Capítulo 06

2483 Words
“Ainda que as pessoas acreditassem que a vida no Morro não era fácil, algumas pessoas mostravam que mais difícil era se livrar dos vícios fáceis que o lugar podia lhe proporcionar. Quero dizer, um vício necessariamente, não começa sem que você deixe que ele comece no seu corpo. Franco era um rapaz de, aparentemente, vinte e oito anos, mas a verdade é que ainda tinha vinte e dois. As drogas o tinha desgastado muito. Estava nervoso, precisava mais da pedra, mas já tinha vendido boa parte das coisas da sua mãe idosa e começará a fazer pequenos furtos na Orla da Barra. Segurou um pouco mais forte a faca de cortar carne que havia roubado da sua mãe entre os dedos e se aproximou do homem que andava pela calçada. Estava tarde e era relativamente escuro. Ele esperava fazer o mesmo de sempre. Um colar, um celular, correr para a boca e trocar por algumas gramas da pedra que o tirava de órbita. Ele costumava gostar disso. Segurou a faca e pulou na frente do homem, que pulou para trás. — Vamo, passa o que você tiver de valor aí, agora! — Gritou, nervoso. Se não fosse pelo beco escuro e a noite, era provável que o homem tivesse reparado nos seus dedos magros tremendo. — Tá maluco, rapá? — O homem gritou, agora nervoso. Tinha acabado de deixar a namorada no seu condomínio e caminhava calmamente para o seu próprio. Tinha mesmo que topar com o merda de um drogado? Ele praguejou, bufando. — Vamo, c*****o, não to pra brincadeira. — Franco apontou a faca mais próximo do homem. Um barulho no final da rua e Franco encarou nervoso, desconcertou-se e foi rendido pelo homem que era um pouco maior que ele. Sentiu a faca lhe perguntar uma, duas, três vezes, antes de ser deixado sozinho no meio da rua escura. O sangue tomava toda a sua boca, e ele encarou o céu escuro. Estava sozinho, não tinha mais salvação e sequer a pedra que tanto almejava. Perdeu a vida segundos depois, deixando pouca coisa para trás. • João Guilherme • Dadinho passou a mão nos cabelos assim que entrei na pequena sala apertada que guardavamos o estoque do plantão atual e meu escritório. Quase como uma finança. Cada plantão contava com uma quantidade de drogas e eles tinham que ter esse valor no final do dia, independente do que tenha acontecido. A questão é que um carregamento desses custa muita grana e eu não posso dar uma de Queiroz e viver perdendo droga pra pulga de b***a. De qualquer maneira, Dadinho era meu melhor amigo. Crescemos juntos. Se tinha alguém que eu podia confiar a minha vida e de olho fechado, esse nesse cara. Eu me joguei na minha cadeira e fiz uma careta para ele que balançou a perna de maneira nervosa. — Que que houve? — Perguntei. — Pô, mano! — Ele suspirou. — Tô nervosão, mané! — Por? — Levantei a sobrancelha enquanto mexia em alguns papéis importantes. Eu gostava de deixar essas paradas organizadas e guardadas dentro de casa. — O Franco, mano, meu primo.. — Tô ligado, o que' que tem ele? — Perguntei; doido para que o moleque falasse logo o que tinha acontecido. — Morreu, mano. — Esfreguei meu rosto, cansado.— Minha tia tá doida, não sabe o que fazer, de verdade. — Eu imagino, é f**a! — Murmurei. — Mas, tu tá precisando de algum bagulho? Alguma ajuda? — Pô, fico até com vergonha de te pedir isso, papo reto. — Ele parou alguns segundos e coçou a cabeça envergonhado. — Mas, tu sabe, tô construindo uma casa pra minha mãe fora do morro, tá ligado? Peguei todo o meu dinheiro e como, paguei ao pedreiro e os materiais de construção. — Ele suspirou, estava nervoso mesmo.— Será que tu não teria como me adiantar esse dinheiro? Minha tia tá sem nada, o Franco foi um vacilão, roubou ela e fez várias merdas, mas minha tia quer dar um enterro digno pro menor. — Pô, Edson, tu não precisa pedir duas vezes e sabe disso, mano. — Eu me levantei. — Precisa nem me devolver o bagulho, sei como é apertado pra sua tia e você tá realizando o sonho da sua rainha, é até s*******m eu querer cobrar isso de você. — Valeu mesmo, Neném. — Ele sorriu. Estava um pouco abatido. Mesmo que não fossemos mais próximos, Franco cresceu com a gente. Era um moleque bom, cabeça, tinha o sonho de ser jogador de futebol. Um dia, saiu pra uma festinha fora da favela. A gente não quis ir junto, ele foi junto com uns amigos do colégio onde estudava. Um monte de playboy que adorava usar droga. Talvez, se ele não tivesse usado algo tão forte, se não tivesse usado algo tão pesado ou não tivesse usado mais de uma vez; Franco ainda estivesse aqui. Brigamos quando tentamos acabar com aquilo nele, não permitir que ele usasse mais droga, proibir a venda para ele — e é até hoje. Mas, não importava o quanto ele tivesse que andar, ele sempre ia atrás de mais. Se tornou agressivo, paranoico, ficou magro e acabado. Sua vida se resumia a usar drogas e ficar chapado. Era quase um looping. Ele nem comia direito. Poucos foram os seus momentos sóbrios. Ele não ligava para muita coisa não, lembro até hoje do último contato real que tivemos. O moleque se afastou e nos tentamos de tudo por ele. Não sei como Dadinho pensou que eu podia esquece-lo, na sala da nossa casa tinha uma foto de nós três. Eu só queria detalhes do que aconteceu. —Mas, você tem alguma notícia do que aconteceu? — Perguntou. — Facada! Três. — Ele fez o número três com os dedos. — Está passando em todos os jornais, você não viu nada? — Não, estava na casa da tia Vera. — Dei de ombros. — Tô sabendo que a filha dela está de volta. — Ele passou a mão no queixo. — Boatos que ela está gostosa. — Ela não é pro teu bico não. — Dei dois tapinhas' fracos no seu rosto. — Ela m*l chegou e você já está querendo pra você? Nem da oportunidade pros amigos. — Não tô pegando ela, se é isso que você quer saber. — Eu o encarei por algum tempo. Ele me encarou com as sobrancelhas erguidas. — Coé, você sabe que eu tô dizendo a verdade, não peguei ela não e nem pretendo. — Nem se ela te der mole? — Ele me perguntou. — Ô Dadinho, você não tem um enterro pra' resolver? — Perguntei. — Vai, vai... se adianta. Ele deu um risada e andou até a porta, colocando a mão na maçaneta. Deu uma última olhafa para trás e me encarou: — Valeu, mano! Você é meu irmãozão. — Você sabe que pode contar comigo sempre que quiser, né seu corno? — Eu brinquei. Não queria que o clima ficasse pesado. Ele fechou a porta e me deixou sozinho. Encarei a parede descascada e puxei o ar para os meus pulmões, cansado. Tanta coisa acontecendo, quantos amigos morrendo e deixando a gente aqui na terra. Franco era jovem, inteligente, queria dar um futuro para a mãe e se desviou por causa das drogas. E sim, porr4, eu sei que estou errado em vender toda essa merda e falar sobre como drogas matam, mas eu nunca fui na casa de ninguém oferecer, eles procuram a gente. Oferta e demanda, é assim que sustentamos tudo aqui. Eu não concordo com muita coisa, mas também não vou ficar me impondo sobre qualquer merda politicamente correta. Para ser realista, eu sequer penso em mudar muitas coisas. Eu não sou rico, não sou da Elite, não sou o Batman. Eu sair do crime não vai acabar com ele, só vai deixar minha mãe com fome, igual meu padrinho — que jurou cuidar de nós para o meu pai — fez conosco várias vezes. Não sei o que ele tentou fazer, mas minha mãe precisou vender o corpo para ele para conseguir me arrumar comida. Ele se dizia irmão do meu pai, mas se aproveitou da sua mulher para cuidar do moleque que ele prometeu ser segundo pai. Esse foi o maior motivo para eu ainda não ter aceito ser padrinho de qualquer pessoa que seja. Eu não acho que mereço ser padrinho de alguém, eu não sei o que poderia oferecer de bom, quais ensinamentos de vida eu daria. Eu não sou perfeito, eu sei, ninguém é, mas não sou o melhor exemplo para um garotinho' que ainda vai crescer. Se eu for o padrinho de qualquer um deles, vão achar que é extremamente comum andar com um fuzil nas costas. Sai da saleta, pegando a minha moto. Montei nela, indo para a minha casa. Assim abri a porta, o cheiro de comida inavadiu meu nariz, lambi meus lábios e andei para a cozinha, onde encontrei minha mãe. — Já estou fazendo a janta. — Ela sorriu para mim. — Vai ficar? — Acho que só vou comer, tô ajudando no enterro do Franco. — Expliquei. Ela limpou a mão no pano de prato e segurou a cadeira, me encarando. Seus olhos diziam muito mais do que eu poderia escutar. Era claro que a minha mãe tinha medo. Medo da vida, medo das minhas escolhas, medo da morte, medo da perda... medo de que acontecesse o mesmo comigo. A questão, entretanto, era que eu não era Franco. Não gostava de drogas pesadas e não fazia furtos na orla. Ele era magro, devia ter menos de cinquenta quilos, era possível enxergar suas costelas e ele ainda tinha coragem de sair para roubar? Era óbvio que, hora ou outra, isso aconteceria com ele. Nunca foi novidade para ninguém. — Mãe, você sabe que eu vou ficar bem... — Eu pontuei para ela. — João Guilherme, meu filho, eu não queria isso para você, que você terminasse igual seu pai... — ela me encarou, a sua voz carregada de mágoa. Eu odiava deixar minha mãe assim, odiava que ela sentisse que errou em alguma coisa. Eu que errei, eu que escolhi o m*l caminho, o caminho que mata, prende e destrói vidas. Ela me cirou da melhor maneira possível, limpando as casas de outras pessoas, sofrendo humilhação de madame. Saiu de primeira dama do morro pra' empregada na zona sul. Sempre assim, sempre será assim. Mutitos de nós não temos muito futuro mesmo, alguns de nós temos que viver a vida que temos e ponto. Recorrer ao tráfico e o dinheiro mais rápido e fácil que temos atualmente. — Eu não vou terminar assim, mãe. — Eu levantei meu nariz, a encarando. — E você sabe que não vou. — Olhe como você está, Guilherme! — Ela elevou o tom de voz. — Cuidado de toda essa porcaria, vivendo marcado por todos. Não tem paz, não pode ir a praia, não pode viajar, não pode sair do país ou é preso. Não vai demorar para sua cara estar estampada em todos os jornais. — Quem me protege não dorme, mãe. Não foi isso que você falou a vida toda? — Eu perguntei. — Seu pai dizia o mesmo, mas ele testou.... — ela me encarou. — Eu não quero perder meu único filho. — Você não vai me perder não, mãe. — Eu a abracei, juntando-a em um abraço. — Pode ficar tranquila. — Já sei que não posso mudar a sua cabeça. — Ela constatou. — A vera, a Lúcia, a Betânia e a menina da Vera vem comer em casa. — Tudo bem, se quiser, eu saio... — Eu ofereci. Não queria ficar no meio delas e nem vendo a Tia Betânia sofrendo pelo tio. — Não precisa, eu acho que o Edson pode vir. — Explicou. — Você sabe... vocês eram amigos dele. — Não mais, mãe. — O que é isso, Guilherme? — Ela bateu o pé. — Claro que você era amigo do menino. Pelo amor de Deus, isso não se faz não, viu? — Mãe, o Franco não queria falar com ninguém, não queria escutar. — Eu expliquei para ela. — A gente tentou e ele preferiu fugir de nós, xingar, gritar, viver como um drogado. Não aceitou ajuda, não aceitou que a gente tentasse. Ele escolheu ficar assim, sozinho... — Eu sei, mas você sabe que as drogas fizeram isso com ele! — Eu sei. — Segurei sua mão e beijei as costas. — Você sabe, eu tinha a maior consideração pelo menor, jurava que ele ia ter um futuro brilhante, a tia Beth fez de tudo pra' ele chegar lá, até colégio particular na zona sul pagou. Mas, é como eu sempre disse, a droga é legalizada pra' branquinho do olho azul que mora de frente pra praia. — Me afastei dela, e ela permaneceu me encarando. Ela sabia que eu não estava errado sobre isso. — Mas, pro Franco, pro moleque estudioso, n***o e da favela, ela é um crime e sinceramente, mãe? Fico puto por todos aqueles filhos de uma put4 terem largado ele depois que ele se tornou o que se tornou. — Eu queria que você o Edson tivessem conseguido fazer alguma coisa pelo menino. — Ela voltou a olhar as panelas. E eu também queria ter feito algo, algo que pudesse ajuda-lo. Queria ter esse poder, mas fiz o que estava ao meu alcance. Ele era um adulto e eu não tinha como fazer mais do que já tinha feito. Eu não era o pai dele e aparentemente, hoje em dia não podemos forçar uma pessoa a internação. Tentamos de tudo, e foi em vão. É, realmente, triste perder alguém, principalmente, quando as coisas saem do nosso controle. Agora, eu me pergunto se vale a pena deixar a sua mãe chorando por uma escolha e não, eu não quero julgar alguém. Não quero julgar Franco ou fazer a sua mãe remoer o fato de que o seu filho não estará mais entre nós. Eu não gosto de saber que ele era seu único filho e que agora, se não tivesse a irmã e o sobrinho, ela ficaria sozinha até o último dia da sua vida. — Prefiro ficar longe disso, tudo bem? — Murmurei para ela. — Tudo bem, meu filho. — Ela beijou meu rosto. — Espero que, pelo menos, no enterro você vá. — x — Me sigam no insta @aut.may AVISO O livro não é baseado em fatos reais, para ser realista, estou criando situações ficticias baseadas na minha vivência como moradra do Rio de Janeiro. No inicio de cada texto, terémos uma pequena introdução mostrando a vida real de algum morador da comunidade. E por último, toda frase escrita em itálico é uma gíria ou ditado escrita "errôneamente" É isso, Obrigada! sz
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