Capítulo 3

3136 Words
A semana passou voando. Cristina, minha preceptora, era ótima. Tudo que eu pude tirar da experiência dela durante essa semana eu tirei. Estava orgulhosa de mim! Tinha aprendido a mexer no sistema do hospital, onde ficava todo o prontuário eletrônico dos pacientes. Aprendi todos os processos e protocolos da emergência, como por exemplo os protocolos de dor torácica, sepse e acidente vascular cerebral. Adeline me comunicou no meu último dia de treinamento que eu seria a replicadora de pequenos treinamentos e mudanças a minha equipe. Aquilo só me deixou ainda mais nervosa, mas eu também não esperava que ela fosse pegar leve comigo, não é? Ainda mais me colocando como coordenadora de um setor tão grande no meu primeiro emprego. Minha função eras mais burocrática, o que significava uma infinidade de papéis, protocolos, indicadores e escalas mensais. O que não me impedia de ajudar a equipe na assistência caso precisassem. A emergência do John Hopkins é o que chamamos de “portas abertas”. O que significava que todo e qualquer paciente podia entrar pelo hospital através da emergência e não só por encaminhamento médico ou transferência externa de outro hospital, ou seja, a emergência era uma loucura e vivia lotada. Meu setor é a referência de trauma do estado, então todos os grandes acidentados vinham pra cá. Durante minha semana de treinamento, Cristina me deixou trabalhar com alguns pacientes da emergência. O que resultou em algumas sondas de alívio, duas sondagens nasoenteral e algumas suturas de cortes superficiais. Puncionei muitas veias também, o que eu achei ótimo, porque na faculdade sempre tive medo e praticar sempre nos levava a perfeição. - Pronta para o seu primeiro dia de trabalho? – a voz da Alice entrou primeiro do que ela na cozinha. - Nunca estive tão pronta. – gritei animada. Hoje era segunda-feira. Meu primeiro plantão como enfermeira coordenadora e plantonista da emergência do Hospital John Hopkins. Que orgulho do c*****o eu estava de mim! Para completar, eu estava no mesmo plantão que Alice. O que me dava uma referência nos casos de surto e desespero, além de uma boa companhia pro almoço também. - Nem acredito que vou ter carona todos os dias. – ela entrou na cozinha rindo e jogou sua bolsa em cima do banco alto do balcão. – Bom dia, Joana. É tinha isso também. Agora eu era a carona oficial da Alice. - Bom dia, menina Alice. – Joana a respondeu servindo café pra ela em uma xícara. - Obrigada, Joana. – Alice agradeceu o café e parou ao meu lado. – Não que eu esteja pensando só na carona, você sabe... Vai ser ótimo estar com você todos os dias. - Sei, interesseira. – eu ri. Alice me cutucou com o cotovelo e terminamos de tomar café. Meu celular vibrou em cima da minha bolsa e quando o peguei vi que era uma mensagem do Charlie. “Bom primeiro dia de trabalho. Não faça nenhuma besteira. Te amo, seu pai”. Eu sorri para a tela do celular e o deixei onde estava. Charlie não era muito de demostrar seus sentimentos, mas eu até estava gostando dele estar perdendo a casca grossa. Será que ele estava apaixonado? Talvez alguma mulher o estivesse mudando. Esse pensamento fez meu peito apertar e eu me senti a pior egoísta do mundo. Já fazia tanto tempo que a mamãe não estava mais aqui, nesses 18 anos ele nunca tinha me apresentado ninguém. Charlie tinha o direito de ser feliz e se isso significasse ele se casar de novo eu não seria aquela filha escrota que implica com a madrasta. De jeito nenhum. - Joana... – a chamei. Ela largou a louça na pia e se virou pra mim. – Você acha que o Charlie tem alguém? - Como assim, menina? – Joana perguntou confusa. Estávamos sozinhas na cozinha. Alice tinha saído pra terminar de se arrumar e calçar suas botas. - Uma mulher... você acha que Charlie pode ter alguém? – perguntei curiosa. – Acha que ele pode estar apaixonado? Joana riu enquanto secava suas mãos em um pano pendurado em seu ombro. - Porque isso agora, menina? - Não sei, ele está estranho. Está amolecendo... me trouxe aqui sem reclamar no dia da mudança. Vive dizendo que me ama... olha isso aqui. Peguei o celular e mostrei a mensagem a ela. - O Sr. Collins te ama, menina. – ela disse me devolvendo o celular. – Do jeito dele, mas te ama. Ela me deu um sorriso tão terno que aqueceu meu coração. Bom, talvez Charlie resolveu mudar sua forma de me amar. Eu até estava gostando disso. - Vamos, Sam! – Alice me gritou da sala. – Faltam vinte para as sete! Eu pulei do banco, peguei minha bolsa e meu sobretudo e dei um abraço na Joana. - Te vejo às sete, Jo. – dei um beijo em seus cabelos. - Que Deus te acompanhe, menina. – ela disse emocionada. – Que seja um ótimo dia pra você. Eu ainda a beijei mais uma vez e desci com a Alice em direção a garagem do prédio. O trajeto até o hospital foi rápido, mas foi o suficiente pra Alice tagarelar o tempo todo sobre o seu crush do hospital, o Jean, e que iríamos – pelo visto eu não tinha direito de escolha – ao The Owl quando acabasse o plantão. Me despedi da minha amiga quando chegamos na entrada do hospital e ela me fez jurar – setecentas vezes – que eu a chamaria se precisasse de ajuda. Cristina já tinha me explicado como tudo funcionava. Então quando cheguei fui direto para a rouparia, peguei um pijama verde água com a recepcionista e fui pra sala de descanso dos funcionários da emergência. Tinha um armário para mim, de tamanho considerável e um jaleco com meu nome bordado nele lá dentro. Eles identificavam as especialidades pela cor do uniforme, assim pra nós que trabalhávamos lá era mais fácil identificar quem era quem. Para os pacientes todos os que estavam de pijama eram doutores, nem adiantava tentar explicar. A equipe técnica da enfermagem usava um pijama verde escuro e as enfermeiras um verde água. Como eu era a coordenadora, teria que usar um jaleco branco por cima. Os médicos usavam azul marinho, os residentes um azul claro também com jaleco por cima e os fisioterapeutas um pijama roxo uva. Não era tão difícil assim, com o tempo eu gravaria tudo. Tenho fé. Depois que vesti meu pijama, o jaleco e calcei um par de tênis de corrida confortável, ajeitei meu cabelo castanho escuro em um coque alto e firme. Me certifiquei mais três vezes se o coque estava bem firme, odiava me concentrar com cabelo caindo no meu rosto. Isso era um dos motivos do porquê eu nunca tive franja. Fechei meu armário com as minhas coisas dentro e me encaminhei ao meu posto de trabalho somente com meu celular em um dos bolsos do jaleco, no outro bolso minhas canetas – várias, de todas as cores possíveis do arco íris – e meu carimbo. Abby, Bryan, Nicolas e Carrie eram meus enfermeiros de plantão e assim que cheguei ao posto da enfermagem pedi que eles reunissem toda a equipe técnica. Iniciamos com uma pequena reunião. Eu conheci todos na semana passada, mas agora era pra valer. Eles eram, definitivamente, minha responsabilidade. Não que isso não me deixasse nervosa. Eu estava nervosa de verdade. Tipo, muito nervosa, mas não ia deixar que nada me intimidasse. Custei muito para chegar aqui... e se Adeline não me intimidou, nada mais conseguiria. Assim que todos estavam reunidos me apresentei formalmente. - Bom dia a todos. – eu comecei. Reconheci alguns rostos ali. Vi alguns torcerem os lábios pra mim, outros acenarem timidamente. Então continuei. – Muitos já me conhecem. Meu nome é Samantha Collins, mas podem me chamar de Sam. – sorri - Sou a nova coordenadora de vocês. Espero que possamos juntos construir um vínculo profissional forte e que nosso trabalho faça a diferença aqui no John Hopkins. – ouvi alguns murmúrios, mas continuei. – Peço desculpas de antemão se eu esquecer alguns nomes, me lembrem, por favor. Vocês são muitos, talvez eu demore um tempo pra gravar o nome de todos. – eu ri. – Alguém quer falar alguma coisa? Alguma pergunta? Vi as 14 pessoas a minha frente hesitarem, até um rapaz moreno e alto falar. - Estou com problemas pessoais com a equipe. – ele disse, parecia irritado e inquieto. – Quando vou poder trocar de plantão? Ops. Alguém disse que seria fácil? - Me desculpe... – pedi. – Como é seu nome? - Scott. – ele disse erguendo o rosto. - Bom, Scott, creio que se não podemos resolver o que quer que esteja acontecendo, posso verificar junto com a Adeline a possibilidade de trocar seu plantão. Me dá alguns dias, ok? – ele assentiu, parecia aliviado. É, eu também, Scott. Vamos nessa, garoto. - Mais alguém? – perguntei e ninguém se prontificou. – Gente, somos adultos aqui, vamos tentar resolver nossos problemas pessoais, tudo bem? – eles assentiram. – O que não conseguirem resolver entre si tragam até a mim. Certo? Novamente vi a hesitação entre eles. E percebi que a equipe estava dividida e talvez faltasse um entrosamento ali. Ok, podemos resolver isso. - Mais alguma questão? – perguntei de novo. – Nada? Ninguém? – alguns balançaram a cabeça. – Então, um bom plantão a todos. Alguns da equipe vieram me cumprimentar e desejar boas-vindas e eu fiquei algum tempo ali com eles. Era uma equipe jovem, a maioria na mesma faixa etária. A mais velha era Carrie que tinha 38 anos e eu me perguntava qual seria sua reação ao ser liderada por uma pirralha de 24 anos. Depois que todos dispersaram eu peguei minha pasta de protocolos e fui estudá-los, sentei-me em uma das cadeiras atrás do balcão do posto médico e comecei a analisá-los. - Sam! – uma voz me gritou. E por Deus? Porque a pessoa está gritando em um hospital!? Eu ergui meus olhos, estava meio irritada agora, e vi uma Abby ofegante vindo em minha direção. - O que houve? – perguntei me levantando. O que quer que seja deve ser importante a ponto dela estar gritando meu nome em pleno hospital. - Acidente com múltiplas vítimas chegando. Se prepare! – ela colocava um avental e jogou um pra mim em cima do balcão. – Engavetamento na ponte, parece que foi f**o. - Sério? Agora? – perguntei desesperada. Meu primeiro dia seria assim? Já? Olhei o relógio pregado em uma das paredes dali e vi que ainda eram nove e vinte da manhã. Caraca! O plantão m*l tinha começado? Eu só pedia a Deus pra me ajudar a lidar com aquela situação. Que ninguém morra no meu plantão! Jesus! – eu repetia como um mantra. A adrenalina começou a correr forte nas minhas veias. Meu coração batendo acelerado, minhas mãos começaram a suar e eu estava amando essa sensação. - Bem vinda ao John Hopkins, flor! – ela piscou e saiu. Tirei o jaleco, vestindo o avental descartável que ela me deu e peguei um par de luvas em cima do carro de parada. Segui Abby até a entrada e paramos na grande porta automática na entrada da emergência do hospital. Já estavam ali os dois médicos de plantão, Jeremy e Melissa. Duas ambulâncias pararam do lado de fora e logo os paramédicos corriam com a primeira maca na nossa direção. - Mulher jovem, sem identificação. – ele começou a nos passar o caso da paciente enquanto corríamos do lado na maca em direção ao trauma. – Mais ou menos 18 anos. Vítima de colisão em anteparo fixo. Saturação 84%. Frequência respiratória 32. Batimentos cardíacos 184. Nós corremos com a maca pra sala de trauma 1 e só quando posicionamos ela na sala eu vi que nem um médico nos seguiu até lá. - Cadê o médico? – perguntei a uma técnica. - Eu não sei. – ela disse nervosa. - Vá chamá-lo! – eu quase gritei. Coloquei uma máscara de oxigênio no rosto da garota pra ajudá-la a respirar melhor. Sua saturação estava muito baixa, o que significava que sem oxigênio suficiente seus órgãos vitais seriam privados e logo padeceriam. - Cadê a m***a do médico! – vociferei. - Já chamamos! – uma técnica me respondeu apreensiva. - Chame de novo! – gritei. – Pega um acesso venoso, rápido. A movimentação na sala de trauma era grande. Uma técnica puncionava um acesso venoso. Abby estava conectando os aparelhos da monitorização cardíaca e eu estava segurando a máscara de oxigênio na garota desfalecida na maca. O bip do monitor mudou o tom e aquilo me alarmou. Ela ia entrar em parada respiratória se não tivesse suporte ventilatório avançado e consequentemente uma parada cardíaca. Sua respiração estava acelerada demais e o coração batendo mais acelerado que o normal. Ela precisava ser intubada. Imediatamente. Eu não podia perder meu primeiro paciente, ainda mais sendo uma garota tão jovem. Uma vida inteira pra viver pela frente. Olhei pro monitor quando ele mudou o alarme e eu já sabia o que estava acontecendo. Oh meu Deus, por favor! - Ela está fibrilando! – Abby me alertou. Chequei o pulso dela em seu pescoço e não havia nada. Seu peito também não se movimentava, indicando ausência da respiração. Subi correndo numa escadinha que estava ao lado da maca e comecei a massagear o peito da garota. Me lembrando de contar em voz alta pra ajudar a quem ia ventilar ela com a máscara de oxigênio. - Abby, pega a máscara de oxigênio! 25, 26, 27... – apontei o aparelho que ajudaria a garota a respirar e continuei contando. Abby correu e conectou o aparelho ao oxigênio a tempo de ventilar a garota quando acabei as compressões no seu tórax. Mas eu sabia que aquilo não a ajudaria por muito mais tempo. Ela precisava de suporte avançado para respirar. Depois de 5 minutos de compressões torácicas, e 2 choques com desfibrilador no meio do ciclo, conseguimos reanimá-la. - Cadê a m***a do médico? – gritei mais uma vez. O monitor começou a alarmar e mostrar que a saturação da garota estava em 64% - considerando que o limite mínimo é 90%, ela estava morrendo. Eu parei pra pensar um segundo. Era tudo que eu tinha, um segundo. Eu não podia deixá-la morrer por falta de assistência e eu sabia o que fazer. Então mesmo que eu me desse muito m*l e que ficasse comprometida completamente, eu decidi tentar salvar a garota. - Me dá um tubo nº 7. – pedi a Abby ainda apertando o aparelho que passava oxigênio pra garota. Seus batimentos começaram a cair bruscamente. - Dê a ela 0,2ml de adrenalina. – ordenei a uma técnica que estava na sala de trauma. Todos ficaram paradas me olhando. - AGORA! – gritei. Eu sabia o que estavam pensando. Não podia fazer isso, o médico deveria fazer. - CADÊ O MÉDICO?! – esbravejei. - Sam, você não pode fazer isso! – Abby me alertou. – A lei... – a cortei. - f**a-se a lei, Abby. – gritei irritada – Eu não vou deixá-la morrer, ok? Cadê o médico? – perguntei mais uma vez. - Dr. Dylan foi chamado, mas... – eu não ouvi mais nada. Tinha que ter a p***a desse nome i****a! - Aperte aqui! – passei o aparelho pra ela sem tirar do rosto da garota e fui até a gaveta. Peguei o tubo e o aparelho necessário pra intubá-la. Me posicionei atrás da sua cabeça e abri gentilmente a sua boca. Coloquei o aparelho, visualizei a traqueia, as cordas vocais e coloquei o tubo. Conectei o respirador artificial nele e imediatamente a saturação dela subiu. 98%. Conseguimos! A técnica já tinha injetado adrenalina na veia da garota e seu coração agora também batia normal. - Peça pra levá-la a tomografia. Acho que ela está pneumotórax. – falei com Abby, minha voz carregada de angústia. - Samantha...- Abby começou, mas eu a cortei. - Apenas faça Abby, eu assumo a responsabilidade. – falei calmamente. Tirei minhas luvas e fui até a sala de descanso. Bom início eu tive. Provavelmente amanhã eu estaria desempregada e talvez até perdesse meu diploma e minha licença, já que eu não podia ter feito o que eu fiz na sala de emergência. Me joguei exausta no sofá e enterrei meu rosto entre as mãos. Fiquei ali uns bons minutos até a porta ser aberta. - Sam? – eu ouvi a voz da Alice, mas não me movi. - Estou ferrada. Eu sei! – falei derrotada. - Não, não está. – ela afagou meu ombro. – Você fez o que foi necessário. Ela está salva por sua causa. Alice sempre positiva. Sempre via luz em tudo. - Mas ela poderia ter morrido nas minhas mãos, Ali. – falei desesperada, finalmente me dando conta do que tinha acontecido. - Sam, isso pode acontecer todos os dias, com qualquer paciente. Já sabíamos disso quando entramos na faculdade. – ela disse calmamente. - Obrigada pela força. – a abracei. - Você terá que passar por um protocolo de rotina, mas Adeline pegará leve com você. Você está protegida por lei, ninguém pode te acusar. Eu sabia disso. Na lei da enfermagem eu não podia entubar ou comandar uma sala de emergência sozinha, mas existia uma única exceção, quando o médico não estivesse presente eu poderia intubar o paciente pra salvar sua vida. E foi o que eu fiz, na ausência do médico eu fiz o que deveria pra salvar aquela garota e ela estava viva. - Tenho que ir. Você está bem? – ela me perguntou e eu assenti com o rosto entre as mãos. – Qualquer coisa me chama, estarei na pediatria. – ela beijou minha bochecha e saiu. Me levantei e peguei uma caneca de café na cafeteira, voltando para o sofá em seguida. Eu precisava pensar no que dizer a Adeline. Precisava formular uma defesa decente, não só para o hospital, talvez até para a justiça. Charlie me mataria se eu fosse processada e talvez ficasse feliz, como o bom egoísta que ele é, se eu perdesse minha licença de enfermeira. A porta foi aberta e fechada com força fazendo com que eu me sobressaltasse com o susto. Eu me virei no sofá para ver quem tinha entrado na sala e me engasguei, cuspindo café para todos os lados ao perceber que o Dr. Dylan a quem Abby se referiu há alguns minutos era o pior pesadelo da minha vida. Meu inferno particular, que tinha nome e sobrenome. Dylan Olive Stewart. - x -
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