Capítulo 01

3004 Words
A atmosfera densa que recaiu sobre a cidade nebulosa fez com que o oxigênio de seus pulmões parecesse denso. O céu nunca esteve tão escuro antes, assim como as folhas secas que se desprendiam das árvores grotescas nunca pareceram tão barulhentas. A jovem Luna sustentou suas íris azuis - agora ligeiramente mais claras pelas lágrimas, no caixão preto que descia alguns palmos a terra escura e molhada pela chuva enquanto ela apertava o cabo do guarda-chuva, numa tentativa de se manter apegava a algo que a prendesse à realidade. O silêncio ao seu redor era quase sufocante, massante e angustiante, enquanto os homens da cavalaria da guarda de honra de Nova York dobravam a bandeira americana de forma muito bem ensaiada, com suas luvas brancas que anteriormente haviam carregado o impecável caixão que continha o corpo de seu herói. Seu corajoso herói caído. Da mesma forma que haviam disparado balas de seus rifles e canhões para o céu, os homens bradavam palavras de honra e respeito. Palavras essas que infelizmente pareciam longe demais para serem ouvidas pela jovem cientista que agora tinha seus pensamentos distantes. Sua realidade parecendo muito paralela a que ela vivia naquele momento. Contudo, fora de forma respeitosa que um soldado se aproximou dela e num profundo silêncio necessário, lhe entregou a bandeira americana antes de realizar uma reverência respeitosa que a trouxe de volta de seu breve estado de devaneio. Após fazê-lo, o rapaz que tinha o rosto sombreado pelo quepe militar se afastou, deixando que Luna congelasse quando a realidade dos acontecimentos a atingiu como um soco no estômago. Kaleb havia acabado de ser enterrado. O mundo havia perdido seu Messias e era como se a era dos heróis não mais existisse. A comoção nacional dos cidadãos que aos poucos se aproximaram e deixavam flores na sepultura gravada como "Capitão Sky. - Herói e Guardião. ☆ 1980 - 2021 " pareceu um rio que aos poucos transbordava, engolindo os arredores e preenchendo tudo que encontrava pela frente. Mas foi somente quando as primeiras gotas frias de chuva começaram a cair com mais força e violência, molhando de maneira nada delicada seus elegantes saltos pretos, que Luna sentiu que precisava ir embora. Ela sentiu como se precisasse respirar e os aromas de flores, perfumes baratos e morte, estavam lhe embrulhando o estômago. Aquilo pareceu demais para ela. Opressor demais. Violento demais. Uma avalanche de emoções que a fez desejar largar o guarda-chuva e correr. Correr para qualquer lugar que não fosse aquele. Porém, antes que suas pernas finalmente se movessem por conta própria e atendessem seus pensamentos conflitantes, a jovem de cabelos castanhos de mel se viu amparada por um corpo sólido e franzino, assim como a familiar voz de Richard que parecia falha por ter passado muito tempo em silêncio. O rapaz samaritano murmurou algo que ela não conseguiu ouvir, mas que a fez sentir-se profundamente grata por ser afastava dali antes que enlouquecesse. Afastada do tumulto de pessoas que se reuniram para prestar suas últimas homenagens ao seu herói caído. Em um canto mais afastado, Elizabeth segurava um guarda-chuva na companhia de Samuel. E Luna percebeu muito rapidamente que as íris azuis da mulher loira nunca pareceram mais claras e que seus olhos estavam inchados pelo choro. Para Luna, foi um pouco chocante perceber como a morte de Kaleb os atingiu com tanta violência. E que, por um momento ela se sentiu egoísta por pensar que era a única mais afetada. A única no direito de sentir e sofrer. Espalhados pelo cemitério estavam alguns agentes do D.S.E Departamento Especial de Super-heróis. De maneira isolada, eles se mantinham reservados e silenciosos, quase que conpiscuos ao cenário. Em seus casacos de frio e guarda-chuva, eles quase pareciam pessoas normais. Quase. Luna pôde ver também que o velho - porém não menos viril - Samuel consolava Elizabeth da melhor maneira que conseguia, amparando a mulher de ombros estreitos e magros em seu peito largo. O homem de bigode grosso e cabelos grisalhos era como uma lufada de ar quente para a mulher naquele momento, e Luna sentia uma espécie de torção incômoda no estômago por não ter quem ampara-la daquela maneira. Elizabeth era uma mulher de sorte apesar dos acontecimentos infelizes. Ao lado do casal de cientistas estavam Alice, a noiva de Richard e também Stephanie e Joseph, dois jovens heróis em treinamento, os chamados recém criados do D.S.E que seguiram a liderança de Kaleb como se suas vidas dependessem daquele propósito. Stephanie parecia muito afetada, quase inconsolável enquanto Joseph amparava o corpo da garota que sofria pequenos solavancos de choro. O grupo estava todo consumido pela atmosfera densa e nauseante do cemitério, e então de repente a sensação veio a tona. A cena era simplesmente demais para Luna. Ela não sabia o que fazer ou como respirar. Seus pulmões ficaram apertados e seus olhos azuis transbordaram como se dois rios estivessem escorrendo por eles. Então suas mãos começaram a ficar suadas e seu coração trovejante. Ela não conseguia, parecia insuportável. Quase como se alguém tivesse enfiado um punhal em seu coração e virado-o. Então foi se afastando delicadamente do meio abraço de Richard que a jovem Luna se dirigiu para fora do cemitério num profundo silêncio. Não havia o que ser dito quando a ocasião por si só já falava. Estava acabado. Kaleb estava morto. E foi seguindo em passos firmes até o belíssimo sedan preto que o aguardava do lado de fora com seu motorista a esperando com um guarda-chuva na mão, que a jovem de cabelos escuros fechou o próprio guarda-chuva antes de entregá-lo ao motorista e entrou depressa, se acomodando no banco de trás quando o homem fechou a porta. Ela precisava daquele momento. Precisava desabar sem que as pessoas estivessem presentes para testemunhar. Ela precisava chorar e culpar o universo e todo o projeto que o D.S.E criou para todas as cobaias que passaram por seus experimentos. Ela precisava viver seu luto enquanto se lembrava de todas as coisas maravilhosas que Kaleb fez pelo mundo. De quão apaixonado e genuíno ele era e como todos tiveram sorte de conhecer a melhor criação do D.S.E. ──────⊱◈◈◈⊰────── Seria um eufemismo dizer que voltar para uma cobertura vazia foi pior do que todo o resto. Nunca pareceu tão doloroso quanto das vezes anteriores, quando sua única preocupação era largar os saltos altos, encher uma taça de vinho e se arrastar para a banheira, para um banho quente enquanto acompanhava as notícias do dia através de suas mídias sociais. Mas não naquela noite. Não depois de uma torrente de chuva e da cacofonia do dia ecoando em sua cabeça. Seu porcelanato polido e esterilizado nunca esteve tão frio, da mesma forma que os móveis impecáveis e organizados em seus devidos lugares, jamais pareceram tão desnecessários. Luna ainda podia ouvir a marcha fúnebre ecoando em sua mente e os burburinhos de todos presentes naquela cerimônia de despedida, enquanto seus saltos altos tocavam o piso e emitiam um barulho que ecoava por todo o recinto silencioso, seus olhos estavam pálidos e sua maquiagem estava arruinada da pior forma possível. O vazio era devastador, e quando a garota finalmente tirou os saltos e seus pequeninos pés pálidos tocaram o piso gelado, deixando os calçados sujos de terra úmida em algum lugar próximo ao rodapé, seu corpo foi finalmente consumido pelo choro. Uma torrente incontrolável de lágrimas deslizou pelo rosto fino dela enquanto a menina sentia seus ombros trêmulos, a cada solavanco sofrido. Kaleb fora embora após seu último ato heróico que salvou a vida de milhares de pessoas, travando uma batalha épica contra uma criatura interplanetária que ameaçou a terra nos últimos dias. Se intitulando de Ceifador, a criatura cumpriu sua missão de derrotar o maior herói que a terra conhecia atualmente, dando fim a uma era de paz e harmonia que a personalidade radiante de Kaleb foi um dia. Agora, a única lembrança que Nova York guardaria de seu amado herói seria o glorioso monumento no Parque Memorial que receberia ainda mais visitantes após o ocorrido. E, depois da morte do líder dos heróis na terra, ficou óbvio que o D.S.E não voltaria a repetir o processo de criação de um novo Capitão Sky, afinal, Kaleb fora a criação mais ambiciosa deles e a única cobaia capaz de passar pelos testes e sobreviver. E Luna ainda podia se lembrar de como se sentiu culpada por realizar os testes em Kaleb que se voluntariou de livre e espontânea vontade depois de voltar do Afeganistão. Um dia, antes de poder voar como um pássaro e de possuir uma pele tão dura quanto um diamante, Kaleb foi um soldado lutando por seu país e, agora ele havia morrido como um herói, não um sargento, mas um super-herói com direito a uma capa e sorrisos estampados em caixas de cereais. Quando soube do programa do D.S.E, Kaleb decidiu se escrever como cobaia, passando por uma série de testes e um treinamento rigoroso até a aplicação do soro que o transformou na figura de maior adoração das criancinhas e que o fez subitamente saltar para fora do imaginário de adultos que cresceram acreditando que seus heróis jamais seriam reais. Com um coração bondoso e sendo filho do casal de cientistas Elizabeth e Samuel Walker, Kaleb se sentiu honrado por fazer parte do projeto dos pais, ainda que a princípio os dois tenham relutado um pouco por submeter o primogênito aos testes, sua biologia se mostrou compatível com as exigências. E não demorou para que seu interesse por Luna crescesse. A jovem cientista e filha de um dos investidores dos projetos do D.S.E encantou o rapaz de maneiras que ela não seria capaz de contar - e foi recíproco. Os cafés no fim do dia foram se dissolvendo em jantares românticos e noites de conversas agradáveis na cobertura dela em Upper East Side. Até que vieram os beijos e noites de amor sem fim. Mas agora tudo havia terminado. E enquanto se permitia um momento para refletir as ações de Kaleb, Luna sentiu a bile subir por sua garganta, a obrigando a correr até o banheiro social raramente usado da cobertura que ficava no corredor e lá, despejasse todo o conteúdo de seu estômago na privada. Certamente culparia a ocasião e toda a repulsa causada pelo sentimento desesperador de impotência diante do inevitável. A cientista se sentia profundamente devastada. Luna se sentia miserável. Tudo que mais queria era receber uma mensagem de Kaleb, dizendo que tudo não passava de um engano, que ele estaria voltando para casa após mais uma de suas rondas noturnas e que estava ansioso para abraçá-la no sofá a noite inteira enquanto devorava duas caixas de pizza e a beijava e também lhe contava sobre seu dia. Porém, o silêncio na cobertura dizia o contrário. Por sua vez, Luna se desfez das roupas usadas no enterro e adentrou o box, virando o registro do chuveiro e deixando que a água morna lavasse e aliviasse um pouco a angústia daquele dia terrível. Esperava que a água a despertasse do pesadelo que havia acabado de transformar sua vida da maneira mais angustiante possível. Talvez o banho ajudasse a aliviar o sentimento de impotência. Após o banho, de dentes escovados e cabelos úmidos, usando uma das camisas sociais brancas de Kaleb e um pequeno shorts curto, a jovem cientista se aproximou da sacada da varanda onde as luzes de uma Nova York imensa brilhavam como pequenos vagalumes distantes. De seu lugar, ela podia imaginar que todos estavam seguindo com suas vidas, que todo mundo aprenderia a superar, por mais quebrados que estivessem, era assim que o mundo funcionava. As pessoas seguiriam em frente até que a saudade se transformasse em uma lembrança distante. Mas não ela. Luna sentia que não seria como os outros, que provavelmente nunca esqueceria de todas as coisas que Kaleb fez. De todos os sorrisos e de tanta esperança que ele trouxe. Então ela olhou para cima e deixou que seus olhos se perdessem na imensidão nublada do céu acinzentado. Alguns pequenos e tímidos pontos de luz que eram as estrelas ainda lutavam contra as nuvens carregadas e Luna sorriu com tristeza ao lembrar que nunca mais veria o dono de um sorriso que seria capaz de causar inveja em todos os astros no céu. Então ela se afastou da varanda, fechou as portas francesas para impedir a entrada do vento frio, e com o coração pesado e todos os músculos sobrecarregados, vagou de volta para o interior da residência, se dirigindo ao quarto que passou a compartilhar com Kaleb algumas vezes. Lá, as lembranças pareciam mais vivas e dolorosas, então quando caiu na cama, Luna estendeu a mão para tocar o travesseiro frio que ocupava o lado dele na cama e sentiu que mais uma vez seus olhos se afogariam em lágrimas. Ela sentiu como se já estivesse em seu limite e que não tinha mais forças para chorar, então puxou o edredom e tentou dormir profundamente. Talvez amanhã ela seria capaz de pensar um pouco mais sobre todas as coisas. Com menos lágrimas e um pouco de café, seu cérebro seria capaz de processar os acontecimentos com mais clareza, então ela se esforçou para dormir. Naquele apartamento as lembranças com Kaleb pareciam mais vivas porque algumas de suas coisas estavam no banheiro, no closet e até mesmo na cozinha. Como sua caneca de café preferida de seu time de futebol, além de uma variedade de caixas de comida para entrega que viviam espalhadas pelo balcão. Ela sabia que precisaria fazer uma arrumação no apartamento em breve, mas se deu conta de que não estava muito entusiasmada para aquilo. Então ela decidiu dormir. Dormir um sono que não sabia que precisava até que seu corpo se entregasse à sensação de relaxamento e seus pensamentos conflitantes se calassem por um momento. Dormiu o suficiente para que tudo ficasse em silêncio e as lágrimas parassem. ──────⊱◈◈◈⊰────── E então a manhã chegou tranquila, trazendo com ela alguns raios solares que adentravam as frestas da janela do quarto, fazendo com que Luna se movesse suavemente em seu sono, sendo amparada de forma gentil e segura por um braço firme e possessivo ao redor de sua cintura. Kaleb gemeu angustiado enquanto insistia em permanecer de olhos fechados, como se reclamasse o fato de saber que já era de manhã e que o dia começaria mais uma vez. Agitado e cheio de deveres que exigiriam os esforços e atenção de seu amado herói, o homem de cabelos dourados tentou permanecer quieto. No entanto, Luna estremeceu naqueles braços, e não da forma que já estava familiarizada. Como quando ele a abraçava depois de um dia longo, beijava seu pescoço e dizia baixinho em seu ouvido que precisava dela para aliviar a tensão de um dia demorado em que algumas coisas não saíram do jeito que havia planejado. Aquele era um tipo novo de sensação. Estranho e nada familiar. E foi virando-se um pouco para olhar para a figura que a amparava e murmurava algo embargado e incoerente em seu sono - num timbre aveludado e indisposto, que Luna só costumava ouvir quando o homem de cabelos dourados estava realmente indisposto ou chateado com algo, que a jovem cientista sentiu seu peito afundar, assim como seu coração havia errado uma batida. ━ Kaleb?! - Luna sussurrou. Contudo, o homem não respondeu, apenas sorriu suavemente ainda de olhos fechados para ela e afundou um pouco mais o rosto sereno no belíssimo emaranhado de seus cabelos escuros. Como se de alguma forma estivesse extraindo um pouco mais do seu cheiro para si, ele se afundou um pouco mais no calor de seu corpo e na pele macia que ela possuía. ━ Você voltou? - a garota insistiu, ainda sem acreditar que ele estivesse mesmo ali. Ela se moveu um pouco, esperando obter alguma resposta, mas, diferente de suas conversas matinais, daquela vez o homem de cabelos dourados permaneceu num sono tranquilo, fazendo com que Luna sentisse a urgência sufocante de abraçá-lo, como se de alguma forma seu ato pudesse mantê-lo ali. Como se aquilo pudesse mantê-lo para si. E como se ninguém nunca pudesse tirá-lo dela, porque era injusto que algo tão precioso fosse arrancado com tanta violência de sua vida. ━ Shhh... Eu nunca fui, linda. Apenas durma um pouco. O homem por fim respondeu, fazendo com que Luna transbordasse em lágrimas. Lágrimas tão antigas que a fizeram sufocar contra o peito firme dele. Kaleb estava ali, Luna o seguraria e nunca mais o deixaria ir. Era apenas aquilo que importava. Todavia, foi o celular da cientista tocando estridente na cabeceira da cama que a despertou daquele sonho. Ela abriu os olhos atordoados e se deparou com uma cama vazia, lençóis frios e as baixas temperaturas de Dezembro que traziam consigo a familiar neve de Natal. Diferente de seu sonho, ela não estava acompanhada de um corpo firme e quente como o Sol. Kaleb não sorria para ela ou a abraçava de maneira acolhedora e protetora. Luna sabia, no fundo de sua alma, que o homem estava em paz agora, ele havia lutado por aquilo. Ele havia lutado para fazer com que tudo ficasse bem, ainda que custasse sua vida e o pensamento parecesse egoísta demais para caber em sua consciência, Luna sabia que suas ações eram exatamente as ações de um verdadeiro herói. Cara Luna Esperamos que você tenha conseguido dormir. Eu e Samuel estamos de acordo que você tire um tempo para si mesma. Amor, Elizabeth. Ao ler a mensagem da sogra em sua caixa de mensagens, a garota balançou a cabeça e deixou a cama, vestiu uma máscara de seriedade que conquistou o coração de Kaleb e se preparou para o dia enquanto escrevia de volta para Elizabeth, informando que estaria lá, afinal, graças ao homem que amavam, o mundo não havia acabado. Graças aos seus sacrifícios, todos tinham uma nova chance e não aproveitar o que ele lhes deixou seria um pecado. ㅤㅤ──────⊱◈◈◈⊰──────
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