele mandou firme e meu pai soltou meu pulso.
Era incrível como ele conseguia ser submisso a um garoto de dezesseis anos e não conseguia tratar a própria filha com um pingo de dignidade.
— O que está rolando, Victoria? — Ele perguntou. — Tu quer alguma coisa?
— Não, eu já diss.. — Ele foi interrompido por João.
— Com todo respeito, seu Marcos.. — Disse grosso. — Mas eu não te perguntei p***a nenhum, e então, Victoria?
— N-Nada. — Falei baixo.
— Fala logo, pô. — Ele encarou meu pai. — Teu pai não vai brigar não.
— É, filha, pede logo. — Minha mãe mandou, nervosa.
— Eu só queria comer um salgado. — Falei baixo.
— Só isso? — Ele levantou a sobrancelha.
Assenti com a cabeça.
— Eu compro então, você quer o que? — Ele perguntou, intercalando o olhar entre mim e meu pai.
— Coxinha. — Dei um meio sorriso.
O menino correu para o outro lado da rua e disse alguma coisa para a senhora que guardou uma porção de coisas dentro da bolsinha e duas garrafas de suco.
Ele voltou para onde eu estava e me estendeu a bolsinha branca com o pacote marrom e suado dentro.
— Obrigada, João. — Falei e dei um sorriso largo.
— Tem pra tu e pra tia Vera. — Ele disse. — Seu Marcos pode comprar.
Ele estreitou os olhos e montou na moto, encarando o meu pai.
— Pensa no que eu te falei.
E subiu acelerando e roncando com o motor alto da moto.
•••
— Vamos, acorda, Vi. — Minha mãe me balançou.
— Que horas são? — Perguntei manhosa.
— Cinco da manhã, vamos. — Ela disse calma. — Você vai para a sua avó, o seu pai acha melhor assim..
— Mas, a vovó.. — Tentei dizer.
— É, meu amor. — Ela disse, me levantando. — Eu te amo, viu?
Assenti a abraçando. Tomei um banho rápido e terminei de comer o segundo salgado que havia ganhado de João Guilherme junto com a metade da minha garrafa de suco. Coloquei um vestido que ia até a metade dos joelhos e peguei a pequena mala com as poucas coisas que eu levaria para a casa da minha avó.
Eu só não imaginava que não voltaria tão cedo....