Prólogo

1990 Words
Eu morava com meu pai na grande Manhattan. A minha vida inteira eu morei ali. Nasci e cresci no apartamento que morávamos até hoje. Na verdade, eu nunca me imaginei morando em outro lugar se não Nova Iorque. Deve ser por isso que pensar em sair daqui me assustava tanto. Eu tinha acabado de me formar na NYU, realizei o grande sonho da minha mãe, que era meu também, ser enfermeira. Eu estava animada para começar minha profissão e me especializar. Eu queria ajudar o máximo de pessoas que eu pudesse. Queria cuidar de gente, tratar as crianças, fazer pesquisas e... Não me levem a m*l. Qual o recém-formado que não quer mudar o mundo? Charlie não estava muito feliz com a minha decisão de procurar emprego em outro estado. O grande e poderoso Charlie não gostava de perder o controle e a iminência de sua única filha ir morar em outro estado significava que ele estava perdendo o controle. Então, depois de muitas discussões, muita gritaria e alguns objetos quebrados em seu triplex, ele finalmente aceitou em me deixar concorrer a uma vaga no Hospital John Hopkins, em Baltimore, estado de Washington DC. Entendam, John Hopkins é uma escola, de profissionais e da vida. Ninguém entra lá e sai a mesma pessoa. É claro que ao aceitar com que eu mude de estado, Charlie colocou algumas imposições, o que significava um carro só meu e um apartamento de luxo próximo ao hospital. Eu queria recusar, mas não recusei. Precisava de uma ajuda inicial até pelo menos me manter com meu salário, passar pela experiência e finalmente ser efetivada. Sem contar que Charlie era muito rico, um apartamento de dois quartos não ia tirar nem 1% do seu patrimônio. Então o convenci a me dar apenas um carro popular e um apartamento simples. - Menina Samantha. – Joana me chamou entrando na sala de jantar. – O correio! Eu larguei o talher que segurava em meu prato e me levantei animada mudando meu olhar em sua direção. Joana era a funcionária mais antiga do meu pai e é como se fosse uma mãe para mim. Seu carinho foi o que sempre me segurou, desde a morte da minha mãe. Se não fosse a Joana não sei como teria sido conviver com a rispidez de Charlie durante todo os meus 22 anos. Ela me dava um sorriso fraternal enquanto se aproximava de mim e balançava no ar o envelope branco e simples em sua mão direita. - Agora não, Joana! – a voz de Charlie soou ríspida e o sorriso de Joana sumiu. – Não vê que estamos almoçando? - Me desculpe, senhor. – ela abaixou os olhos e se virou pra sair. - Joana! – a chamei já me levantando. Fui até ela e dei um beijo carinhoso em sua bochecha. – Obrigada! Eu peguei a carta da sua mão e ela sorriu para mim antes de se virar e entrar na cozinha. - Ela não tem culpa do seu m*l humor, Charlie. – o lembrei. Ele revirou os olhos irritado. - Você está proibida de abrir esse envelope a mesa. – ele colocou o guardanapo de pano ao lado do prato com um pouco mais de firmeza que o normal. - Tudo bem. – concordei pra evitar discussões. Eu não iria abrir ali mesmo, não com ele. Aquela carta me diria se eu passei no longo processo seletivo pra entrar no hospital e minha intenção era abrir ao lado de pessoas positivas e que fossem ficar feliz por mim, Charlie não era uma delas. Nós terminamos o almoço em silêncio e quando Charlie se despediu pra voltar pra empresa eu peguei minha carta, dei um pulo da cadeira e fui correndo pra cozinha. - Joana! – a gritei antes mesmo de entrar na cozinha. – Joana! Eu passei pela porta que separava a sala de jantar da cozinha e achei Joana pegando alguma coisa na geladeira. - Seu pai já foi? – ela perguntou com cautela. - Sim. – respondi me sentando no balcão da cozinha e deixando a carta ali. Ela largou a jarra de suco em cima da pia e veio até mim. - Ainda não abriu? – nós duas encarávamos a carta. - Não tenho coragem. – admiti olhando o envelope branco. Ela o pegou, eu dei um longo suspiro e a olhei. - Quer que eu abra? – ela perguntou. Eu apenas assenti. Fechei os olhos porque eu sabia que ela ia ler o conteúdo da carta e de alguma forma aquilo me assustava pra caceta. - Espera! – gritei abrindo os olhos. Joana me olhou confusa quando eu pulava do banco alto da cozinha. - Vou ligar pra Alice. – falei pegando o meu celular no bolso de trás da calça. Ela descansou o envelope no balcão mais uma vez e eu posicionei o celular encostado num vaso de flores. Disquei o número que eu já sabia de cor e liguei de vídeo pra minha amiga de faculdade. No terceiro toque ela atendeu. - Sam? – ela atendeu. – Sua maluca, por que sumiu assim? Juro, tinha dois dias que não nos falávamos. - Ali, eu... recebi a carta. – mordi meus lábios. - E? – ela balançou sua mão livre num gesto de descaso. - E eu ainda não abri. – fiz uma careta. – Queria abrir com vc. Só então eu reparei que ela estava de plantão. Não foi só seu uniforme verde água que me indicou que ela estava de plantão. A movimentação atrás dela, o barulho dos aparelhos, o falatório... Imediatamente meu coração acelerou pensando naquela adrenalina. Eu precisava viver aquilo. Eu queria viver aquilo. Naquele momento eu decidi que se não conseguisse o John Hopkins dessa vez eu tentaria quantas vezes fossem necessárias e até lá eu poderia trabalhar em Nova Iorque. Tinha excelentes hospitais ali também. - Pelo amor do Pai, Sam! – ela disse agoniada. – Vamos logo com isso. Não posso demorar, a pediatria está uma loucura hoje. Alice era enfermeira da emergência pediátrica do John Hopkins, ela tinha entrado lá num processo seletivo anterior ao meu, mesmo a gente tendo o mesmo tempo de formada. Só que Alice era de Washington, ela só vinha pra Nova Iorque para estudar. - Eu vou abrir. – Joana disse impaciente e Alice murmurou um “Isso aí Joana, manda a ver garota”. Meu coração parecia querer saltar pela boca e meus ouvidos estavam zunindo, de tão nervosa que eu estava. Joana esticou a folha a sua frente e começou a murmurar sons incompreensíveis. Como se estivesse lendo na velocidade da luz. Ela mantinha uma expressão compenetrada no início, unindo as sobrancelhas e de repente sua feição suavizou. Eu olhei pra Alice na tela do celular. - p**a m***a, gente! E ai?! – ela disse impaciente. - Bem... – Joana abaixou o papel no balcão. – Parece que a menina Samantha tem um emprego e... – ela sorriu pra mim. – Começa na próxima segunda. Alice deu um grito agudo e logo tapou a boca com as duas mãos. Eu senti os braços da Joana ao meu redor, ouvindo enquanto Alice praguejava “d***a! Já volto! Anthony não...”, mas eu estava entorpecida. Eu tinha passado! Poucas vagas, centenas de candidatos e eu tinha passado. - Parabéns menina. – eu sai do meu torpor e encarei Joana, seus olhos estavam marejados. Ela estava emocionada. - Ah! Joana... – agora eu que a abracei. - Vou sentir tanto sua falta. – ela disse fungando. - Eu também, Joana. – deitei minha cabeça em meu ombro e disse a ela o que eu dizia todos os dias. – Eu te amo tanto, Jo. Ela me soltou do abraço quando suas lágrimas secaram e sorriu pra mim docemente. - Vamos arrumar suas coisas. – seu sorriso era sincero. – Temos apenas dois dias para arrumar sua mudança. Joana me ajudou a arrumar as malas e empacotar tudo o que eu queria levar. Meus livros, minhas fotos, tudo que tinha no meu quarto eu queria levar. Menos os móveis, claro, com certeza Charlie providenciaria isso assim que eu falasse para ele que agora era fato, eu realmente estava deixando Nova Iorque. Isso me fez lembrar que contar pra ele, realmente, não iria ser fácil. Se ele quase quebrou o apartamento apenas com a possibilidade, imagina com a concretização de que eu realmente iria embora. Parei pra pensar em como minha vida mudou, em como nada mais me prendia em Nova Iorque. A única pessoa que eu sentiria falta era Joana. Apenas. Meu pai sabia se virar. Charlie sempre foi durão, então afeto nunca foi uma coisa que participasse da nossa relação de pai e filha. Nem mesmo quando minha mãe era viva. Não que eu sentisse falta, era indiferente pra mim. Eu tive algumas colegas de faculdade, mas perdi o contato depois da formatura. A única amiga que eu tinha mesmo era Alice, que me acompanhou fielmente durante todos os 4 anos da graduação. Pensar em amigos me fez lembrar a época da escola e toda a humilhação que eu passei na adolescência. Se eu soubesse desde o princípio que esbarrar com aquele b****a no refeitório da escola nova arruinaria toda a minha vida escolar – pessoal e amorosa - eu jamais teria aceitado mudar de escola, mas na época Charlie disse coisas do tipo “Vamos querida, vai ser melhor pra você!”, “Lá vão te preparar melhor pra faculdade!”. Quando ele disse que na escola nova eu teria chance de conseguir nota suficiente pra NYU eu me convenci. E eu me odiava por isso! Eu amava minha antiga escola, amava meus amigos, os professores e as atividades que eu tinha lá. Ela ficava em Manhattan mesmo, perto de casa, perto do Central Park, a poucos quarteirões, na verdade. Nós costumávamos ir andando até lá. Quando comecei o ensino médio que Charlie me convenceu a estudar numa escola no Queens... e foi lá que ele matou meu coração aos poucos, tirando todas as chances de algum dia eu encontrar a felicidade com alguém. Eu me odiava por ter me envolvido com ele, por ter me apaixonado por ele, por ter deixado ele ser meu primeiro em tudo... Droga! Eu não podia chorar. Não de novo. Eu já tinha superado toda essa m***a! Eu sei que já tinha. Mesmo Alice me dizendo que eu não tinha, já que eu nunca mais consegui me envolver emocionalmente com outro homem. Babaca! Além de me enganar, me humilhar, me trair... ainda tinha roubado de mim meus sonhos de menina. Aquelas coisas de casar e tudo mais. Que se dane! Nunca quis isso mesmo. Foca Samantha! Você conseguiu, está no grande e imponente John Hopkins. Sua vida profissional só está começando. Vida que segue. Naquele dia antes de dormir conversei com Charlie e ao invés de quebrar a casa ele apenas disse “você sabe o que está fazendo”. Eu fiquei na dúvida se foi uma afirmação ou uma pergunta, mas achei melhor deixar pra lá. Ainda liguei pra Alice e disse a ela pra arrumar suas coisas. Ela ainda morava com os pais em Washington e havíamos combinado que eu me mudando pra Baltimore, ela viria morar comigo. Como o apartamento era meu, não pagaríamos aluguel e isso a ajudaria no seu orçamento, até pra ela ajudava seus pais em casa. Dormi um sono inquieto naquela noite. Fazia tempo que eu não sonhava com ele. No sonho eu estava sendo sempre humilhada por ele e por aqueles amigos idiotas dele, no pátio da escola. Todas as pessoas apontando pra mim e rindo de mim. Eu sonhava sempre com o baile de formatura e tudo que ele me disse naquele dia. Eu achei que os pesadelos tinham parado, mas eu não fazia ideia de que, na verdade, eles só estavam começando. - x -
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