A luz que atravessava as janelas inundava a sala em um convite mudo para que eu saísse dali. Eu não era fã de sol e calor, mas naquele dia que se arrastava lentamente, deitar à sombra do sol forte de São Francisco para dormir me parecia extremamente agradável.
Fui acordado do meu transe pelo sinal, que anunciava o fim da última aula do dia. Meu olhar desprendeu-se da janela, já um pouco mais animado, porém ainda sonolento. Sra. Dancaster acelerou seu discurso e aumentou a sua voz para sobrepor ao barulho que os alunos começaram a fazer. Não nos deixaria ir sem terminar sua fala.
— Quero que todos vocês passem na biblioteca antes de dizerem tchau à escola por dois dias e peguem um livro. E nada de me aparecer com um infantil ou quadrinhos. Quero livros de verdade. 400 páginas para cima — o barulho de passos foi acompanhado pelos murmúrios desanimados dos alunos, reclamando de mais um trabalho de literatura.
Eu fui um dos últimos a sair e Raphael, meu melhor amigo, me seguiu para fora da sala. Segurava seu caderno numa mão e, em outra, seu boné, que ele colocou assim que pisou fora da sala. Porque ele usava boné, eu não sabia, já que seu cabelo loiro e liso me faziam invejá-lo. Quem deveria usar boné era eu.
— Cara, cada dia fica pior — resmungou, com seu tom de incredulidade habitual. — Vai passar lá agora?
— Vamos primeiro aos armários.
O corredor estava cheio, mas as pessoas rapidamente se dissipavam, loucas para irem para casa. Eu também estava.
Retirei minha mochila do cubículo e taquei-a nas costas, fechando o armário. Suspirei. Já que o trabalho era para terça, eu teria que aparar a grama do quintal do Sr. Robinson e da Sra. Pérez com cuidado para não destruir o jardim de ninguém por causa da minha leitura. Sra. Dancaster era louca — essa era a única explicação. Durante um trimestre de aula, tive que ler 6 livros. Essa era minha meta para o ano.
— Vamos para a biblioteca logo — Raphael disse, me arrastando pela alça da mochila pelo corredor. — Guadalupe nos adora, lembra Matt? — Revirei os olhos e bufei. Raphael tinha que me lembrar da bibliotecária que só sabia nos mandar fazer silêncio a cada dez segundos e que tinha uma carranca permanente no rosto.
— Como você é maravilhoso, Ra — respondi irônico, e revirei os olhos.
Tivemos que subir as escadas e virar em um corredor até chegar nas portas nada convidativas de madeira da biblioteca.
Guadalupe nos lançou um olhar mortal quando entramos, como se estivéssemos prestes a sair correndo jogando todos os livros no chão e gritando, apesar de não sermos um dos grupinhos bagunceiros que chegavam e sentavam em cima da mesa, comendo salgadinhos e conversando como se estivessem no refeitório.
Ra fingiu ter ficado amedrontado com o olhar ameaçador, mas deu um riso baixo ao virarmos na primeira estante.
As únicas pessoas que estavam ali eram alunos da minha turma de literatura. Eles não pareciam muito felizes enquanto escolhiam um livro.
Ra sumiu do meu lado, indo para alguma estante. Provavelmente pegaria uma revista em quadrinhos, Sra. Dancaster o xingaria na frente da turma, e ele falaria algum tipo de piada i*****l que arrancaria risos de todos da turma e o deixariam na detenção.
Selecionei alguns livros que me pareciam bons e fui para uma das mesas de madeira que ficavam no centro da biblioteca. Gostava de sempre ler uma parte do livro para ver se era bom.
Depois de cinco minutos, comecei a estranhar a demora de Ra para voltar. Ele costumava apenas pegar um livro aleatório sem olhar para a capa e depois pesquisar na internet sobre ele.
Levantei, indo procurá-lo. No meio de uma das fileiras de livros, ele conversava com uma garota. Ela usava óculos, e tinha um cabelo preto preso em um r**o de cavalo alto. Nunca a havia visto no colégio. Parecia ser mais nova do que a mim, então havia a possibilidade de ser uma novata do primeiro ou do segundo ano.
Escondi-me atrás da prateleira ao lado e esperei Ra sair. Ele não me viu, indo direto para a mesa em que eu havia deixado os livros que estava olhando antes.
Sentei ao seu lado e fiquei aterrorizado ao ver um livro aberto em sua frente. Um livro de verdade, com mais de 60 páginas e sem gravuras. Logo, reconheci a fonte da letra.
— Percy Jackson.
Ele me encarou com um sorriso de canto.
— Me disseram que é bom.
— Disseram quem? A garota?
— Você estava me vigiando? — Perguntou com uma falsa descrença.
— Você nunca demora para pegar um livro.
— Falando em livros — encarou os que eu havia pego para analisar e então voltou seu olhar para mim, segurando um sorriso. —, você devia pedir um conselho sobre eles para a garota da biblioteca.
Semicerrei os olhos para Raphael, mas a ideia de pedir conselho para encontrar um bom livro que eu era obrigado a ler me parecia uma boa ideia, principalmente se a garota de fato fosse “da biblioteca”.
Fui procurá-la e a encontrei entre as mesmas prateleiras, com um livro aberto nas mãos e totalmente concentrada. Sua testa se fincava e ela não piscava um segundo. Dei um sorriso fraco pela atenção dela num simples livro.
Aproximei-me dela, mas ela não me notou.
— Oi — A fala inesperada fez com que ela desse um pulo e olhasse para cima, respirando fundo e ajeitando os óculos quadrados que combinavam com seu rosto. Seus olhos eram pretos como o cabelo, e combinavam com os lábios vermelhos e a pele clara.
— O-oi — ela respondeu, com o olhar confuso sem entender porque eu havia chamado sua atenção. Ficou parada, me encarando à espera de que eu falasse o motivo da interrupção. Neste momento, percebi que eu não sabia como fazer um pedido simples como "poderia me dar a dica de um livro?".
— Meu amigo falou para que... hum, eu te pedisse a recomendação de um livro.
— Ah — ela olhou para o livro em suas mãos e o fechou, suspirando. — Aquele garoto loiro meio doido?
Isso era tudo que eu precisava ouvir para saber que eu não era a única pessoa que notava o quanto Raphael era desequilibrado — bem, eu e a vó dele.
— É, acho estamos falando da mesma pessoa — ela riu.
— Você é igual a ele? Digo, com um profundo d****o de não se envolver com personagens e nem levar mais de dez minutos para chegar ao final?
— Não... Eu gosto de ler. Desde que o livro seja bom, pode ter até 1000 páginas. Único problema é que vou levar alguns meses para terminar.
— Já leu Senhor dos Anéis? — Perguntou me olhando por cima dos óculos com curiosidade.
— Não sou um CDF, não faz o tipo que gosto. Teria algo de suspense ou sobrenatural?
Ela franziu as sobrancelhas, pensando por um segundo. Sua postura, roupa e expressões passavam um ar intelectual, me fazendo questionar se ela seria o tipo de adolescente que passava o dia estudando e lendo livros. Seu rosto de traços leves a faziam parecer ser bem nova.
— Quantos anos você tem? — Soltei a pergunta antes que pudesse segurar a minha língua. Ela me encarou por um segundo, surpresa e então franziu as sobrancelhas, certamente se perguntando se deveria me passar essa informação.
— Quinze — antes que eu pudesse fazer outra pergunta, ela se afastou, e entrou em outro corredor. — Eu acho que sei um bom para você.
Segui-a e observei seus olhos passarem pelas prateleiras entulhadas de livros, procurando algum título específico.
— Aqui — disse, e esticou-se para cima, ficando nas pontas dos pés e estendendo o braço, puxando um livro grosso. Ela devia ser uns dez centímetros menor que a mim. Eu não era muito alto, então quase a podia considerar baixinha.
Ela o estendeu na minha direção.
— O Jogo do Anjo — disse.
— É bom? — Perguntei, olhando a capa e passando meus dedos sobre ela. Era atrativa.
— Leia e decida por si. — Desviei meus olhos para a garota, e nos encaramos por alguns segundos, até que ela deu um sorriso pequeno em despedida e virou-se para ir para outro lugar. Voltei meus olhos para o livro, e virei-me para ir até as mesas, aonde Raphael devia estar me esperando.
— Ela é bonita, não? — Ele me perguntou, me dando um sorriso não muito confiável, quando voltei ao seu campo de visão. — Sem contar que é inteligente.
Bati na sua cabeça com o livro ao perceber o que ele queria dizer, e o porquê de ter me falado para ir até a garota.
— Ela só tem 15 anos — argumentei, puxando a cadeira ao seu lado e me sentando.
— E você tem quantos, vovô?
Revirei os olhos.
— Pare de tentar jogar garotas para cima de mim, Raphael.
Guadalupe apareceu por entre uma das fileiras, nos olhando acusadora com sua visão de raio laser que queimava as orelhas. Voltamos a atenção para os nossos livros, fingindo estarmos imersos no que eles diziam. Guadalupe já nos conhecia por conversas paralelas na biblioteca, geralmente de poucas palavras e voz baixa, portanto, cerrou o olhar para nós como se avisasse: "que seja a última vez" e se virou, voltando para as estantes.
— Vamos embora logo — sussurrei, pegando minha mochila jogada no chão e me levantando.
— Não vai dizer tchau para sua futura namorada? — Ra riu baixo com sua provocação e suspirei.
— Vamos logo.
Nós caminhamos pelos corredores vazios, conversando, mesmo que eu tivesse que dividir a atenção de Raphael com o celular. Diferente de mim, que apenas me mantinha no meu nicho de amigos, Raphael era solto, pulando de galho em galho dessa árvore chamada colégio, sem ser rejeitado por quase qualquer g***o de estudantes — digo quase, pois a falta de papas na língua o havia feito dizer coisas que o g***o do jornal da escola não gostou nem um pouco.
Isso rendeu a Raphael uma semana de boatos na coluna de fofoca, mas infelizmente não foi suficiente para que grande parte das pessoas que fazia amizade com ele visse o quanto ele podia ser s*******o na maior parte do tempo.
O felizmente era que isso não impedia nossa amizade. Ele me dava carona de ida e volta para o colégio enquanto eu juntava o dinheiro para o meu carro, sempre sentava comigo nas aulas que tínhamos em comum e até mesmo estava sempre disponível para o que eu precisasse. Em retorno, eu o ajudava na escola, ouvia suas piadas ruins e dividia o meu Doritos com ele. A verdade era que no meu círculo de amigos Raphael era o único com quem eu realmente conversava.
Nós fomos o caminho discutindo sobre o papel fundamental do bacon em um hambúrguer enquanto eu tentava desviar de qualquer piadinha que ele pudesse fazer relacionada à recém-conhecida garota da biblioteca, cujo livro que me indicara estava bem em minhas mãos, e não na mochila.
Quando Raphael parou, eu havia ganhado a discussão com o maior número de argumentos a favor de existir a mesma quantidade de hambúrgueres sem bacon quanto com e ele havia feito uma aposta consigo mesmo de que eu namoraria a garota.
Eu desci do carro, revirando os olhos. Entrei na minha casa, deixei minha mochila e o livro, e segui para a casa da minha vizinha, Dona Gertrude, de 85 anos e 6 cachorros para eu passear três vezes por semana. Geralmente eu passeava com eles na quinta, mas como ontem havia tido uma dessas chuvas de verão, o passeio havia sido adiado para hoje.
Ao que batia a campainha, pensei no quanto preferia 10 vezes mais começar o livro a catar c**ô de cachorro, mas minha carteira — e meu pai — discordava disso.