Minha vida na outra vida

14 - Usar os olhos

No dia seguinte, eu me sentia melhor. Mas ainda não queria voltar para a floresta e ver os estragos que aquele homem deixou na vida da menina.

Conceição então, me pediu para tomar meu café primeiro que depois ela me levaria para dar um passeio.

Eu fiz a minha refeição matinal sem pressa dessa vez. Não sei bem se era porque eu estava com medo ou porque eu não queria mesmo ir com ela.

Mas, enfim, uma hora eu tinha de terminar de comer e me levantar. Então eu fui seguindo Conceição por uma trilha.

Conceição ia o caminho todo sorrindo e cantando. Ela parecia estar sempre feliz e bem. Uma felicidade que eu ainda não entendia.

Mas enquanto eu assistia a essa felicidade de Conceição, pude perceber que o barulho da água do riacho estava cada vez mais alto e mais perto.

_ Está me levando para o riacho?

_ Estou levando você para a água. A água nos ensina lições preciosas que, se estivermos atentos e dispostos a aprender, se tornaram aprendizados importantes para seguirmos nossas vidas.

Dito isso, ela voltou a cantar. Parecia que estava me adiantando que iria dizer isso e somente isso. Então eu a deixei com a sua música e continuei caminhando.

Não demorou mais que alguns minutos para encontrarmos o riacho. Um lindo riacho de águas correntes e cristalinas, serpenteando pelo meio da floresta.

Ele não era largo feito um rio. Era um simples riacho mesmo. Porém de águas velozes e muito limpas.

Conceição continuou andando pela beira do riacho até chegar a uma espécie de praia. Só que, ao invés de areia, eram pedrinhas.

Um lago enorme e de águas escuras estava à nossa frente. As águas do lago eram tão escuras que refletiam apenas as árvores em volta em meio a todo o preto das águas.

Era bonito, mas assustador se for entrar ali.

_ Olhe para tudo isso! - Conceição me disse. - É a mesma água.

_ Como pode a água do riacho ser tão limpa e transparente e a do lago em que ela desemboca ser tão escura?

_ Pelo seu interior! Assim também o é com as pessoas.

_ Eu não entendi!

_ Ontem você estava julgando o homem que estuprou a menina. Você viu a maldade que ele cometeu e julgou de maneira séria e severa. Pois olhe para o riacho e depois para o lago!

Assim eu fiz. O riacho continuava límpido e de águas bravas, correndo sem freio até o lago. Um lago de águas escuras.

_ Imagine que o riacho é apenas a casca exterior de todas as pessoas. E o lago, o interior de seus corações. Suas almas.

_ Agora eu entendo. O riacho é aquilo que as pessoas nos deixam ver sobre elas. Já o lago é o que elas são de verdade.

_ Isso mesmo. Agora imagine o homem do sonho.

_ Não tem como. Aquele é só escuridão.

_ Será que é mesmo? Pense Rafaela! Quantas vezes você liga a sua TV no noticiário e vê um homem que estuprou várias mulheres? Ou talvez um homem que matou sua esposa e filha e depois tirou a própria vida?

_ Várias vezes! Mas o que tem isso a ver com as águas do riacho e do lago? Esses homens são escuros como o lago e só!

_ Será que são mesmo?

_ São sim! Quase sempre, nas notícias, mostra que o tal homem era violento ou tinha comportamento estranho e que a vítima era uma pessoa boa.

_ Ok. Aí está novamente a juíza! Deixe de lado o preconceito estabelecido pela TV. Pense! Você conheceu o tal homem que matou sua família? E a família?

_ Não!

_ Você sabe o que levou esse homem a cometer tal ato?

_ Não!

_ Então, veja bem! Eu explico pra você. O que ouve na TV é o riacho, aquilo que deixaram a mostra. Mas o interior do lago, somente o marido assassino e sua esposa é que conhece. Quantas vezes essa boa esposa não deve ter envenenado seu marido com palavras ásperas e duras? Sim, porque o maior e mais letal veneno que existe são as palavras.

_ Mas no noticiário diz que ela era uma boa esposa?

_ Sim. Os vizinhos disseram! Mas quantos assassinos em série eram péssimos vizinhos, amigos horríveis ou filhos terríveis? Nenhum. Todos nutrem uma casca boa que funciona como o riacho. Porém o que está por dentro é podre e perverso.

_ Então o pai na verdade era um bom homem e a mulher não era?

_ Sim e não! Se ele fosse verdadeiramente bom não faria o que fez. Mas a mulher o empurrou para dentro desse lago n***o que já existia dentro dele. Por diversas vezes ela o envenenou com suas palavras ásperas e duras. Pobre homem e pobre mulher, que em nada confiaram dos planos de Deus!

_ Ok. Mas o que isso tem a ver com aquele homem do sonho?

_ Tudo! Olhe no lago.

A figura do homem apareceu. Trabalhando no campo, cortando lenha e plantando. Era forte e tinha boas mãos para plantar.

Mas, era apenas por fora. Ele possuía uma energia escura e densa envolta de si, como uma nuvem de fumaça n***a.

_ Viu só! Ele possuía uma casca boa, mas o seu interior não era.

_ Então o que eu preciso saber é que as pessoas não são aquilo que parecem? Isso todos sabemos.

_ Não! Você só está usando a parte superficial dos olhos. Ou seja, está vendo somente o que quer ver. É preciso enxergar realmente. Quando você vê uma pessoa caminhar na rua, você está apenas olhando. Agora quando presta atenção em seu rosto que parece estar sofrendo por algo então você está enxergando.

_ Tô perdida!

Conceição deu uma sonora gargalhada. Depois continuou.

_ Vamos simplificar. Quando ver alguém cometer um erro entenda que esse erro é dela e não seu. Mesmo que seja contra você! A imperfeição, a escuridão, tem que ser só dela e não sua. Não pegue isso como uma ofensa particular e envenene sua alma. Use seus olhos para ver que essa pobre alma, está perdida e precisando de ajuda. Ela precisa de amor. E a deixe com seus erros.

_ Sim, eu entendi que não devo julgar o outro só porque ele erra de maneira diferente de mim. Ou porque seus pecados são diferentes dos meus.

_ É isso. Não julgue o pai pois não sabe a real história.

_ Ou a minha sogra por não gostar de mim, eu não sei o real motivo dela ser assim!

_ Isso mesmo! E isso também vale para seus pais. O que eles escondem no lago n***o de seu interior é problema deles e não devemos guardar o m*l ou a maldade só porque não queríamos que o outro agisse assim. Não temos que projetar no outro o nosso jeito de ver o que está certo ou não. O nosso jeito de agir.