CAPÍTULO 20 | MIRELLA
O ar em casa estava pesado, sufocante. Cada vez que eu olhava para a minha mãe, sentada à mesa com os olhos fixos em nada, o peito apertava um pouco mais. Maju, minha mãe, não era assim. Ela sempre foi forte, destemida, cheia de energia para encarar qualquer coisa. Mas hoje, havia algo de quebrado nela, algo que eu não conseguia ignorar. Ela estava abalada de um jeito que me fazia querer segurá-la, trazê-la de volta para o agora, afastar os fantasmas que pareciam tomar conta de seus pensamentos. Esperei ela conversar com a tia Priscila e tentei me aproximar.
Caminhei devagar até ela, querendo ser suave, sem perturbar muito. Eu sabia que qualquer coisa brusca poderia puxá-la de volta de forma violenta. Puxei uma cadeira ao lado dela e toquei seu braço de leve, sentindo a tensão nos músculos.
— Mãe... tá tudo bem? — Perguntei, a voz baixa, quase um sussurro.
Eu sabia que a resposta não seria simples, mas precisava tentar. Ela piscou algumas vezes, como se estivesse voltando de algum lugar distante, e então virou a cabeça lentamente para me encarar. Seus olhos, normalmente tão cheios de determinação, agora pareciam vazios, como se algo dentro dela estivesse mais que quebrado.
— Só estou... cansada, Mirella. Pensando em muita coisa. — A voz dela saiu fraca, quebrada, e aquilo mexeu comigo mais do que eu queria admitir.
Ela nunca foi de se deixar abater, mas agora parecia que o peso do mundo estava sobre seus ombros.
Eu segurei a mão dela, apertando de leve, tentando transmitir um pouco de força. A mão dela estava fria, trêmula, e o coração apertou um pouco mais no meu peito.
— A gente tá aqui com você, mãe. — Falei firme, encarando-a nos olhos. — Seja o que for, você não tá sozinha.
— Isso aí, mãe, pode contar com a gente, a gente te ama e você é nossa mulher maravilha, nada te abala! Dona Maria Júlia! — A voz de Lucas veio logo atrás de mim, com aquele tom despreocupado de sempre, mas que eu sabia que, naquele momento, ele estava tentando ajudar do jeito dele.
Ele puxou uma cadeira do outro lado da mesa e se sentou ao lado dela. O sorriso fraco nos lábios dele era como uma tentativa de trazer um pouco de leveza para o ambiente.
Meu pai entrou na sala em silêncio, o olhar grave, como sempre. Ele não precisava falar para impor respeito ou presença. Bastava estar aqui, eu admirava meu pai demais. Mas nesse momento, até ele parecia preocupado com a minha mãe. Ele se aproximou devagar, puxando a cadeira ao lado do Lucas e se sentando.
— Você precisa descansar, Maju. — A voz dele era baixa, mas firme, como sempre.
Um comando disfarçado de preocupação.
Ela balançou a cabeça de leve, como se quisesse afastar o assunto. Mas era evidente que o cansaço estava em cada linha do seu rosto, em cada movimento lento.
— Acho que estão exagerando... é só um pouco de cansaço, já conversei com a Pri, está tudo bem. — O tom dela tentava ser despreocupado, mas eu conhecia a minha mãe bem demais.
Ela estava longe de estar bem. O silêncio que se seguiu foi sufocante, e todos nós sentimos isso. Eu queria dizer mais, mas sabia que a minha mãe precisava de espaço. Levantou-se lentamente e foi para o quarto, como se carregasse o peso do passado em cada passo.
Eu continuei olhando enquanto ela subia as escadas, sentindo um vazio crescer no peito. Ela não era só minha mãe, ela era a mulher que tinha sobrevivido a tantas coisas, que tinha feito escolhas que ainda a assombravam. Eu entendia isso. Sabia que as sombras do passado dela não iam embora tão fácil. Lucas logo saiu e ficou apenas eu e o meu pai.
— Vamos sair um pouco, Mirella? — A voz do meu pai me tirou dos pensamentos.
Ele estava de pé, me observando com aquela calma inquietante dele.
— Claro. — Respondi, me levantando sem pensar duas vezes.
Sabia que ele queria me ensinar algo, ou talvez me contar mais sobre o que estava acontecendo.
Caminhamos até o terreno nos fundos, onde ele mantinha algumas armas. Meu pai sempre foi um homem de poucas palavras em questão ao crime, mas quando ele me ofereceu uma arma, senti que aquilo era mais do que só um treino. Ele estava me preparando.
Enquanto ajustava o peso do revólver nas mãos, não consegui conter a pergunta que me corroía por dentro.
— O que tá acontecendo com a mãe? — Perguntei, a voz um pouco mais firme do que eu esperava, mas eu precisava saber. — Aquela fraqueza que vi nos olhos dela... aquilo não era só cansaço.
Meu pai ficou em silêncio por um momento, como se escolhesse com cuidado o que ia me dizer. Ele olhou para o horizonte, como quem evita encarar o peso das palavras que vinham.
— A sua mãe... ela tem um passado que ainda pesa, Mirella. — Ele começou devagar, sem tirar os olhos da linha distante. — Coisas que ela fez, que teve que fazer, e que acho que nunca conseguiu deixar para trás. Coisas que eu tive culpa, que ela fez por mim.
— É por causa do Rafael, né? — Perguntei direto, sem rodeios, já sentindo o nome dele trazer uma tensão ainda maior ao ambiente. Eu não sabia ao certo quem era Rafael, mas já tinha escutado algumas coisas, mas nunca foi do meu interesse era passado e deveria ficar lá.
Ele assentiu lentamente, carregando a arma e me entregando de volta.
— Rafael era um policial ... corrupto. Bandido, mesmo que ela não soubesse disso no começo. — Ele suspirou, os olhos escurecendo um pouco ao mencionar o nome. — Ela era noiva dele, advogada. Sempre foi contra o mundo do crime. Mas, naquela época, o seu tio Xamã era meu sub, até que eu fui preso, e sua mãe decidiu me defender, por eu ser inocente, armaram pra mim. Aconteceu o que era inevitável, eu e ela... rolou um clima.
Meu pai deu um sorriso amargo, como se lembrasse de como tudo começou. Mas o sorriso logo sumiu, dando lugar à seriedade que sempre o acompanhava.
— Rafael tentou me matar, várias vezes. Queria acabar comigo de qualquer jeito, mas... sua mãe foi quem o impediu. Foi obrigada a matar aquele filho da putä para salvar a mim e a ela mesma. — A voz dele era baixa, mas cheia de significado.
Eu atirei no alvo, o som do tiro ecoando pelo ar. Meu corpo estava tenso, processando cada palavra. Minha mãe matou o próprio noivo. Sabia disso por cima, claro, mas ouvir meu pai dizer aquilo, ver como ele falava, me fez entender o peso que isso tinha deixado nela.
— Ela nunca lidou bem com isso, Mirella. — Ele continuou, sem tirar os olhos do alvo. — E agora, acho que tudo isso está voltando para ela. Matar alguém... mesmo quando é necessário, nunca é fácil para alguém que não é envolvido diretamente com o crime.
Soltei a respiração devagar, ajustando a arma para o próximo tiro. Minha mãe era forte, mas agora eu via que, por trás daquela força, havia cicatrizes que ela nunca deixou sarar. E isso... talvez nunca a deixasse em paz.
— Ela vai ficar bem? — Perguntei, finalmente soltando a dúvida que me corroía.
Meu pai olhou para mim, com os olhos sérios.
— Ela é mais forte do que parece, Mirella. Mas vai precisar de tempo. — Ele colocou a mão no meu ombro, apertando de leve.
Sabia que ele estava certo. Mas aquilo não tornava as coisas mais fáceis.
Atirei novamente, o som do tiro ecoando no silêncio. Eu só esperava que a minha mãe conseguisse encontrar a paz que tanto merecia. E eu sabia que meu pai não estava me treinando atoa, havia um perigo e isso era claro!