Capitulo 1

2881 Words
Como de costume, acordei às 5h da manhã. Seria meu primeiro dia na faculdade, meu primeiro dia nessa cidade. Estávamos eu; meu motorista e segurança, Sr. Colis; e minha babá, tia Carla. Vim estudar Medicina em uma grande cidade, como dizia meu pai, José, e realizar o sonho da minha mãe Nazaré. Chegamos ontem, à meia-noite. A viagem tinha sido longa e cansativa. Meu corpo estava dolorido das horas que passei sentada no avião, além da tensão da minha primeira viagem. Vim de longe, eu precisava manter distância do meu passado, que estava abandonando, tudo precisava ser diferente, eu precisava renascer. Eu havia cortado meus cabelos antes da viagem. Eles eram longos, encostavam-se à minha cintura, agora estavam curtos, não tocavam sequer nos meus ombros. Enquanto penteava meus cabelos em minha suíte, ouvi três batidas na porta, em seguida o Sr. Colis falou calmamente, com a rouquidão de quem passou a madrugada acordado: — Minha menina, termine de se arrumar, temos uma surpresa para você antes do seu primeiro dia de aula. Ao sair do quarto, senti um cheiro de café forte. Saí caminhando lentamente, balançando meus cabelos curtinhos e seguindo o cheiro que vinha da cozinha. Tia Carla tinha preparado um banquete para mim, com muitas frutas, queijos, pães, geleias e biscoitos caseiros. Olhei atentamente cada detalhe da mesa e perguntei, surpresa: — Tia Carla, você fez tudo isso para mim ou estamos esperando mais gente? Sorrimos nós três e pedi para que eles se sentassem comigo à mesa para partilhar daquele café da manhã feito com tanto amor. Tenho certeza de que as flores que estavam decorando a mesa foram escolhidas pelo Sr. Colis. Eram flores tropicais na cor rosa. Elas me chamavam atenção por serem diferentes e acabavam por me lembrar da minha casa. Eles colocaram de tudo um pouco do que tinha na minha terra. Era tanto amor em pequenos detalhes, que conseguia sentir que estava em casa. Ali, nós três comemos, rimos e conversamos várias bobagens como todos os dias que vivi em minha antiga casa. Desde que nasci, tia Carla e o Sr. Colis cuidavam de mim. Meu pai era empresário e vivia viajando a negócios, minha mãe o acompanhava, ela dizia que a trabalho, mas hoje eu entendo que também era pela diversão. Na volta das viagens, eles traziam presentes, passávamos alguns dias juntos e eles viajavam novamente. Nunca viajei com eles, na verdade, nunca havia saído da minha cidade, esta foi a minha primeira vez. Quando pequena, sofria pedindo para participar das viagens, ou pedindo para que meus pais participassem ativamente da minha vida, mas nunca acataram meu pedido, eles me criavam passivamente e eu sempre era acalentada pelo Sr. Colis e por tia Carla, que eram presentes e ativos na minha educação.  Minha mãe me falou que, quando completei um ano de vida, comecei a ficar sob os cuidados de tia Carla e do Sr. Colis. Meus pais geralmente passavam um mês viajando e poucos dias em casa. Às vezes, custo a acreditar que eles precisassem viajar tanto a trabalho então, como não tinha como retrucar ou ter provas do contrário, preferi a comodidade e a conformidade de acreditar. Eles me traziam presentes do mundo todo. Na minha antiga casa, eu tinha um armário só para guardar os presentes trazidos por eles para olhar e admirar, era uma forma de senti-los mais perto de mim. Nos dias que eles passavam em casa, costumavam dar festas para receberem os amigos dos quais eles sentiam muita falta. Passavam o dia resolvendo as comidas, bebidas, decoração, músicas e quase não tínhamos tempo para nós três, acho, inclusive, que nunca tivemos esse tempo. No caminho para faculdade, o Sr. Colis tentou conversar comigo para diminuir minha tensão de estar em um lugar diferente e começando do zero, mas eu não conseguia retribuir a gentileza dele. Fiquei calada olhando, pela janela dianteira do carro, o mar que passava correndo na nossa velocidade. Era lindo, era voraz e ao mesmo tempo tranquilo. Escolhemos uma cidade com mar porque eu acreditava que o sal, que cicatrizava quando batia nas feridas, iria me curar.   O Sr. Colis tinha vindo morar na cidade três meses antes para estudar as rotas, os estacionamentos e os lugares que eu poderia frequentar. Também estudou nossos vizinhos e minha faculdade. Nesse período, eu só o via nos finais de semana, ele fazia questão de voltar para nossa cidade para ficar comigo e com tia Carla. Eles viviam um romance escondido, não entendia o motivo de ser escondido, mas, desde que nasci, era assim e eles nunca me falaram o motivo. Lembro-me de que uma vez os vi em um beijo apaixonado, eles não notaram a minha presença, olhavam-se com tanto amor e diziam declarações de amor um para o outro que preferi não atrapalhar, fiquei apenas admirando aquele momento de amor puro e verdadeiro que eu nunca havia sentido, nem entre meus pais.   Cheguei à faculdade e meus olhos brilhavam diante da grandiosidade que era aquele lugar. Ainda anestesiada, ouvi o Sr. Colis falar: — Minha menina, agora você vai descer e vai buscar sua felicidade. Estarei aqui com o celular ligado, esperando você voltar, nós te amamos e você vai conseguir superar tudo! Pela primeira vez, ouvi o Sr. Colis falar que me amava. Era algo óbvio, mas ele nunca tinha me falado tão explícito e era tudo o que precisava ouvir naquele momento, eu precisava sentir que era capaz, que era forte. — Sr. Colis, muito obrigada. Eu também te amo muito, mas por que você não vai descer comigo? Estou com me... — Minha menina, você precisa crescer e desbravar o mundo sozinha, você já venceu o seu passado, estou com você, confio em você! A buzina de um carro nos interrompeu e percebi uma gota de lágrima escorrendo pelo rosto dele enquanto me olhava e sorria ao mesmo tempo. Ele continuou: — Agora, se apresse e vá conhecer seu presente, eu me orgulho de você. Eu havia saído do meu estado, da minha casa, de perto dos meus amigos, abandonado meus sonhos para estar ali, em uma cidade completamente diferente, para recomeçar, para tentar de novo. Seria um voto de confiança dado a mim por mim mesma, eu iria renascer. Com as mãos sobre a minha barriga, passei a me concentrar na minha respiração, no meu ritmo e me lembrei dela. Eu estava ali não só por mim, eu estava ali também por ela. Desci do carro sentindo muita confiança e amor, nada poderia estragar o que meus pais de criação tinham feito por mim naquele período da manhã. Nem minhas tristes lembranças, nem meus medos poderiam naquele momento vencer tanto carinho e amor. Ao entrar na faculdade, saí em busca da sala 503b, onde iria começar minha aula. Eu estava matriculada na turma 232 de Medicina. Fui andando pelos corredores e observei grupos de amigos sorrindo, conversando, tirando fotos e fui sentindo um frio na barriga. A minha confiança estava indo embora juntamente com o medo de partilhar do passado, de não conseguir recomeçar. Cheguei ao meu destino, estava em frente à sala 503b, fiquei parada ali na frente esperando a coragem voltar. Na porta, havia um comunicado que dava boas-vindas à turma 232. Ainda parada como uma estátua na porta, senti uma mão pesada sobre o meu ombro que estava desprotegido pelos meus cabelos curtos. Eu senti um cheiro amadeirado, forte, enlouquecedor que veio seguido de uma voz macia e grave ao mesmo tempo. O cheiro e a voz eram harmônicos. O rapaz, dono daquela voz entorpecente, falou baixinho: — Com licença, morena! De imediato, comecei a suar frio e meu coração começou a sentir a batida do terror que tinha vivido no passado, não poderia ser ele, estávamos muito distantes, não acreditava que o Sr. Colis não saberia que ele teria descoberto nosso destino. A voz do rapaz era diferente da voz do Ricardo, era macia e o perfume era amadeirado, diferente daquele cheiro doce e marcante que ele havia deixado no meu corpo. Eu sentia um “mix” de medo e surpresa, então, sem conseguir pensar muito no que estava acontecendo, pedi desculpas sem me mover. Ele insistiu, eu sentia a presença dele junto ao meu corpo, que respondia com arrepios como se buscassem preenchimento com aquele cheiro. Ele se aproximou mais e sua boca agora estava próxima ao meu ouvido. Eu pude sentir o hálito quente que aquela boca exalava, pude ouvir os pequenos estalos da saliva na boca dele e meu corpo respondia com mais desejo, eu me sentia burra, como podia sentir aquilo por alguém, depois de tudo que havia passado? Ele continuou: — Com licença, morena! Não adianta você pedir desculpas e continuar na frente da porta. Eu lhe obedeci apenas dando um passo para a lateral, afastei-me da frente da porta abrindo passagem, foi o máximo que consegui fazer. O medo de estar diante do Ricardo novamente me deixava sem forças, mas o desejo por aquele cheiro me mantinha ali inerte pedindo mais. Fiquei esperando-o passar, eu não suportava ser chamada de morena, eu não suportava lembrar que o Ricardo existira. Ele andou bem devagar e fez questão de virar o rosto para me ver, eu levantei minha cabeça para olhar quem era aquele rapaz que despertava tantos sentimentos e foi assim que nossos olhos se encontraram pela primeira vez. Era um moreno alto, forte e com os olhos castanho-claros como os meus. Usava uma barba que desenhava o seu belo rosto. Não era o Ricardo, eles não tinham nenhuma semelhança, eu respirei, aliviada. Respirei fundo mais uma vez o perfume amadeirado que ele exalava e tinha deixado de rastro ao passar por mim. Entrei na sala e busquei sentar-me longe daquele homem que tanto despertava sentimentos que estavam adormecidos. Eu não conseguia parar de pensar na voz dele me chamando de morena, era demais para eu passar por aquilo de novo. Minha cabeça fervia, porque aquele rapaz havia despertado em mim sentimentos adormecidos e justamente usando um apelido que eu detestava e me trazia tantas lembranças ruins. Eu não queria me lembrar mais do Ricardo, tinha viajado milhas de distância para ficar longe daquele monstro. Ainda conseguia ouvir o mantra dele dizendo que eu seria para sempre dele. Eu não poderia falar ou pensar nele, nunca mais, principalmente depois do que ele me fez. Ele matou nossa filha ainda no meu ventre, como poderia um ser humano fazer isso? Ele merecia desprezo e eu o queria longe de mim para sempre. Sair da minha cidade era uma fuga dele, daquele lugar que me trazia tantas recordações ruins. Ainda conseguia sentir cada murro que ele me deu, a arma gelada tocando minha face, meu ventre doendo e a pele de minha filha gelada. Na última aula, a professora de Anatomia pediu para que fossem feitas duplas para realização de um seminário. Senti uma angústia porque eu não queria fazer dupla com ninguém naquele momento. O rapaz misterioso fez dupla com o seu vizinho de cadeira. Fui observando as duplas serem formadas, na esperança de não ter ninguém para fazer dupla comigo e eu fazer o trabalho sozinha, até que fui interrompida pela professora que perguntou: — Todas as duplas estão formadas? Todos responderam que sim sob um tom único, menos eu, que fiquei calada apenas ouvindo. — Venham me entregar os nomes das duplas, que irei passar o sistema que vocês irão apresentar. Esperei todos se levantarem para darem os nomes à professora, para eu me levantar, sozinha. Eu precisava caminhar ao lado dele, o cheiro dele me atraía, eu não conseguia desviar, e assim fiz, segui o rastro dele e percebi que ele me acompanhava com o olhar e tentei me esconder inutilmente através dos meus cabelos curtos, mas, como não consegui, encurvei minhas costas. Andei olhando para baixo, não podia correr o risco de cruzar o olhar com e dele, e ele sabia que eu estava me escondendo. Aqueles olhos incandescentes brilhavam e eu tive o desejo de olhá-los, me distraí com o cheiro que ele exalava e cruzamos nossos olhares pela segunda vez. Cheguei até a professora e, com a voz trêmula de vergonha, esperançosa de que meu plano desse certo, perguntei: — Professora, não sobrou ninguém, posso fazer sozinha? E, para a minha surpresa, ele nos interrompeu. Ele estava prestando atenção em cada passo meu, em cada palavra que eu dizia. — Pode fazer com a gente, se quiser. Eu senti uma facada no coração, eu não queria aproximação com ele, ele me trazia sentimentos que não conseguia controlar, sentimentos que eu tive que apagar de mim. Eu estava em uma enrascada, até que a professora começou a olhar a chamada e finalizou: — Na chamada, consta que temos também a Paula Assunção, inscrita nesta turma. Ela será a sua dupla. Vocês falarão sobre o sistema cardiovascular. Sem esperar que eu voltasse para o meu lugar, ela finalizou a aula e eu fiquei ali, respirando de alívio de pé em frente à professora por não precisar fazer o trabalho com ele. Porém perguntei-me um milhão de vezes como acharia a Paula Assunção. Eu estava tão distraída pensando em como localizar minha dupla de trabalho, que não percebi quando ele se levantou da cadeira e, para ir embora, passou por mim, que ainda estava parada no mesmo local de antes. Mas, ao sentir o cheiro que tanto me atraía, virei o rosto à procura dele e ouvi quando ele falou baixinho: — Pena que não foi dessa vez. Meu celular vibrou, era uma mensagem do Sr. Colis informando que estava me esperando na frente da faculdade. Cheguei ao carro e ele, com um sorriso no rosto, foi logo indagando: — Minha menina, como foi seu primeiro dia de aula? Sr. Colis só fazia rir de mim quando contei a minha ideia de fazer o trabalho sozinha e que fui impedida pela garota que nem tinha ido para a faculdade no dia. Eu não quis falar para ele que alguém tinha acordado um sentimento que estava morto, porém, para minha surpresa, estava apenas adormecido. Eu estava calada, na volta para casa, quando o Sr. Colis perguntou: — Minha menina, em que você está pensando? Olhando para o retrovisor dianteiro do carro, respondi com um nó na garganta e decepcionada em ter sentido aquele desejo: — Alguém me fez lembrar do Ri. O Sr. Colis virou imediatamente o rosto em minha direção e, com uma voz grave e determinada, interrompeu-me dizendo: — Tudo já passou, já está resolvido. Você nos prometeu que não falaria mais dele para ninguém. Viva o seu presente! Eu, sabendo do meu erro, respondi: — Desculpe-me, o senhor tem razão! Mas aquele desejo havia despertado meus sentimentos e eu falei: — Só tenho de agradecer a vocês por estarem sempre comigo, mas não consigo entender o motivo de ele ter ido à granja, ele não queria me matar, só queria matar a Alice, por que, meu Deus? Era a primeira vez que conseguia falar daquele dia. Ouvir alguém me chamando de morena de novo era demais para mim. Aquele rapaz tinha me reportado para o meu passado sombrio, cheio de mágoas e medos. O Sr. Colis novamente virou o rosto em minha direção e, com uma voz mais tranquila, falou: — Minha menina, por favor, já tem mais de um ano que tudo aconteceu. Estamos construindo uma vida nova, em uma cidade nova, vamos viver em harmonia e felicidade. Aquele desgraçado irá pagar por tudo o que fez a você, eu mesmo estou cuidando de tudo para que ele nunca mais se aproxime de você. Ele é um rapaz r**m que entrou para as drogas e queria que afundasse junto com ele. Mas você é um anjo e nós te salvamos de todo m*l. — Mas ele está solto, não conseguimos comprovar tudo o que ele fez. E se ele me procurar de novo? Ele falou que iria voltar! Não consegui conter minhas lágrimas de medo. Coloquei as mãos no meu ventre e veio a saudade de sentir minha filha viva. O Sr. Colis parou o carro no acostamento, colocou a mão sobre as minhas mãos, que estavam sobre o meu ventre, e, com uma voz calma, disse: — Eu estarei ao seu lado em todos os momentos para te defender. Infelizmente ele se aproximou quando eu te deixei sozinha e... — Você não teve culpa, foi apenas fazer a feira como de costume. Como iria adivinhar? — Eu tenho que guardar sua vida para sempre, eu jurei isso e irei cumprir. — Eu que errei, Sr. Colis, deixei-me envolver por alguém que só queria o meu m*l. — Minha menina, foi apenas uma noite que você se deixou enganar e acreditou em quem não queria o seu bem. Ele armou tudo. Foi um plano perfeito. — Uma noite foi suficiente para... — Para a Alice ser gerada no seu ventre! — Eu a queria, eu a amava... tentei tanto livrá-la dos chutes que ele... — Ela sabe disso, todos nós sabemos. — Eu me lembro do seu rosto amassadinho, suas mãos pequenas... Ela já nasceu gelada. Não pude sentir o calor dela. Eu senti, pela primeira vez, o amor de verdade, Sr. Colis. Pela primeira vez, eu senti o que era amar e ser amada!
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