Capítulo 1

1746 Words
Capítulo 1 FANTASMA NARRANDO Aqui de cima, do ponto mais alto da Rocinha, o mundo parece pequeno. As luzes do morro piscam igual vaga-lume, os becos têm vida própria, e o barulho é aquela sinfonia que só quem nasceu aqui consegue entender. Não tem dia quieto, mas quem precisa de silêncio? Eu já me acostumei. Dei um trago lento no cigarro e soltei a fumaça pelo nariz, olhando tudo que conquistei. Quem diria, hein? Eu, Leandro, vulgo Fantasma, parado aqui, comandando o maior morro do Brasil com uma família que vale mais que o ouro que roda por essas bandas. Uma mulher que é um furacão de linda e braba, e dois filhos gêmeos que nasceram pra botar fogo no parquinho. Hoje é o aniversário deles, e tem churrasco rolando lá embaixo. Mas antes de descer, fiquei parado, olhando o morro, e relembrando tudo. A vida nem sempre foi essa calmaria disfarçada. Foram anos de luta, de tiro, de sangue, de dor, mas a gente venceu. Eu venci. Eu e minha Maju. — Quem diria, Fantasma, que você ia virar “o” patriarca? — murmurei pra mim mesmo, rindo baixo. A Maju foi a melhor coisa que aconteceu na minha vida. A mulher é f**a, sem tirar nem pôr. Me deu os meus filhos, meu sossego e, às vezes, uns puxões de orelha. É ela quem me equilibra, quem me faz lembrar que eu não sou um monstro, por mais que a vida tente pintar a minha imagem assim. Mirella foi a primeira a nascer. Ô menina pra ter personalidade! Parece que já veio ao mundo gritando que ia mandar em tudo. Ela é um furacão. Nada de romantismo, nem vem com essa de casamento ou de final feliz de novela. Mirella quer o comando. Ela estuda Direito, mas não é pra seguir as regras não — é pra aprender como quebrar elas sem se sujar. Olha, se eu for sincero, eu acho que ela nasceu pra ser minha sucessora. A menina tem pulso, tem coragem. — Igualzinha ao pai — falei, sorrindo. — Mas com um pouco mais de finesse. Já o Lucas é outro papo. Ele é mais leve, mais solto, gosta de aproveitar a vida. Faculdade? Nem pensar. Ele quer o comando da Rocinha também, mas do jeito dele. Curtindo o rolê, mexendo com os negócios, cuidando da rapaziada. É aquela vibe: manda, mas sem estresse. O moleque herdou minha malândrage, mas também puxou a beleza da mãe, o que ajuda na fama de galinha. As meninas correm atrás dele como se o d***o té estivesse dando carona. — Filho de peixe… peixe é — murmurei de novo, rindo. Parei um segundo e me lembrei da Priscila, a melhor amiga da Maju. Essa mulher é uma lenda. Psicóloga forense que sabe de tudo, descobre até o que foi enterrado há mil anos. Eu nem gosto de olhar muito tempo pra cara dela porque parece que ela lê até meus pensamentos. Fico na minha. Priscila é casada com o Canivete, meu braço direito. A Maju tem sorte de ter uma amiga dessa, e eu também tenho. Só não admito pra ela porque, sei lá, vai que ela descobre alguma merda minha. — Fantasma, você é um caso perdido! — já ouvi Priscila falar um monte de vezes. Mas ela gosta de mim. Mesmo me chamando de psicopata disfarçado, sei que ela confia em mim. E o filho dela, o Davi, é praticamente um terceiro filho aqui em casa. O moleque vive colado na Mirella, mas ela não dá moral. Moleque apaixonado é triste. Suspirei e apaguei o cigarro na parede. Lá embaixo, as risadas já vinham subindo. Era hora de descer. O churrasco hoje não é qualquer churrasco. É aniversário dos meus gêmeos. Dezenove anos. Meu Deus, o tempo voa. Parece que ontem mesmo eu tava segurando aqueles dois, tão pequenos, nos meus braços. Agora, um é mais folgado que o outro. De repente, a voz da Maju cortou meus devaneios: — Leandro! Bora, homem! Tá todo mundo esperando lá embaixo. É ela. Quando Maju chama, até o Fantasma obedece. Senti os braços dela me abraçando por trás, a cabecinha dela encostada nas minhas costas. — Te amo pra cárálho, Maju — falei, virando pra ela e puxando pra um beijo lento. — Também te amo, meu Fantasma. Agora vamos. O Lucas já tá querendo cortar a carne sem você e a Mirella tá perdendo a paciência. Soltei uma gargalhada. — Esses dois... Peguei a mão da Maju e comecei a descer com ela, cruzando as vielas da casa até a parte de baixo. O som do churrasco foi ficando mais forte, aquele cheirinho de carne no fogo já me deu fome. Do meu lado, Canivete já tava com o copo de cerveja na mão, sorriso de orelha a orelha. — Aí, Fantasma, tava faltando o aniversariante dos gêmeos aqui! — gritou Canivete, erguendo o copo. — Tava lá em cima filosofando sobre a vida — respondi, batendo de leve no ombro dele. — Hoje é dia de festa, parceiro. Esquece os problemas. Priscila, que tá sempre na dela, me lançou aquele olhar de “eu sei o que você está pensando” e riu. — E aí, Fantasma? O aniversário é dos seus filhos, mas a gente só vê você fazendo pose. — Pose nada, Pri! Tô aqui de boa, celebrando o milagre que é esses dois chegarem aos 19 vivos. Acha que é fácil ser pai de gêmeos? — Quem não conhece até pensa que você é santo — ela rebateu, rindo. O churrasco rolava solto. Mirella, com aquela cara de quem já queria mandar na p***a toda, estava sentada, mexendo no celular, mas com um olho atento em tudo. Já o Lucas, esse tava rindo, com uma garrafa de cerveja na mão, contando alguma piada sem graça pros amigos. Quando me viu, levantou o copo. — Aí, olha o coroa! Demorou, hein, pai? Achei que já tava dormindo lá em cima. — Dormindo? Respeita que o Fantasma aqui tem mais pique que você, moleque — rebati, arrancando risada de todo mundo. Lucas veio até mim, me abraçou de lado e apertou meu ombro. — Valeu, pai. Hoje é nosso dia, hein? — Sempre é, filho. Mas hoje a gente comemora em dobro. Mirella finalmente largou o celular e se aproximou, dando aquele sorrisinho de canto que entrega mais do que ela gostaria. — Achei que não vinha. Tá sentimental hoje, pai? — ela debochou. — Sentimental nada, menina. Tava só lá em cima pensando em como vocês dois me dão trabalho. Ela riu, balançando a cabeça, mas com aquele brilho no olhar que eu conheço bem. Mirella é durona, mas no fundo, a menina tem o coração que nem a mãe. Só não gosta de mostrar. — Já agradeceu por ter uma filha tão perfeita? — ela provocou. — Filha perfeita que só me dá dor de cabeça. Mas sim, eu agradeço todo dia. Só pra você não se achar mais do que já se acha. O churrasco seguiu com aquela vibe que só a Rocinha sabe ter. Priscila e Maju estavam sentadas juntas, conversando e rindo, enquanto Canivete cuidava da churrasqueira com a maestria de sempre. — Fantasma, prova essa aqui, tá no ponto — Canivete me chamou, me estendendo um pedaço de carne no espeto. — Se não tiver bom, eu te jogo no fogo junto com ela — brinquei, pegando o pedaço. Priscila, que escutou, soltou uma risada. — Que jeito carinhoso de tratar os amigos, hein, Fantasma? Por isso todo mundo te ama. — Minha fama me precede — respondi, piscando pra ela. Enquanto isso, Lucas já tava arrumando uma resenha com os amigos, aquele moleque consegue animar qualquer roda. Eu via ele e pensava no quanto ele puxou meu lado mais leve, aquele que existia antes de tudo isso aqui virar responsabilidade. Mirella, por outro lado, tava ali, séria, observando, como quem já anotava mentalmente tudo o que poderia melhorar ou organizar. — Vocês dois são mesmo a mistura perfeita — murmurei pra mim mesmo, com um sorriso. Maju me viu ali parado, olhando pra eles, e se aproximou, me entregando uma lata de cerveja. — Tá orgulhoso, né? — Sempre. — Eles são nosso maior presente, Leandro. Nossa vitória. — Ela encostou a cabeça no meu ombro e suspirou. — É, dona Maju. Se tem uma coisa que a gente fez certo nessa vida foram esses dois aí. Mesmo com o Lucas sendo folgado e a Mirella mais brava que você. — Ei! Não exagera — ela disse, rindo. — Mirella só sabe o que quer, igual você. — Por isso que eu tenho medo. Essa menina vai dominar o mundo. Ficamos ali, os dois olhando pra nossa família, nossos amigos, nossa casa. É engraçado como a vida muda, né? Tanta guerra, tanta luta, tanta gente que tentou derrubar o que a gente construiu. Mas hoje, aqui, nesse churrasco, só tinha paz. Pelo menos por enquanto. Porque, no fundo, eu sei que a vida nunca para. A paz que a gente tem hoje pode ser ameaçada amanhã. Mas isso? Isso é problema do Fantasma de amanhã. O de hoje tá aqui, celebrando o aniversário dos meus gêmeos e agradecendo pelo que eu conquistei. — Ô, Fantasma! Vem logo tirar uma foto com a família — gritou Lucas, com o celular na mão. — Tô indo, moleque. Segura aí! Peguei a Maju pela mão e fomos até eles. Mirella, mesmo resmungando que odiava foto, entrou na brincadeira. Canivete e Priscila se aproximaram, junto com o Davi, que já tava todo bobo olhando pra Mirella. — Dá uma risadinha, Mirella! Só pra foto sair bonita — provocou o Davi. — Some daqui, Davi — ela retrucou, cruzando os braços, mas com um sorriso de canto que entregava tudo. — Esse moleque ainda vai casar com a minha filha — cochichei no ouvido da Maju. — Não viaja, Leandro! A Mirella não quer saber de ninguém — ela respondeu, rindo. A foto foi tirada. Uma foto simples, mas que representava tudo. Uma família unida, amigos verdadeiros e um dia de paz no meio do caos que a gente chama de vida. Enquanto o som do funk tocava alto e o churrasco seguia, eu fechei os olhos por um segundo, respirando fundo. Hoje era um dia pra guardar na memória. E amanhã? Amanhã, a gente vê o que o mundo tem preparado. Mas hoje, a Rocinha é nossa.
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