CARTA ABERTA - POR ANNA JÚLIA GRECCO
Todas as coisas começam e terminam em um piscar de olhos, não sabemos como e nem onde, e a único pergunta que importa mesmo é quando.
Quando é que tudo vai explodir na nossa cara? Quando a realidade vai acabar nos sufocando ao ponto de matar?
Agora sinto como se o meu coração estivesse despedaçado, e como se uma cobra estivesse enrolada ao meu pescoço, pronta para me dar o bote, pronta para me apertar até que toda a vida do meu corpo se esvaísse.
E eu digo isso por mim, por minha família e todos a minha volta: Onde está o limite? Existiu algum para os meus pais? Até onde eles foram para me manter dentro da minha bolha para nunca descobrir o que se passava lá nos bastidores dessa peça?
Eu fui criada como uma princesa, e disso vocês sabem... Cresci no meio de muitas jóias, mansões, festas e com a ideia de que os meus pais tinham tido uma vida tão chata quanto qualquer outra pessoa no planeta. E quando eu pensava nisso, eu sentia até um pouco de pena deles... sabe? Eu me deitava na minha cama, pensando em todos os beijos escondidos pela escola, e toda a adrenalina que só um adolescente consegue sentir passando pelo corpo... e desejava de todo o meu coração não acabar do mesmo jeito que eles.
Vida morna, casa lotada de empregados, casamento cheio de amor mas sem grandes emoções, dois filhos e um cachorro do lado de fora.
Doce ilusão... de casal pacato eles não tinham nada, nem agora nem antes. E viveram uma vida toda dentro de um dia apenas.
E eu era a garota tapada, claro, estava na minha vista e na vista do meu irmão o tempo todo!
Nos jantares, nas visitas do meus tios avôs, nos olhares que eles trocavam sempre que eu perguntava algo sobre uma cena do livro da mamãe, e o ar gelado que percorria pelos corredores do castelo quando o meu pai estava aparentemente preocupado com alguma coisa.
Na minha cabeça, a preocupação que ficava no ar era algo sobre a contabilidade, sei lá, poderíamos até estar falindo... mas drogas? armas? tráfico internacional?
Nossa senhora que p***a é essa!
Minha mãe escondia a série de livros dela de mim e do Lucca como se fosse um cadáver enterrado no quintal, ficava desconfortável quando Lucca dizia que ela tinha uma imaginação muito fértil, e que a mãe de alguma namoradinha havia lido e queria a p***a de um autógrafo.
O meu pai a olhava com uma expressão esquisita, como se avisasse para ela que algo ia dar errado em algum momento.
Mas ela apenas sorria, pegava o livro assinava e entregava na mão dele, afastando de perto dela qualquer possibilidade, pelo menos naquele momento, de ser descoberta.
Como se o pano fino que colocaram em cima de toda a sujeira fosse esconder para sempre o que aconteceu no passado deles.
Juro que Laura Grecco fazia parecer que aquilo era só um bando de besteira para entreter algumas donas de casa desesperadas por emoção. E nem por um segundo, eu imaginei que isso fosse sobre ela. Sobre o meu pai. Sobre todos nós.
Nunca imaginei que aquela série de livros era mais do que tudo a droga de um desabafo, ela queria expressar todo o horror que ela viveu, e sendo uma jornalista de formação, como o meu pai fazia questão de dizer sempre, ela se expressou através de um livro de romance.
Romanceou a sua própria desgraça, e vendeu muito com isso.
A verdade é que todos nós gostamos de uma boa narrativa sangrenta.
Será que a minha mãe matou mesmo a minha avó?
Será que ela foi torturada como no livro pelo meu tio que se matou no provador? Espera, o tio Nico existiu? Ele se chamou Nico mesmo, ou ela só mudou o nome para o livro? Meu pai teve irmãos?
Será que o meu pai tirou a vida de um homem a sangue frio?
A minha "sogra" era a mulher chamada de Mel apenas no livro?
As coincidências me faziam pirar, e eu já não conseguia diferenciar a fantasia da p***a da realidade!
O que era real? o que não era? Do que eu deveria desconfiar afinal?
Eu fui criada para viver enclausurada nas mentiras que meus pai contaram na tentativa de me proteger.
Me lembro de estar deitada na minha cama, com o meu pijama de estrelas esperando pelo meu pai, as histórias dele sempre eram as melhores, cheias de detalhes, e faziam o meu coração bater forte.
Não eram histórias de princesas, era história sobre uma mulher muito forte e cheia de si, que enfrentava todo o tipo de perigo em prol da justiça, claro que os detalhes eram exagerado, mas só agora eu me toquei que o tempo todo ele falava da minha mãe.
- E então, preparada Anaju? - disse o meu pai entrando no quarto, ele estava sempre com um humor ótimo, porém nesse dia específico parecia perturbado demais para o meu gosto. No jantar, ele e minha mãe m*l se falaram, e eu não ousei perguntar o por que, vivem se amando pelos cantos então não seria nada assim tão sério, só algo rotineiro. Quando duas pessoas se amam demais correm o risco de brigar de vez em quanto. Pelo menos eu me convenci disso.
- Preparada pai! Você vai continuar falando sobre a moça de ontem? - Eu disse animada e ansiosa.
- Não, hoje o pai está aqui para te contar uma história real... e é sobre você... está preparada? - disse ele cabisbaixo.
- Ai pai, se o senhor está chateado por que eu quebrei o vaso da mamãe, não foi por querer! Eu só escondi por que ela ia me colocar de castigo... - eu confidenciei, e vi o olhar dele se iluminar um pouco, o que era muito estranho já que eu admiti algo que era quase um crime. Quebrar um vaso chinês de mil anos não era assim algo tão perdoável, pelo menos para a minha mãe.
- Não sei de vaso nenhum, inclusive não quero ser seu cumplice desse crime, a sua mãe vai te matar Anna Julia! E quando ela perguntar "Victor você está sabendo disso?" Ou "Você não sabe o que sua filha fez!" eu quero bancar o inocente e dizer "Nossa, eu realmente não sabia de nada" - Ele disse isso e deu uma risada, como se esquecesse por alguns poucos momentos o que ia dizer, e quando recuperou mau humor, ele se sentou na beira da minha cama e continuou - Vamos lá, eu tenho deixado essa história morrer por tempo demais, mas você já é uma mocinha... e temos que falar sobre isso!
O papo era sério, nunca ele tinha entrado no meu quarto tão tenso como ele estava naquele dia, as mãos pareciam suar, enquanto ele arrastava uma na outra.
- Pode falar papai, eu estou ouvindo! - Eu o encorajei a começar a falar
- Sabe, o dia que você nasceu... foi um dia tão maravilhoso, e eu estava tão cheio de amor e felicidade. Bom, eu e a mamãe já contamos essa história um milhão de vezes para você... Contamos como choveu, e como o arco-iris se formou. Mas existe algo que deixei passar, para você e para a mamãe... - Eu amava a história do dia que eu nasci, adorava a forma poética como o meu pai contava essa história, eu adorava o sorriso dele, e os olhos brilhando quando ele falava da minha mãe, e do quanto ela foi corajosa já que eu agarrei em uma das costelas dela para não sair, mas daquela vez, ele estava contando a história do meu nascimento com relutância... quase como um conto de terror... e ele sempre contava tão feliz... o que será que escapou as outras versões? O que ele deixou passar ao longo dos anos de tão terrível assim?
Me lembro de sentir um leve frio na espinha, nada que eu conseguisse interpretar com a pouca idade.
Mas o suficiente para eu não esquecer para sempre.
- Que eu sou a sua preferida? tudo bem pai, o Lucca é o preferido da mamãe! - Falei fazendo piada, o meu pai sorriu, mas ainda sim não completamente. Normalmente ele sorria um pouco mais para mim.
- Não me compromete com isso! - riu novamente - sabe filha, é difícil explicar... mas temos muitos inimigos, não só nós aqui, a nossa família inteira... - A família inteira, a família de Espanhóis gritões e malucos que andavam sempre armados por mais que não houvesse nenhuma ameaça, a família que nos presenteava com munição, mesmo quando o meu pai dizia que não queria isso para nós. Eu só achei que eram exaltados, muito turrões e estranhos.
- Eu sei pai, aquele de negócio de NÓS SOMOS OS GRECCO, eu já entendi... - cresci ouvindo algo assim, todas as vezes que estávamos juntos rolava essa frase ¡Somos los Grecco! em variações diferentes de muitos nadas! Eu não entendi o significado, só sabia que o meu sobrenome colocava respeito, eu não precisava abrir a boca, era só dizer o meu sobrenome que as pessoas pareciam tensas. Eu imaginei que era por que a família do meu pai era dona de metade da Espanha, então, quem não tinha tantas "posses" nos desprezava por acumular tanto capital. Claro que eu pensei nisso só com catorze, quando se tem nove anos só parecia que não gostavam de mim.
- Sim filha, tem a ver com isso, deixa o pai continuar... colecionamos uma considerável quantia de pessoas que não gostam muito de nós todos... então temos que ter cuidado e viver em alerta, para que nada de m*l aconteça. Você compreende? - Era sério, o meu pai não estava mesmo brincando, os olhos dele estavam até dilatados, por mais que ele contasse tudo com a maior calma do mundo, eu conseguia ver o quanto ele estava nervoso com a situação. O quanto doía ter que falar aquilo para mim, mas lembrando, só me atentei a isso quando esse momento especifico virou uma lembrança no meu cárcere.
- Entendo, não aceitar ajuda de estranhos ou balas, e mamãe falou sobre isso para mim! - Vivi uma vida trancada na minha jaulinha dourada, então eu já tinha recebido conselhos desse nipe antes, não era nada novo para mim
- Amor, vou direto ao assunto... já dei voltas demais... quando você nasceu... uma inimiga especificamente ameaçou fazer algum m*l para você, não sabemos o que é, mas mesmo assim eu preciso que você tenha sempre cuidado! Sabe, eu não contei nada disso a sua mãe, Deus sabe que ela acha que isso é brincadeira também, mas não é! Você acredita no pai?
- Claro que eu acredito pai! Se o senhor está falando, então é verdade! - Eu estava mentindo, mas a última coisa que eu queria era chatear o meu pai com uma bobeira dessas, como não acreditando no que ele diz.
Como eu disse, ele era para mim uma espécie de herói! Eu nunca ia contra ele... era mais ou menos como a mamãe e o Lucca.
- E quando ela vai fazer alguma coisa? - Perguntei de modo inocente, claro que eu não estava levando a sério, eu pensei que ele estava querendo me envolver nas narrativas que eu adorava! E não que alguém queria mesmo me matar.
- Aos quinze ou dezesseis, como a sua princesa favorita... - ele falou com um sorriso amargurado no rosto, o olhar estava perdido, e aquela foi a primeira vez, em toda a minha vida, que eu senti o meu pai com medo. Olhando para trás, eu vejo o quanto ele estava perdido na situação!
Querendo me proteger de uma ameaça, uma ameaça que ele nem sabia se ia se cumprir, ou como iria se cumprir.
Isso não parece extremamente apavorante para vocês?
- Ah meu Deus, como a Aurora? Pai... então eu sou como uma princesa? - eu falei animada de novo, eu culpo a Disney por isso! Me fazendo acreditar na droga das princesas, e na porcaria do amor eterno! Se eu pegasse o cara que inventou que princesas vivem felizes para sempre eu o socaria até a morte, só por ter feito milhares de mulheres caírem nessa pataquada!
Isso deveria ser crime! Ser comparada a Aurora, para uma menina de nove anos, representa toda uma idealização de amor, aventura, aceitação e beleza... nada parecido com o que eu viveria a seguir.
- Sim Anaju, você é uma princesa! Então, princesas precisam de uma proteção redobrada contra o m*l, você não acha?
-Sim pai, eu acho sim...
- Então, eu vou redobrar a sua segurança, e você vai obedecer e ter cuidado, não é? Você não pode se afastar deles, não pode ir para a casa dos outros sem falar comigo ou com a mamãe, isso é muito importante Anaju! Você vai ser boazinha?
- Claro que eu vou! Eu prometo! - Eu nunca, jamais, negaria alguma coisa ao meu pai. Eu o amava mais do que a qualquer pessoa no mundo, era como um super herói!
- Essa é a minha menina... agora vai dormir, amanhã você tem aula!
O meu pai beijou o topo da minha cabeça, me cobriu e logo saiu do quarto.
Eu me virei e simplesmente dormi, eu não dei atenção ao que ele falou... fiz uma promessa, mas na minha mente infantil, eu cumpriria apenas para não magoar o meu pai, e não por que eu corria risco de morte.
Não me atentei aquele momento, se eu tivesse a maturidade de hoje teria entendido perfeitamente o recado do Sr. Victor Grecco, teria sabido que a minha vida corria mesmo risco em muitos graus diferentes, teria entendido que nada daquilo era ficção ou coisa da cabela dele.
Teria me resguardado mais, teria aprendido pegar em uma arma, eu teria tido mais fibra, não teria me sujeitado...
EU NÃO TERIA FUGIDO.
Como vocês viveriam em um mundo onde tudo o que sua mãe contou em um livro realmente existiu? Como vocês se comportariam ao saber que o seu amado pai, é na verdade o dono de um cartel de drogas? Que toda a sua família é dona de um monopólio de crimes? Qual seria a sua reação se a sua bolha estourasse bem na sua cara?
Eu entrei nessa, e o julgamento de vocês é totalmente aceitável...Sei que fui extremamente i*****l quando eu saí de casa naquele dia, sei que o meu pai nunca iria me perdoar por uma merda tão grande. Ele me avisou!
Depois do dia do quarto, eu ouvi essa história todo ano no dia doze de setembro, e mesmo assim, levei ela para frente como um mito! Não era algo a ser temido, era só... uma história! Como as da minha mãe, algo para a imaginação trabalhar
Eu acordei em um belo dia de sol, tomei café com minha família e logo me vi dentro de um carro blindado a caminho da escola.
Só a elite, pessoas tão tenebrosas de caráter que fariam o mais sacada dos vilões ficar morrendo de vergonha!
Acho que nunca me enquadrei, nunca disse um oi para alguém além do meu círculo de duas amigas.
Mas naquele dia, nesse dia lindo de sol... um garoto alto, moreno de cabelos pretos e olhos mais pretos ainda foi se aproximando de mim. Com certeza para pedir alguma informação, garotos não se aproximam assim facilmente.
- E aí linda - ele disse sem timidez nenhuma
Enquanto eu quase me encolhia dentro da roupa, se eu fosse a p***a de uma tartaruga eu teria me saído melhor com certeza.
- O..Oi - eu disse engasgando
- Sabe, nós fazemos a aula de cálculo juntos não é? sei lá, estava pensando... se você quiser... sei lá algum dia aí... você podia ir lá em casa, podíamos estudar juntos... que tal? - um convite um coração pulando do peito. Como era estranho pensar que uma simples frase mequetrefe dessas me fez tremer, por isso eu digo, não existe uma fase mais burra e insuportável quanto a adolescência.
- Claro, podemos marcar sim...
- Eu não me apresentei, eu sou o Martin... Martin Buenovides... - Agora ele tinha um nome, MARTIN, eu me apaixonei no momento que eu ouvi o nome dele, eu não sei por que, mas o olhar dele me chamava para ele, como um imã!
- Ah desculpa, eu sou...
- Anna Júlia, Anna Júlia Grecco... eu sei quem você é, todo mundo sabe quem você é... dispensa apresentações - O sorriso de Martin era tão lindo que me derretia toda. Eram os malditos hormônio dentro do meu corpo, aqueles que nos fazem confundir sempre o cara errado com um cara legal.
- Bom, então... já sabe o meu nome... a gente se vê por aí!
Eu disse sem graça, me afastando devagar enquanto ele permanecia olhando para mim.
Eu não sabia muito bem o que significava o meu sobrenome, eu não sabia o peso que ele tinha, nem o que ele representava para as pessoas a minha volta.
Para mim, éramos comuns.
Família normal, só que podre de rica. Nada muito anormal.
Meu pai um bem sucedido CEO minha mãe uma escritora premiada e o meu irmão... bem o Lucca... ele era bem humorado e puxou a beleza do papai.
O que havia no meu sobrenome que fazia as pessoas tremerem na base? Naquele momento específico eu não sabia, e não é que eu seja burra, é que o meu pai e minha mãe eram espertos nas mentiras que contavam.
Eu só fui entender o peso do meu sobrenome quando a idade avançou e tudo o que eu tinha era uma cela, água e pão.
E então, eu passei de princesa de um castelo para uma prisioneira na p**a que o pariu.
E como fui disso para isso?
Sendo burra pra c*****o!
Mas espero que vocês acompanhem a minha história de horror, misturada com amor.
Afinal de contas,
COMO VIVEM OS HERDEIROS DE CRIMINOSOS INTERNACIONAIS?