LAIZ NARRANDO
Tive a impressão de que a Ana Paula não gostou muito da minha presença, depois que o rapaz foi embora ela mudou completamente. Virou outra pessoa, pedi o celular dela para ligar para o Álvaro. Mas ela ficou dando desculpa, falando que estava sem bateria. Tenho que ir embora desse lugar o quanto antes.
— Laiz, por que você fez isso? Tu sabe que agora o cascavel vai te procurar até no inferno. O que tu arrumou? Sem problema para o IC — ela falou como se estivesse com raiva porque eu consegui fugir.
— Eu não quero arrumar problema para ninguém, eu fugi porque só eu sei o que eu passei naquele inferno — falei já sentindo um nó na garganta.
Ela se desculpou, me emprestou uma roupa. Tomei banho e me deitei no sofá mesmo. Passei o dia trancada dentro do barraco. Ana Paula passa o dia aí a noite na rua. Às vezes tenho a impressão de que ela faz programa. Quero tanto de vezes que volta tomar banho se arruma e sai. Não tenho nada contra, mas não foi bem isso que ela falou ao Álvaro.
Primeiro passou um rapaz magro bem na frente da porta. Como eu deixei a janelinha aberta para poder entrar um pouco de vento, vi que ele passou várias vezes. Então decidi fechar a janela. Mas ele ficou olhando através do vidro e eu fiquei morrendo de medo, me escondi no banheiro.
Já estava escuro quando fui olhar no portão para ver se tem algum orelhão. Preciso ligar para alguém, nem que seja a cobrar. Quando um homem colocou o farol da moto em cima de mim, me deixando cega, ele passou bem devagar. Nossos olhares se encontraram, me arrepiei inteira, um verdadeiro gato, mas desses cintura ignorante estou correndo.
Nossa hoje eu dormi com fome, não tinha nada para comer e a Ana não voltou pra casa. Fiz minha rotina matinal e tomei um copo de água, para ver se matava mais a fome.
Quando alguém bateu na porta com tanta força que meu coração acelerou, quando abri a janela era o homem que vi ontem à noite. Ele analisou todo o meu rosto e focou na minha boca, depois nos meus olhos.
Fiquei paralisada encarando ele pela janelinha da porta, até que ele abriu a boca e tem uma voz grossa, meu Deus me arrepiei inteira só de ouvir a voz dele enquanto olhava em seus olhos escuros.
— Abre a porta — ele falou como se estivesse dando ordem.
— Sinto muito, mas a dona da casa não está. Eu sou apenas visita, não sei quem posso ou não receber — ele me encarou e soltou uma risada rouca, parecendo um pitbull latindo.
— Vou te dar duas opções, cacheada: ou tu abre a porta, ou eu vou arrombar e entro do mesmo jeito — o que tem de lindo tem de grosso, e ainda fica me botando apelido.
Abri a porta e ele entrou junto com o rapaz que veio ontem passando na frente várias vezes e uma moça.
— Quero saber o que tu tá fazendo aqui na minha quebrada. Não quero problema com teu marido, então acho melhor tu meter o pé — ele falou bem sério, me encarando, e o desespero tomou conta de mim.
— Não, por favor, não me expulsa daqui. Eu não tenho para onde ir, ainda não consegui contato com a minha família. Cascavel não é meu marido — comecei a tremer e a chorar. Só de pensar que ele pode me devolver para aquele monstro me bateu um desespero.
A moça pediu para que eu ficasse calma. Ela entrou na cozinha e me deu um copo de água. Comecei a puxar a respiração tentando me acalmar quando ele falou novamente de uma forma bem grossa:
— Dá o papo do que tu tá fazendo aqui, quem te mandou e por que esse medo todo do Cascavel? — ele falou e me mandou olhar em seus olhos.
Enxuguei minhas lágrimas e levantei a cabeça, encarando aquele homem lindo, mas que está me dando medo.
Comecei a falar para ele tudo o que aconteceu. Foi quando o homem virou uma verdadeira fera, começou a xingar e falou que a Ana Paula vai levar um corretivo. Senti um nó na garganta, pedi a ele que não fizesse nada com ela. Fui eu que pedi ajuda.
— Não tô falando disso, garota. Tô falando que ela foi na quebrada rival, isso não pode, sacou? Se tu é da CV, não se mistura com TCP — não entendi muito do que ele tava falando, mas concordei com a cabeça. Eu que não vou contrariar.
— Eu não sei o seu nome nem quem você é, mas eu só quero te fazer um pedido: por favor, não me manda de volta para aquele lugar — falei, começando a chorar.
— Fica tranquila, cacheada. Tu agora tá sob a minha proteção. Ninguém vai mexer com você aqui. Aliás, no barraco onde eu vou te botar é o mais seguro do complexo — ele falou e olhou para a moça, que concordou com a cabeça.
Agradeci, mas ele é muito educado e não respondeu. Virou as costas e foi embora. Outro rapaz foi com ele, e eu fiquei sozinha com a moça que se apresentou com o nome de Thaise. Falei para ela que estava com muita fome e estou sem comer desde que cheguei.
— Vamos para o meu barraco. Lá tem comida, e as minhas roupas servem em você. A gente vai te proteger — ela falou, e eu agradeci.
Pedi o telefone da Taíse para ligar para o Álvaro, mas não consegui falar com ele. Quero muito saber o que está acontecendo com a minha família. Acho que meus pais já cansaram de me procurar.
Tomei banho, comi, conversei com a Taíse e perguntei quem era o homem que foi falar comigo. Ela disse que é o Chefe do tráfico aqui do Alemão.
— O vulgo dele é IC. É só você ficar quietinha, fica na sua que não vai ter problema nenhum com ele. Vou te dar o papo, Laiz. IC é a única pessoa que pode te proteger nesse momento. O primo dele é o chefe do Comando Vermelho. Estando na proteção dele, tá com Deus — ela falou, e eu concordei.
Thaise me explicou como funcionam algumas coisas aqui na comunidade. Foi quando entendi que a Ana Paula vacilou em ir no morro do Cascavel, e o pior é que ela sabia que isso podia acontecer.
— Todo mundo da quebrada sabe que o Cascavel faz isso. Você não é a primeira mulher que ele prende. Até onde eu sei, é a primeira que conseguiu fugir, porque nenhuma das outras ficou viva para contar história — Thaise falou, e eu me arrepiei inteira.
Pelo menos agora sei que estou protegida de verdade.