Juliana chegou aérea em casa, mas foi fácil disfarçar que era pelo sumiço do tio.
Por volta de 19 horas sua madrinha ligou avisando que o tio havia chegado. Sua mãe pôs o telefone no viva voz e perceberam um tom choroso na voz de Marcelina, mas nada falaram.
No sábado seriam os 15 anos de Vitória, mas o clima deixado pela ausência não explicada do pai da debutante deixou o assunto em segundo plano.
Juliana assistiu TV até tarde e foi deitar. As lembranças da maior loucura que já havia feito a faziam sorrir e arrepiar. Lembrou da conversa que tiveram após se vestirem e continuarem o trajeto para casa.
“Sabe por que eu gosto que segurem a minha cabeça?” – Perguntava ele com um sorriso malicioso.
“Por que?”
“Por que a mulher sempre começa segurando firme. Conforme ela vai relaxando e gostando, ela vai soltando os cabelos e as mãos começam a tremer”.
Juliana sentiu esquentar até a alma lembrando daquilo. Será que ele fazia isso com todas? Afinal, por que ele quis ficar com ela? Ficou tão distraída com as obscenidades que ele lhe falou até chegarem em casa – além das que já haviam feito – que até esqueceu de perguntar.
Custou a dormir, mas dormiu bem.
No outro dia durante o recreio estava junto das amigas. Todas comentando o que fizeram durante a semana de recesso, e ela só pensava no carro parado no meio da estrada.
- Que foi Juliana?
- Que?
- Tá rindo sozinha.
-Ah, de um filme que eu vi. A mulher botando o pé na boca do cara.
- Mentira.
- Não, pior que foi. Eu vi também. Foi na Band sábado né?
- Aham! Eu vi com minhas primas. A minha prima mais nova é virgem ainda, daí ela ficou apavorada de ver o cara e a mulher transando no meio do bar.
- É, mas parecia que o cara ia arrebentar a mulher. Até eu achei estranho.
Todas riram.
A semana transcorreu sem grandes diferenças, até que quinta-feira Maria ligou avisando que viria para a festa.
Ela não tinha dado certeza sobre a vinda, pois a gravidez estava avançada e eram mais de 200 kilometros da cidade dela até ali. Porém a mãe e a irmã insistiram tanto que ela acabou cedendo.
Ficou combinado que Maria e o marido viriam de ônibus até Porto Alegre e lá a mãe os pegaria de carro e traria até São Jerônimo.
Na sexta à noite Malú fechou o mercado mais cedo pois a viagem até a capital levava cerca de uma hora. Maria pegou o ônibus onze e meia da noite e devia chegar na rodoviária por volta de uma e meia.
- Pegou as chaves? Fechou as janelas lá em cima?
- Fechei tudo. As chaves tão aqui.
Entraram no carro e rumaram para a capital.
- Ela já entrou de licença maternidade?
- Já. Ela falou que tá com 39 semanas. Eu não entendo isso de semana, antigamente era um mês, dois meses, três meses. Só pra gente se confundir. Que horas já é?
- Uma e vinte.
- Dormi m*l. Assim que eu chegar vou deitar de novo. Tomar um banho fervendo e dormir.
- Fervendo não, se não se queima.
As duas riram.
- Não acredito que a Vitória vai fazer 15 anos. 15 aninhos aquela pequenininha. Lembro dela engatinhando de fralda.
- Ela tava tão ansiosa, agora com esse sumiço do dindo semana passada ela até murchou.
- Teu tio tá traindo a Celina. E o capataz aquele tá ajudando, já te disse isso.
- Mas mãe, a troco de que o cara ajudaria o tio?
- Juliana, homem é unido. Quem paga o salário dele? O Guido. A Celina tem que aguentar traição, ela não sabe fazer nada da vida e nunca quis aprender.
- Credo mãe. Mas ela não tem que aguentar nada, onde já se viu?
- Cai na realidade minha filha. Tua tia não é nova e nem é bonita mais. Não estudou, só sabe fazer faxina e sempre dependeu do Guido. Ela pega todo o dinheiro e gasta. Ele paga as contas, ele faz o que ele quiser, isso vale pro rapaz também. O moço não tá nem aí com o que o patrão faz, pagando em dia e dando uma casa boa daquela pra ele morar de graça? Que que ele quer mais? Não paga água nem luz, ganha pra não fazer quase nada por que agora os donos da casa não vivem viajando. Eu achei ele muito simpático, legal, mas não vejo utilidade pra ele ali por que não é que nem o outro dono que não parava em casa.
- A dinda diz que fica mais segura com ele por perto.
- Tua dinda quer é dar pro guri e não sabe como. – Disse ela com um brilho sujo nos olhos.
- Que isso mãe?!
- Mas é filha, só cuida. Tua tia sempre foi inocente, nunca foi de aprontar,acho até que ela casou virgem. E aquele guri mexe com a gente, ah isso mexe não vou negar. Imagina quando ela se der conta que o Guido tá traindo ela? Ah ela vai pegar o que estiver na mão pra dar o troco. – Malú riu – É, o rapaz tá comendo dos dois lados. Ajudando o Guido com a outra e vai ajudar a mulher do Guido à esquecer dele.
Juliana riu quando a mãe disse que Ciro mexia com uma mulher. Ela era a prova viva disso e queria gritar sobre o que fizeram, mas não podia. Ao mesmo tempo sentiu ciúmes ao pensar em Ciro com outra que não ela.
Divagou por longos minutos sobre a tal união masculina,e se perguntou se alguém que parecia tão angelical como o rapaz de olhos azuis poderia fazer o que sua mãe falara. Ora, se ele fosse capaz de encobrir uma traição, o que ele não faria com ela? Lembrou da conversa que teve com Vitória na manhã após a festa. Lembrou dela explicando para a prima sobre ficar com homens mais velhos e lembrou também que Ciro chegou apenas na hora do almoço.
Ele era um homem lindo até demais. Juliana tinha certeza de que em qualquer lugar que ele fosse ele chamaria a atenção. Qual mulher solteira ou casada não iria querer ficar com ele por mais errado que fosse? Ele era do tipo de homem que fazia o errado parecer valer a pena, pois ele parecia aquele homem com quem uma mulher só tem oportunidade de ficar uma vez na vida. E ninguém iria desperdiçar.
Os calafrios que ela tinha ao lembrar de terem transado no carro desapareceram e ela se sentiu uma completa i****a. Sentiu medo de virar chacota na roda de amiguinhos dele e na cidade. Lembrou dos amigos dele rindo de Marcela e se desesperou.
Foi muita loucura, e agora as doces lembranças de repente ficaram amargas.
Não queria mais ir na dinda, amaldiçoou os padrinhos por terem vendido a casa na cidade e ido pro quinto dos infernos, pra uma casa onde tinha que ter capataz. Pra que inventar moda? Adorava a casa dos dindos justamente por não ter estranhos lá, por se sentir à vontade muito mais do que em casa. Agora tinha um homem pra atrapalhar tudo, e ela deu uma i********e que não devia à um completo desconhecido.
- Tá bem Ju?
Juliana se sentiu chamada de volta para a realidade.
- Tô mãe. Já tamo chegando?
- Daqui a pouco. Vamos passar por Guaíba ainda. Amanhã depois do almoço vamos ir numa loja comprar roupa pra ti.
- Sério? Pelo menos alguma coisa boa.
- E o que que teve de r**m?
Ela percebeu que falou demais.
- Nada.
- Vocês jovens, tudo reclamam.
Chegaram à rodoviária e encontraram a irmã e cunhado. A barriga de Maria estava enorme e levantava o vestido dela, fazendo-a sentir frio.
Entraram no carro e o cunhado de Juliana voltou dirigindo. Ela se sentou no banco de trás no lado direito, mesmo lugar onde sentara no dia em que Ciro a levou em casa.
Olhava para o chão do carro e lembrava de Ciro ali de joelhos em frente à ela. Tentava se esquivar dos pensamentos,mas seu corpo reagia. Lembrava dele pedindo para ela mexer em seus cabelos, o prazer que sentiu, a respiração ofegante dos dois. Queria censurar os pensamentos, mas estar sentada no mesmo banco daquele dia e ter a mesma visão não estava ajudando.
- Mana, tu tá bem?
- Tô. Tu e mãe perguntando isso. Tem alguma coisa errada comigo?
- Não. Tu tá suspirando.
- Apaixonada ela não tá. O Wilian foi preso.
- Que? O Wilian do seu Paulo? O teu ex Ju?
- É. Ele mesmo. Assaltaram uma mulher lá perto do motel. Ele e mais uns guris, até uns que eu conhecia. A senhora tinha que falar né mãe? Que saco.
- Que saco por que Juliana? Tu gostava dele.
- Não gostava não! Mas que droga! A senhora fica falando que eu fiquei com ele as pessoas vão pensar que eu sou vagabunda que namora com marginal!
- Ninguém tá falando isso mana. A mãe só comentou. Meu Deus! Aquele dia que vocês foram lá o pai falou que a Marcela anda putiando por aí. Agora o Wilian tá preso. Que que tá acontecendo com esses jovens?
- Teu pai falando da Marcela? Mas adora uma fofoca. Quando teus avós falaram m*l de mim por tá grávida de ti sem tá casada com ele ele não disse nada. Ficou pianinho.
- Vai começar. – Disse Juliana.
O cunhado ao volante apenas riu.
- Mãe me alcança meu celular?
Malú estava sentada no banco da frente e pegou o telefone de perto do vidro para alcançar para Juliana.
Ao abrir a tampinha do telefone viu duas ligações de um número desconhecido e uma mensagem de Ciro. Olhou primeiro a mensagem e se sentiu confusa. Afinal, se já haviam transado por que ele pegou seu telefone e continuava lhe mandando mensagens? Por que ele parecia apaixonado? Ele estava apaixonado ou ela via coisa onde não tinha? Se ele não queria nada sério por que insistia?
Quando Juliana percebeu, sua irmã estava com o olho espichado na tela de seu telefone com um sorriso de canto. Ela tirou os olhos da tela e olhou para Juliana como quem diz “depois me conta”.
“Ai não. Não acredito.” Pensou.
No banco da frente sua mãe tirava um cochilo e seu cunhado estava em silêncio.
Fechou os olhos e dormiu, não havia o que fazer.
No outro dia foi ao shopping com a mãe e comprou a roupa para ir na festa. Esperou meses por aquele acontecimento e agora não conseguia sequer colocar a cabeça no lugar para aproveitar.
Chegou com a mãe, a irmã e o cunhado e viu o pai chegar acompanhado de seus avós paternos que ela não via há anos.
- A vó e o vô tão aí!
- Eu já vi. Não vai lá adular eles Juliana. Eles sabem vir aqui e nunca procuraram vocês.
Juliana suspirou e olhou para a irmã.
Passado algum tempo Vitória chegou e entrou de braço dado com o pai. Marcelina e Marcela entraram um pouco antes e os esperaram no meio do salão.
Ciro estava sentado do outro lado do salão e encarava Vitória com um olhar quase penetrante, ao que ela desviava.
Ela e os familiares do lado de cá perceberam que havia algo errado na fisionomia da família. Marcelina parecia abatida e Guido estava com raiva, ainda que contida. Vitória e Marcela apesar da forte maquiagem pareciam ter chorado, e não era pela emoção da data importante.
“Vitória dos Santos....” Lia alguém em voz alta.
- A dinda não tá bem. – Disse Juliana para a irmã em um cochicho.
- Eu já vi.
“Nascida em 27 de Junho de 1994 na localidade de São Jerônimo...”
- Nem a Vi tá bem.
- Eu também já vi. Mas façam silêncio.- Disse Malú.
Passadas as homenagens cantaram parabéns e todos foram cumprimentar a aniversariante. Os avós de Juliana olharam com nojo para Malú quando esta passou perto deles, e os lugares acabaram se invertendo. Juliana e Maria foram sentar na mesa da família da debutante junto ao pai e os avós vindos do interior, e Malú ficou sozinha.
Maria Luísa e Marcos haviam se separado há oito anos, mas ela seguiu amiga dos compadres. Agora ali ela se sentia deslocada pois seus ex sogros a detestavam, e Celina não podia sair de perto da família para conversar com ela. Pensou seriamente em ir embora, mas para sua surpresa uma companhia inesperada apareceu.
- Boa noite!
- Oi! Tudo bem menino? Que faz perdido por aqui?
Ciro veio se sentar junto à ela trazendo duas latas de cerveja. Ele sentou à sua frente e abriu as latinhas, oferecendo uma para Malú.
Começou a tocar uma música dos anos 80 e ela pareceu animada.
- Essa música é de quando a Juliana nem era nascida. – Sorriu nostálgica.
- Eu lembro dessa música no perdidos na noite.
- Você lembra? É do seu tempo?
- Eu tinha uns seis anos.
- Eu adorava essas músicas. Antigamente aqui tinha um som e eu e o Marcos vínhamos com a Maria pequena. Agora ela vai ser mãe!
- O tempo voa. Lembro de quando fui trabalhar de agregado a primeira vez. Fiquei apavorado de ficar sozinho num pátio enorme na beira da estrada.
- Eu fiquei apavorada quando cheguei aqui. Perto da cidade onde eu vim, isso aqui era Porto Alegre.
Os dois riram e beberam um gole.
- Agora me diga rapaz, com tanta menina bonita por que sentou aqui com essa velha?
- Aqui é uma festa de família, não dá pra se aproximar assim. Festa de santo os pais não tão nem aí pras filhas, festa de família elas ficam sentadinhas do lado do pai e da mãe.
- Filho, tu é tão novo e fala umas coisas tão certas.
- Já vi muita coisa nessa vida. Mas isso não quer dizer que eu não queira sua companhia.
- Vou ficar com a bola toda. Deve tá todo mundo olhando pra cá. “Olha lá a Malú com um bonitão”.
Ciro riu.
- É, tem gente olhando. E eu vi a senhora sozinha aqui.
- Que nem você disse, isso aqui é festa de família e não de santo. Você não tem namorada?
- Não. Gosto de uma menina, mas ela é muito desconfiada, acha que eu não quero nada sério.
- Uma mulher te rejeitando?
Do outro lado do salão, pessoas observavam a cena.
- Pouca vergonha. Se dando pra um guri que podia ser filho dela.
- Eles tão só conversando mãe.
- Não defende Celinha. Ela sempre foi assim.
Juliana e Maria estavam visivelmente incomodadas com os comentários maldosos de seus avós sobre sua mãe, e além disso Juliana se preocupava com o que Ciro estaria falando com ela.
Foi até o banheiro e viu duas chamadas de número desconhecido. O telefone tocou novamente e ela atendeu.
- Oi. Alô?
- Juliana.
A voz do outro lado fez Juliana travar e gelar.
- Ju. Sou eu, Wilian. Tô com saudade amor. Quero te ver!
Sem pensar ela fechou o telefone e quando percebeu, seus pés já haviam levado-a até a mesa onde sua mãe conversava com Ciro.
- Mãe vamo pra casa.
- Não agora não. Nem é meia noite ainda.
- Mãe eu quero ir embora.
- Vai ficar querendo. Que foi? Tua vó incomodando? Senta aqui.
Malú puxou Juliana e pôs sentada na mesa perto de Ciro.
- Pega uma cerveja pra ela.
- Com muito prazer. – Disse ele já levantando.
- Que aconteceu?
- Quero ir embora. Não viu o clima aqui? Tá horrível. Vamo pra casa dormir que a gente ganha mais.
- Negativo.
Ciro voltou e ofereceu uma lata de cerveja para Juliana, se sentando em seguida.
- Bebe criatura!
A mãe abriu a lata e quase enfiou a cerveja na boca de Juliana, enquanto Ciro observava tudo rindo. Rir era sua marca registrada. Quando não isso, era o olhar direto capaz de desconcertar.
Os dois conversavam de maneira animada em frente à ela, que só queria fechar os olhos e morrer. Sentia os olhares vindos da mesa de Vitória em direção à ela e queria desaparecer.
- Quem é aquele moço? – Perguntou Maria.
- É o rapaz que cuida lá em casa. – Respondeu Celina.
- Ele e a mãe se conhecem?
- Não, mas o Ciro se dá com todo mundo, não tem quem não goste dele. – Ponderou Guido.
- O nome dele é Ciro?
- Sim.
Maria se lembrou que havia visto esse nome no celular da irmã e lembrou do teor da mensagem.
Ela apenas baixou a cabeça e pensou com seus botões.
A festa se seguiu, e Juliana saiu para dançar e circular. Malú e Ciro dançaram juntos várias músicas, ao que a família comentava e Marcos parecia estar com ciúmes. Juliana notou, mas dançou com outros meninos e procurou não transparecer.
Na saída da festa Ciro acompanhou Malú até o carro.
- Tá aqui. Tá entregue! Tchau pra vocês. – Disse ele olhando para Juliana e sua família que esperavam para embarcar no carro.
- Obrigada.- Disse Maria.
- Tchau querido!
- Tchau dona Malú!
Juliana foi dormir com a mãe e as visitas dormiram em seu quarto.
Quando já se preparavam para dormir, a mãe alfinetou.
- Lindo casal vocês.
- Que?
- Não te faz Juliana. Não te faz.
- Não te faz o que? A senhora não disse que a dinda que quer ele?
- Falei aquilo só pra te testar. Tu acha mesmo que a tonta da tua tia vai trair o teu tio? Tinha que ver a tua cara quando eu falei. E quando eu disse que ele mexe com uma mulher? Minha filha, eu posso não ter estudado, ser matuta, mas burra eu não sou.
Juliana ficou paralisada.
- Aquele dia a tua dinda me ligou quando vocês saíram, duas e meia da tarde. Tu chegou aqui quase três e meia. Não leva uma hora de lá aqui domingo quando não tem ninguém na estrada. Onde vocês foram?
Sem saída ela teve que responder.
- Foi no carro. Logo depois que a casa da dinda sumiu da vista.
A mãe deitou na cama e antes de se virar disse:
- É filha, tô abismada. Sempre achei que tu fosse mais burrinha que a tua irmã.