Padre Vergas
- Estamos aqui reunidos para celebrar mais uma passagem de ano, fiéis da casa do Senhor. - Seriamente discorria a pessoal palestra anual. - E antes que entremos todos juntos nessa corrente poderosa de oração. Quero lhes falar daquela parábola do filho pródigo.
Endireitei os pequenos óculos no nariz, um pouco grande para caber, mas mesmo assim eram os melhores para leitura. Sou da moda antiga, apreciava colecionar relíquias ultrapassadas, da qual quase ninguém mais gostava. Principalmente moedas datadas de longos séculos. O passado, a dinastia chinesa, os egípcios. Essas eram manias escondidas, um lado meu desconhecido ao povo dessa cidade pacata, modesta e simples.
Antes de começar a falar o que a palavra de Deus poderia nos revelar em momentos sombrios nos dias de hoje, pois sua mensagem era a única que sempre se mantinha originalmente viva ontem e eternamente, suspirei fundo. Passando os olhos pelo pequeno grupo que veio nessa noite atrás daquilo que ansiava em suas vidas solitárias.
Ao meu ver a bíblia era transcendental, ultrapassando as barreiras impostas do tempo. Divina em toda época, moderna e antiga. Simplesmente amo esse livro, e cada frase escrita nele. Cada texto e versículo. Uma das razões que desejei ser padre, era para estar constantemente em contato com essa preciosidade, levando-a para o povo dessa simplória paróquia, da qual fui agraciado a tomar conta. São todas ovelhas, necessitadas de um conforto espiritual, e isso sabia dar a elas.
Sempre tive a certeza absoluta da minha vocação, nunca me desviei do meu foco principal, muito menos olhei para a direita ou esquerda. Segui em frente na vida, ansiando essa posição santa como se fosse uma carreira, meu destino. Nunca imaginei minha trajetória sendo de outra forma. Fui convocado por ele para servi-lo integralmente, por vinte e quatro horas.
Iniciei a pregação normalmente, fazia isso por anos. Sabia de cor e salteado o que ali estava escrito, mas gostava de passar os olhos no texto, de sentir a velha sensação de leitura da primeira vez, isso era reconfortante. E de vez em quando olhava-os. Fazer essa conexão visual com os membros, principalmente os assíduos, porque são poucos, era primordial. E foi nesse intervalo de olhada e olhada, que a vi chegando; mansa, tímida, meio constrangida. Usando um sobretudo longo, com capuz, que chegava até aos seus pés, quase cobrindo as botas de salto da qual fazia um barulho característico no piso gasto da igreja. A sua aparição não me fez parar o ensinamento bíblico daquela noite estrelada e quente, e nem distraiu aquela gente humilde do seu foco, por mais que aquela senhorita estivesse fora de contexto, talvez estivesse perdida, e veio buscar ajuda na casa abençoada de cristo. A moça forasteira sentou na fileira à minha direita, cruzando as pernas tirando a casca, aquela primeira vestimenta. Nesse momento retornei os olhos para o lugar correto, não devia ficar fitando jovens de vinte anos por um número considerado de tempo. Na verdade era deselegante em qualquer idade.
Me concentrei fielmente na história central até chegar ao fim. Todavia, na hora que fechei aquela obra com força, fui obrigado a olhar de frente, dando de cara com aquela garota, agora sem os óculos escuros, e revelando o tom escuro dos seus cabelos curtos, alinhados no estilo chanel, até a altura do queixo. Ela também me encarava sem piscar, exibindo olhos azuis penetrantes, embora sejam tristes, carregando um grau sofrido de melancolia. Contudo, senti um turbilhão de conflitos internos ao ficar fitando-a sem desviar, até que um ajudante paroquial sussurrou para terminar a missa.
- Pois, bem… - Engoli em seco, voltando a olhar para qualquer objeto daquele espaço mediano, ou fitar os rostos já conhecidos. - Levantem-se e oremos, faltam dez minutos para entrarmos no ano de 2023. O ano da benção.
Um riso jovial ecoou pela congregação, de imediato sabia a quem pertencia aquele específico sorriso, acarretando-me um força vigorosa em meu ser, da qual nunca havia sentido. Trazendo-me raiva e ressentimentos fortíssimos por aquela desconhecida, além de um desejo pecaminoso. Maldito.
Samantha Cruz
Consegui sair das garras daquele desgraçado a tempo, senão seria tarde demais, e toda culpa ainda cairia sobre mim. Minha mãe me culpava por ter nascido bonita o suficiente para chamar mais atenção do que ela. Bom, era isso que constantemente me acusava, então ser bela naquela casa era motivo de brigas no café da manhã, e se deixar porradas na hora de se sentar para comer na hora do almoço. Já não suportava mais as discussões deles por causa da minha aparência jovial, dos ciúmes dela, e da perseguição do Joe. Aquele filha da…
Não, Cruzinha, você está na casa do senhor, não pode xingar. Precisa respeitar, por isso escolheu entrar aqui, onde nunca te levaram na infância, por achar que religião era um papo ultrapassado. E que no final todos iriam para o mesmo lugar.
Lógico que não me importava com a opinião de pessoas que gostavam de beber até cair, se drogar nas festinhas ou virar a noite à base de muito êxtase.
Mas era obrigada a seguir cegamente as regras daquele ambiente barulhento da qual chamavam de família. E assim foi a minha triste vida até completar meus vinte anos.
Senti um desejo de entrar nessa paróquia depois que a gasolina do veículo do meu padrasto acabou justamente em frente a ela, além de ouvir a voz do locutor paroquial intensa, vibrante. Tão espetacularmente madura, que me atraiu para cá. Era atraente de forma boa, trazendo-me uma paz interior jamais sentida.
Quando nossos olhares se esbarraram notei a dureza neles, era um padre normal, e parecia ter uns quarenta e poucos anos. Rosto limpo, livre de pelos, mostrando que preferia manter sempre a pele bem barbeada, talvez fosse sua única e exclusiva vaidade. A formosura dele era rústica, séria. Acho que nunca sorria, embora ser um sacerdote lhe dava o direito de soltar umas risadinhas de vez em quando, não era proibido a ele.
Levantamos seguido do comentário sobre o “ano da benção” fazendo-me rir, notei-o fitando aquilo como algo desdenhoso. Logo busquei me calar, sozinha naquele banco de madeira, abaixei fervorosamente os olhos pensando no real motivo da minha risada fora de hora, porque passava ano e tudo ficava na mesma pra mim, nada mudava. E mesmo tendo fugido daquilo, temia que o meu passado retrocedesse e viesse me buscar de qualquer maneira, até mesmo arrastada. A força.
O ano novo chegou, e continuamos nessa corrente forte de oração, e ali eu pedi p******o, ou que Deus enviasse um ser iluminado para me orientar.
Padre Vergas
A fila após a passagem de ano foi curta, então em breve todos estariam debaixo de seus lençóis apreciando o primeiro feriado do ano. Enquanto isso terminava a entrega da hóstia prosseguindo com o ritual de milênios.
Enquanto fazia meu trabalho ao serviço do senhor, aquela jovem não ousou sair do seu lugar, na certa achava-se indigna de receber comunhão com Cristo, um pecado obscuro talvez. Ainda mais nessa juventude de hoje, que vemos muita erotização, p*********a, recheada com profanos adultérios. E outras dezenas de perdições, o mundo está repleto de coisas do tipo. Não estou aqui para julgá-la, longe de mim cometer tal ato, pelo ao contrário, deveria ser o guia espiritual dela para passar por qualquer vale tenebroso da qual possa estar metida. Todavia, devido ao reboliço que me causara, devia me manter longe da moça. Longe de qualquer tentação que possa afligir meu corpo, pela qual sacrifiquei para estar em paz com a minha santa escolha. Sou um templo do senhor, livre de pecados. E ela poderia ser o antônimo disso.
Agora me sentia mais em paz comigo mesmo, na certa que foi a primeira impressão, logo iria me acostumar com a presença feminina. Isso, se ela ficar na cidade, o que via-se pela sua chegada afoita, que a sua vinda nessa humilde paróquia do subúrbio, interior do estado, seria apenas um mero desvio do destino. Aquietei meu coração por saber dessa possibilidade, porque os que os olhos não vêem, o coração não sente. E o início do desvio vem da primeira olhada maliciosa.
Finalizando a missa de passagem de ano com a entrega das hóstias, os convidei para irem ao confessionário, caso quisessem, ou precisassem se confessar. Mesmo sabendo que já haviam feito as pazes com Cristo, mas vai que algum pecado tenha sobressaído somente agora nas suas mentes. Nunca se sabe, e gostava de deixá-los tranquilos com sua essência pecaminosa. Porque todos os mortais são propícios a pecar, disso não tenho dúvidas. Confessar era o melhor remédio para uma alma atormentada.
Os deixei à vontade na igreja, e conforme iam deixando o local, me cumprimentavam gentilmente com sorrisos, abraços. Aperto de mão. Sou um padre dinâmico, embora me apresente sério, mas geralmente sou bastante gentil. Eles já me conheciam, sabiam do meu jeito de ser, existia uma certa profundidade de convivência com esta geração. Estou nessa missão há muitos anos, e quando vim pra cá realizei meu sonho. Estamos juntos há mais de uma década. Realizei casamentos, uni vidas na lei de Deus. Batizados e muitos outros eventos. Assisti seus filhos crescerem, casarem e se multiplicarem. Conheço seus netos. Enfim, cada casa desse pacato lugar tenho a certeza das portas abertas, sou bem vindo sempre em seus lares. Sou amado pelo povo.
No meio da despedida um convite foi feito por uma das senhoras assíduas, um chá de bebe para o mês seguinte. Inicialmente ao relatar achei meio que estranho, já que não convidam homens para essas festividades, porém relatou-me da sua vontade de que a minha pessoa santificada precisaria estar presente, pois, a sua filha queria oferecer aquele evento importante em ações de graça, já que não podia conceber, e Deus tocou-lhe o ventre, fazendo-a fértil. Contente por essa maravilhosa dádiva aceitei de imediato.
Quando o último m****o desse corpo foi-se embora, orientei ao meu ajudante Oziel para fecharmos as portas, e lacrar as janelas antes dele ir para casa de sua mãe idosa, e eu ir terminar meus estudos doutrinários antes de me recolher, já que pela manhã vou tirar um tempo livre para organizar meus bens pessoais de artesanato, e antiguidades. Meu passatempo favorito quando não estava em serviço aos meus ensinamentos santos.
- Padre Vergas, está tudo em ordem. - Disse-me ao sair em disparada em direção a saída, sem a túnica que usara para realização do culto.
Olhei-o ajeitando o livro grosso do púlpito.
- Tem certeza que olhou tudo, Oziel? Ou preciso inspecionar novamente? - Arqueio uma sobrancelha inquisitivamente.
O apressado jovem não soube responder com mais precisão, deixando-me em dúvida.
- Tudo bem. Não se preocupe. Vá para casa e cuide da dona Dulce, deve estar te aguardando até agora acordada.
- Agradecido padre.
Juntou as mãos e logo passou pelas portas, passando as chaves do lado de fora.
Mesmo que esse pedaço de chão fosse calmo, as medidas de segurança precisavam ser seguidas às riscas. Somos pobres, mas nesse ambiente reservado para cultuarmos ao senhor, existiam donativos. Ajuda para a melhoria do telhado, alimentos, do tipo cesta básica para os mais necessitados, e fornecemos uma participação para pessoas sem ter onde morar. Onde toda a comunidade se juntava. Como dizia o padre regente, a união faz a força.
Suspirei cansadamente, evitando um bocejo. Levando comigo a obra mais importante desse planeta.
Chegando na sacristia depositei-o na prateleira, não gostava de deixar em outra parte, a não ser aqui. Sou detalhista, e um tanto perfeccionista. Organização e limpeza faziam parte de quem eu sou, além de outras coisas determinadas em meu ser caridoso. Estava pronto para remover a estola, a faixa vertical que desce do pescoço. Seu significado tem haver com o poder da autoridade sacerdotal. Mas um som estranho vindo de fora desse cômodo pegou-me desprevenido. Precisava ir ver logo, podia ser algo ou alguém tentando entrar. Um bêbado talvez. Tudo podia acontecer nessa madrugada, o ano apenas havia retomado seu ciclo.
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