André desceu tarde para o café da manhã no dia seguinte, pois estava traumatizado com a insistência de Dona Dalva em relação ao "maravilhoso" café que fazia. Para evitar a ingestão de tão amargosa bebida, André decidiu descer só quando já tivessem retirado a mesa do café da manhã.
A mesa ficava posta na sala de jantar até às nove e meia e exatamente as dez horas e quinze minutos, André desceu as escadas devagar, tentando chegar à cozinha sem que ninguém percebesse.
Respirou aliviado ao encontrá-la vazia. Tirou da geladeira um jarro de suco de laranja e uma lata de biscoitos amanteigados do armário, junto com um pote de doce de leite.
Sentou-se de frente para os tesouros escolhidos, se sentindo como um garoto travesso.
— Tio, me dá um biscoito?
André olhou na direção da voz e viu uma linda garotinha loira, com enormes olhos azuis parada com a mão estendida. Ficou surpreso com a presença da menina e mecanicamente pegou a lata de biscoitos e estendeu para ela.
— Que tal um copo de leite para acompanhar?
— Não quero leite, não, tio, só biscoito. — Respondeu a menina com a boca cheia.
André abriu a boca para perguntar o nome da menina, mas na hora que ia falar, foi interrompido pela entrada de uma mulher de longos cabelos negros e olhos azuis, como duas bolas de gude, extremamente bonita.
—Bia, minha filha, porque saiu do quarto assim? Eu já não cansei de te dizer pra não sair de perto da mamãe?— Olhou para André como se só então percebesse a presença dele. — Desculpe minha filha, moço, ela estava te incomodando?
— Não se preocupe, sua filha não me incomoda em nada, é uma menina muito simpática!
— Obrigada! Veja só a danadinha comendo biscoitos, estragando o apetite para o almoço!
— Não culpe a criança, a culpa é toda minha, como estou tomando meu café da manhã, ofereci uns biscoitos a ela. — André deu uma piscadela de cumplicidade pra menina, que sorriu agradecida.
— O nome dela é Beatriz, mas nós a chamamos de Bia, e eu me chamo Ana, prazer em conhecê-lo! – Estendeu a mão e André apertou em um cumprimento amigável.
— Pode me chamar de André.
— Pela maneira que puxa o "x" quando fala, adivinho que é carioca?
—Sou sim. – Respondeu André exibindo um sorriso simpático.
Naquele momento um homem alto, moreno, de cavanhaque e usando um boné entrou na cozinha e se dirigiu a Ana:
— Querida, vamos logo arrumar as coisas no quarto?
— Já estou indo, querido! — Ana se levantou para seguir o marido, mas antes se virou para se despedir. — Até mais tarde, André!
André sorriu mais uma vez, e seu sorriso se tornou uma risadinha divertida ao ouvir a menina dizer para a mãe: "Posso mostrar meu ursinho pro tio André, mamãe?". Ao que a mãe respondeu que "sim, mas só depois do almoço" com a voz clara e macia.
Voz que lhe pareceu muito familiar...
De repente André franziu as sobrancelhas. Os olhos exibiam um brilho muito peculiar quando ele disse de si para si:
"Então seu nome é 'Ana', né"? E sorriu.
Quando André saiu da cozinha em direção à varanda, viu o caseiro carregando uma enorme e pesada caixa. Sempre solícito, correu em seu auxílio e se ofereceu para carregá-la.
O idoso aceitou agradecido. Largou a caixa no chão, esbaforido, tirou do bolso um lenço vermelho e enxugou o suor da testa.
— O que tem de tão pesado nessa caixa, José?— Perguntou André ao sentir o peso da caixa nos ombros.
— São as latas de leite em ** da filha dos hóspedes novos. Parece que não querem dar leite de nossas vacas para a menina. — José balançou a cabeça em desagrado. — Hoje em dia estragam as crianças com essas porcarias de supermercados. Um bom leite puro, tirado na hora, é o que as crianças precisam e não essas porcarias enlatadas cheias e veneno! Você, sempre que vinha de férias, ia comigo tirar leite, bebia ali mesmo na caneca de metal. Chegava a ficar com um bigodinho branco, e olha como cresceu bem e forte!
André pôs a caixa sobre a mesa com um sorriso ao lembrar-se da infância. Tirar leite da vaca, montar em cavalos, comer frutas tiradas do pé, correr atrás das galinhas e correr dos galos brabos... eram coisas que o fascinavam quando menino. Sentiu-se contente ao ver que o velho "Zé" se lembrava dele.
Seus devaneios foram interrompidos pelo homem moreno de boné, que entrou apressado e parecia estar de muito mau humor.
Tirou a caixa contendo as latas de leite em ** da mesa, irritado
— Eu disse que o leite da minha filha era para ser levado para minha suíte! — Virou-se para André com tom de voz menos ranzinza. — Nossa filha tem intolerância à lactose, só bebe leite especial, que custa o olho da cara e não tenho a menor intenção de compartilhar. — Em seguida, se retirou.
José balançou a cabeça e disse mais uma vez que as pessoas da cidade estragavam as crianças. Alergias só aconteciam por causa dessas "coisas de supermercado".
José olhou para André e seu rosto enrugado mostrou um sorriso de animação. Parecia ter esquecido da tempestade de boné.
— O senhor gostaria de montar um dos cavalos novos? Não temos mais aqui todos aqueles cavalos de raça, mas adquirimos recentemente dois mestiços muito bons.
— Excelente ideia, José! Faz tempo que não monto! Mas só vou se você parar de me chamar de senhor.
— Opa! Claro! Menino André, vamos logo, dá pra você dar uma boa volta pelo terreno antes do almoço.
André escolheu o cavalo que lhe parecia mais arisco e montou. Se sentia um menino mais uma vez, livre e sem preocupações com crimes, drogas, corrupção e morte... Depois de acenar satisfeito para José, saiu à galope com a intenção de visitar todos os lugares que costumava ir quando menino.
Ele ainda montava muito bem, mesmo depois de tanto tempo sem sair da cidade grande.
Com o coração leve, André passeou pelos campos, passou pela cachoeira que, com olhos de adulto, parecia bem menor do que em sua lembrança, mas continuava linda. Parou ao chegar no pomar dentro do terreno, onde amarrou o cavalo á uma árvore, dando bastante corda para que o animal caminhasse e aproveitasse a grama verde e fresca.
Depois de olhar em volta, satisfeito, sentou sob a sombra de uma jabuticabeira, com a mão cheia da n***a frutinha. Graúda, doce, suculenta, como são as frutas quando colhidas direto da árvore e não compradas.
Como pequenos detalhes podem fazer tanta diferença... O ar puro, o verde ao redor, o som dos animais do sítio, diferentes cantos de pássaros... Uma paz com a natureza que uma cidade grande e movimentada como o Rio de Janeiro jamais poderia oferecer.
André fechou os olhos e deixou aquela tranquilidade invadir seu sono...
O almoço no Estrela Dalva era servido pontualmente às treze horas. André estava atento ao horário, visto que se sentia culpado pelo atraso no café da manhã. Ele sempre foi um homem pontual e nunca tolerou atrasos, apesar de ter se atrasado propositalmente naquele mesmo dia...
O que antes tinha sido um alívio, por evitar a ingestão da tétrica bebida amarga, pesava em sua consciência cavalheiresca... Por essa razão, achou melhor voltar para a sede e não se atrasar de novo.
Quando estava guardando o cavalo de volta no estábulo, ouviu passos atrás de si e, ao se virar, se deparou com Ana e a filha.
— Mamãe, posso ir ali ver as galinhas?
— Sim, filhinha, pode ir, mas não demore-
Ana não teve tempo para terminar de falar, pois Beatriz saiu correndo em direção ao galinheiro tão logo ouviu o sim.
Virou-se para André dizendo:
—Essas crianças... É incrível como tem tanta energia
— É verdade, estão sempre correndo de um lado para o outro. — Disse André fechando a porta do estábulo.
— Você monta bem, carioca! Vi quando vinha com o cavalo.
— Obrigada! A senhora é muito gentil. Eu cresci tendo cavalos por companhia...— Respondeu . – Também gosta de cavalos?
— Os acho muito bonitos, mas não sei montar. Nunca estive no interior antes, sou muito urbana, nem sei o que tem pra fazer por aqui...
Os dois caminhavam juntos na direção em que a menina correu. André se mostrou surpreendido com o comentário de Ana:
— A senhora não pode estar falando sério! Então nunca montou, nunca tomou banho de cachoeira ou pegou uma fruta no pé?
— Nunquinha!
— Pelo menos um quintal grande do subúrbio?
— Não mesmo, sempre morei em apartamentos.
— Quase sinto pena! Se quiser posso te mostrar o lugar, te levar para conhecer o pomar, comer umas jabuticabas...
— Eu não sei se devo...
— Vai se apaixonar, pode ter certeza! Depois de passar uns dias por aqui, vai querer sempre voltar.
— O lugar é muito bonito mesmo, parece tranquilo, faz a gente ter esperança... — Ana passou a mão pelo ombro e olhou para o céu. — Você veio sozinho ou veio com sua família?
— Não tenho família. — Respondeu André. — Meus pais morreram há alguns anos, e como não tenho irmãos....
— Sinto muito pelos seus pais.
— Obrigado, mas não precisa, já faz muito tempo. E Então, vai ficar só no conforto da sede, ou vai aceitar meu convite e conhecer a vida do campo comigo? — Perguntou André, mudando o rumo da conversa para um assunto mais agradável.
— Não sei por onde começar... — Respondeu Ana, então olhou para ele mostrando animação. — Quer dizer que por aqui tem uma cachoeira?
— Eu posso te levar depois do almoço se a senhora quiser, não é muito grande, mas é maravilhosa. — André hesitou se sentindo impertinente. — Sua família também, claro, ou posso indicar o caminho a seu marido se ele preferir.
— Meu marido está muito ocupado. Eu vim passar férias em família, mas ele está escrevendo uma peça, quase não vai ter tempo para sair do quarto. Seria muito divertido se você me mostrasse.
— Combinado, então, depois do almoço nós vamos!
Ana parecia muito contente com a perspectiva do passeio e teve um sobressalto ao ouvir a voz do marido.
— Ana! Aí está você! Estou te procurando há um tempão! O que você está fazendo aqui?
O marido segurou-a pelo braço enquanto falava, irritado.
— Trouxe Bia para ver as galinhas, ela adorou ver os bichos. — Ana olhou de relance na direção de André, constrangida pela maneira que o marido falava com ela na frente dele.
— Sabe que não te quero zanzando por aí! Vá buscar a menina e não demora, depois do almoço vou levá-las ao centro dessa cidade enfadonha, quero que prepare a bolsa dela!
Ana obedeceu em silêncio, enquanto André sutilmente seguiu o caminho da sede, constrangido com a cena que testemunhara.