Como pude ser tão cega?

2384 Words
Minha vida como esposa de Rogelio tem sido um sonho. Nunca tinha conhecido um homem tão atencioso e cheio de detalhes. Lembro quando meu pai descobriu meu casamento e veio reclamar pela minha decisão, mas lá estava meu esposo, não hesitou em me apoiar, claro que meu pai foi embora irritado, porque seus planos de continuar recebendo um cheque dos Bercelli todos os meses foram por água abaixo. Eu me sentia cada vez mais confortável, e assim se passaram dois meses, quando numa manhã Will interrompeu meu quarto. — Ana! — exclamou com o rosto pálido e aterrorizado — Meu senhor... O senhor Rogelio não acorda! Meu coração temeu o pior, e sem pensar, tirei os lençóis de minhas pernas para sair da cama. Efetivamente, Rogelio não acordava, e lágrimas banharam minhas bochechas, mas quando senti seu pulso, corri para o celular para chamar uma ambulância. Ele foi transferido e atendido, enquanto eu ficava na sala de espera, contando com a companhia de Will, que pela primeira vez desde que o conheci, estava tremendo. — Vamos pedir para que ele se recupere disso. Mas Will negou com os olhos brilhando em lágrimas. — É a quinta vez este ano, meu senhor está cada vez pior, sinto que o momento de nos despedirmos está próximo. Eu não sabia o quão m*l Rogelio já tinha ficado antes, mas tinha notado que nos últimos meses sua saúde estava se deteriorando. De repente, o médico saiu com o relatório em suas mãos, imediatamente me apresentei como sua esposa. — Me diga, ele vai se recuperar? Mas o médico apertou os lábios e tirou os óculos. — Sinto muito, mas não há mais nada que possa ser feito. O paciente entrou em uma fase irreversível, lhe resta muito pouco tempo. Will e eu nos abraçamos, a dor era mútua. Isso não podia ser real. Rogelio não podia estar passando por isso. Um homem tão bom como ele deveria ser eterno. — Quanto tempo? — perguntei, temendo ouvir a resposta. — Uma semana, talvez duas — respondeu — Se vocês quiserem, podem deixá—lo aqui, ele será muito bem cuidado. — Deixá—lo? De jeito nenhum — recusei. — Não estou falando de abandoná—lo, quero dizer que assim ele poderá ser cuidado pelas enfermeiras e você terá mais tempo para si mesma. — Escute, eu não... — Desculpem, o paciente está acordado, pede para ver sua esposa. — É você, Ana. Meu senhor precisa de você. Olhei para o médico, e ele assentiu. Quando vi Rogelio tão pálido e com olheiras grandes sob seus olhos, estive prestes a chorar, mas isso não faria bem a ele. — Vou deixá—los a sós — disse a enfermeira antes de sair. — Aproxime—se, Ana — ele me pediu, mostrando um sorriso cansado. — Aqui estou — peguei suas mãos e sorri segurando minha tristeza — e aqui estarei. Mas de repente, ele afastou uma de suas mãos e tocou minha barriga ainda imperceptível. — Desejava tanto conhecer o bebê. Colocando minha mão sobre a dele, concordei com energia. — E você vai, vai segurá—la em seus braços, vai amá—la tanto como eu amo — solucei, mordendo meus lábios. — Não chore, olhinhos — ele me pediu — Meu tempo se esgotou, sei que logo vou deixar este mundo. — Não diga isso, aqui farão tudo o que for possível para te curar, e quando estiver melhor, iremos para casa. — Ana, eu estou ciente de tudo. Sei da minha condição melhor do que ninguém. E sabe de uma coisa? Não tenho medo da morte, mas quero escolher onde partir. — Rogelio... — Quero viver meus últimos dias com você, quero me despedir da casa que me viu crescer, onde passei os melhores dias da minha infância com minha mãe. Ana, me ajude com esse desejo. Me inclinando levemente, beijei sua testa e depois acariciei suas bochechas e assenti. ... Com a pouca mobilidade de suas pernas, Rogelio voltou para casa numa cadeira de rodas. Todos tentamos disfarçar que tudo estava bem, mas estava claro que não estava. Will costumava fugir para os banheiros, onde costumava ouvi—lo chorar. Claro que Rogelio percebia tudo, mas nunca dizia nada, estava sempre sorrindo. Então, dediquei os próximos dias a cuidar dele e a não deixá—lo sozinho. Dávamos pequenos passeios no amplo pátio junto ao jardim de flores, nos enchendo do sol quente da primavera e conversando sobre coisas simples, mas belas na vida. — Agora entendo de onde vem esse aroma — ele sorriu, enquanto pegava uma flor de seu jardim — As gardênias, seu aroma é como o dessas flores. Essa comparação trouxe uma leve lembrança, de alguém que também costumava falar do meu aroma, Belial, mas sacudi rapidamente meus pensamentos e me concentrei em meu esposo. — Você realmente acha isso? — perguntei, sentando—me na grama. — É muito relaxante. Gosto de você... Eu pensei que ele tinha se enganado ao falar, pensando que queria dizer que gostava do meu aroma, e não outra coisa, no entanto, suas mãos chegaram aos meus ombros. — Ana, gosto de você — disse, eu me ajoelhei para levantá—lo e responder, mas ele silenciou meus lábios, colocando um dedo neles — Não peço reciprocidade, seria uma loucura. Mas é verdade, não estou dizendo que te amo, porque é muito cedo para dizer isso… —Aqui trago um pouco de refrigerante —disse Will, trazendo os copos. Ao provar um deles, senti o doce no meu paladar e imediatamente tentei impedir que Rogélio bebesse. —É doce, vai te fazer m*l. —Não tem problema, tenho me privado de tantas coisas desde que descobri minha doença, agora só quero aproveitar pela última vez. Will e eu trocamos olhares e ele concordou com a cabeça, saindo com a bandeja e os copos vazios. —Como é bom... —suspirou, vamos fazer isso sempre, pelo menos pelo tempo que resta. Como eu poderia negar? Com todo o prazer do meu coração, aceitei. Os dias continuaram passando e desde que Rogélio tinha voltado para casa, já havia se passado um mês. Dentro de mim, havia esperança de que o médico estivesse errado. Então, numa tarde, enquanto olhávamos o pôr do sol, sua mão se entrelaçou com a minha e me senti tão confortável. Ouvia o barulho dos pássaros cantando e o vento balançando as folhas das árvores, era como música, então eu me levantei. —Já sei, tenho uma ótima ideia —disse entusiasmada—. Vamos dançar. —Dançar? Mas não tem música. —Claro que tem, escuta, é a natureza que nos dá a melodia —sorri. Rogélio compartilhou meu entusiasmo e entrelaçando nossos dedos, dançamos no pátio, pareciamos duas crianças brincando, era uma maravilha e ele começou a rir às gargalhadas, até que sua tosse pôs fim ao nosso momento de diversão. —Desculpe, não deveria ter feito você se esforçar. —Está tudo bem, não se preocupe... Eu fiquei engasgado com o vento, é só isso. Levamos alguns segundos até que ele recuperou o fôlego em seus pulmões, era difícil para ele manter a mesma energia. —Gostei de dançar com você, não me diverti assim há anos —confessou. —Nunca dançou antes? —Costumava dançar, minha mãe era uma ótima bailarina, se chamava Vera, gostava do espetáculo e das luzes, mas depois que ela morreu, perdi a vontade de fazer o que antes eu gostava. Tive uma vida difícil e cometi muitos erros, até que isso me aconteceu. Minha vida teve muitos altos e baixos, Ana. Mas graças a você, tive essa estabilidade que buscava. Você e seu bebê trouxeram alegria para a minha vida. —Eu e o bebê estamos felizes por ter te conhecido, e amanhã tenho meu ultrassom, vou te mostrar como ele está crescendo, você quer me acompanhar? —Adoraria, mas e o pai dele? —Tenho ele bem na minha frente. Rogélio me mostrou um sorriso largo, levando seus dedos à minha bochecha. —Vou adorar dar meu sobrenome a ele e ficaria encantado que me chamasse de pai, mas lembre—se de não se descuidar. Seja forte, dê o seu melhor e não tenha medo da solidão. —Por que está dizendo isso? —Só me prometa que nunca vai desistir, a vida costuma ser difícil, Ana. Eu sei disso, e é fácil ter amigos quando se tem tudo, mas quando você está arruinado, esses amigos desaparecem e você fica só. Você é forte, Ana. Nunca esqueça disso. ... No final... O diagnóstico do médico se cumpriu. Rogélio foi embora na manhã seguinte, seus olhos nunca mais se abriram e minha vida, que estava começando a tomar sentido, desmoronou. No funeral, percebi a solidão que Rogélio tinha, só estava presente seu amigo médico e o advogado que me deu o endereço de um lugar que eu não deveria esquecer, e que em breve nos encontraríamos novamente, enquanto ele resolvia alguns assuntos legais. E como se Rogélio tivesse pressentido o que aconteceria, na manhã seguinte ao seu funeral, chegaram umas senhoras acompanhadas por vários homens de terno. Quem eram? A tia e as primas de Rogélio, junto com advogados que reivindicavam a casa e outras propriedades do meu falecido marido. A raiva me cegou e naquele momento fui tão grosseira que até Will se surpreendeu. Nenhum deles tinha aparecido durante a doença do meu marido, agora eles vinham como abutres tomar o que achavam que tinham direito. É claro que eles foram ainda mais grosseiros e, aproveitando—se de artimanhas, me apresentaram um documento onde se colocavam como herdeiros, não importando que eu fosse a viúva. Num abrir e fechar de olhos, minhas coisas estavam novamente do lado de fora, me instalei em uma pequena casa que estava em meu nome, era o endereço que o advogado me tinha dado, mas a diferença era que Will estava comigo. Rogélio tinha razão em falar de sua lealdade. Juro que eu tinha toda a intenção de lutar, mas minha doença começava a me derrotar e, somada à gravidez, estava difícil continuar. Eu tinha apenas quatro meses de gravidez e minha aparência estava se deteriorando. Eu estava mais magra, pálida, com olheiras, a depressão estava piorando as coisas e Will percebia, houve noites em que ele literalmente teve que me levar ao banheiro para vomitar a comida que eu não conseguia ingerir. Foram dias terríveis, mas eu tinha que seguir em frente. Depois das minhas aulas na universidade, eu ia me apresentar em lugares onde precisassem de trabalhadoras, mas quando viam meu estado, muitos me rejeitavam. Eu estava no meio do nada, e como se o destino continuasse me testando, tive que me encontrar com as pessoas que menos queria. Saí do médico com notícias de que minha doença estava piorando, e era verdade. Estava tão m*l que temi perder meu bebê. Usava roupas escuras e largas para que ninguém percebesse minha aparência, até mesmo cobria meus olhos com óculos para me manter em mistério. Mas na minha fraqueza e cansaço, parei para descansar fora do hospital, testemunhando a presença de Belial, descendo do carro com Ratja. Imediatamente cobri meus olhos e fingi não conhecê—los, não ia deixar que me vissem nesse estado, não ia dar a eles o prazer de me ver doente. Belial passou por mim sem me notar, deixando Ratja esperando, foi então que a vi roer as unhas nervosamente e pegar seu celular para ligar para alguém, não sei o que estava planejando, mas já não importava, tudo que fiz foi seguir em frente, pensei que ele não me reconheceria, mas quando passei por ele, ele puxou meu ombro. —Você está nos seguindo? —ele disse com a testa franzida e a mão tremendo. —Por que eu deveria te seguir? —Escuta, eu não quero que você esteja perto de nós. Belial vai se casar comigo em breve e nada vai impedi—lo. —Ótimo, vocês são dois iguais, mas não me peça para te parabenizar. Ao contrário de você, eu não sou hipócrita. Virei as costas, pretendendo me afastar de sua presença, mas ela se recusou a me deixar em paz. —Toda abatida e sem graça, agora entendo o motivo de Belial ter buscado em mim o que não encontrou em você. —Ah sim? E isso deveria me fazer sentir m*l? Talvez eu esteja abatida, mas isso é externo. Você é bonita por fora, mas por dentro é horrível e nenhuma maquiagem pode mudar isso —ao dizer isso, Belial saiu do hospital e assim que ela o viu, se contorceu de dor. —Ai! —ela reclamou tocando sua barriga—. Belial! —gritou. Ele correu para socorrê—la e ao perceber minha presença, me olhou surpreso. —O que está acontecendo, você está bem? —Belial, meu bebê, algo r**m está acontecendo com meu bebê —ela disse, continuando a se contorcer e reclamar. —Como assim? Você estava perfeitamente bem um tempo atrás. —Ana me atacou, ela disse coisas cruéis. Não quero perder nosso filho, por favor, afasta ela de mim. —Eu apenas disse a verdade, minha consciência está tranquila. Não a ataquei, além disso... —Cala a boca! —exclamou Belial com raiva—. Se algo acontecer com meu filho, eu juro que nunca vou te perdoar e será culpa sua a morte de um ser inocente. Reze para que meu filho esteja bem. —Eu não fiz nada, nunca... —Com certeza não foi suficiente ter o seu marido, agora você quer destruir a Ratja... —suas mãos apertaram meus ombros com força, provavelmente deixando marcas—. Mas eu vou protegê—la, você não significa mais nada para mim. —Me solta! —me livrei de suas mãos nos meus ombros. Não me importava mais o que ele dissesse, mas me acusar de ser uma assassina, isso nunca permitiria, então virei as costas. —Para onde você pensa que está indo?! —ele se atreveu a perguntar. —Desculpe, mas eu não te conheço —foi minha resposta, me afastando dos dois. Como pude estar casada com um cara assim? Meu Deus, como fui cega ao ser sua esposa.
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