Fragmentos de Dorotéia Guley
Eu tinha tudo:
uma família
um lar e felicidade.
Mas a guerra me tirou tudo isso em um piscar e abrir de olhos.
Eu não era um soldado, mas estive na guerra.
mas quando a guerra estourou, ela assolou o meu coração e o meu corpo, cada lugar dele ficou marcado.
Não foram os estilhaços de uma bomba.
não foi um tiro..
Eu acho que seria menos dolorido se assim fosse.
Eu ainda posso sentir.
Eu ainda posso tocar no medo e no meu p@vor.
Quando eu me vi cercada de soldados.
Eu não temi, eu cresci ouvindo que eles estavam ali para me proteger, para proteger quem precisava de proteç@o.
Eu acreditava, mesmo durante a guerra, eu acreditava.
Mas naquele dia, eu conheci um dos horrores da guerra, a guerra não mata somente os soldados, não mutila somente os soldados, mutila quem está perto também.
Eu acabei estendida e morta no chão, mas eu ainda respirava, eu ainda respirava.
Cada pedaço do meu corpo doía, cada pedaço do meu corpo gritava de dor e pavor, eu desejei que eles me matassem, mas fui deixada ali, um pedaço do que eu já fui, a sombra do que um dia eu fui.
Eu me arrastei para casa, os meus pais e irmão cuidariam de mim, mas quando eu cheguei lá,eles não mais existiam, um bombardeio, um bombardeio, o que mais me restava?
É possível morrer duas vezes? Era, e eu morri. Perdi as contas de quantas vezes eu morri.
Uma vizinha me resgatou do meio da rua, me arrastou para casa e cuidou de mim, mas eu queria ter ido com eles, com meu pai, com meu meu irmão e a minha mãe.
Eu gritava.
Nem sei por quanto tempo eu gritei.
Eu não podia ver uma farda, eu não podia escutar passos.
Eu não podia continuar em terra ucraniana, e uma amiga que estava no Brasil me resgatou.
E um anjo rígido me acolheu em sua casa.
A amiga era Paloma Frank Cavallari
E o anjo era Lucrécia Frank. Era de fato um anjo rígido, mas foi ela que me fez lúcida novamente.
Foi assim que a minha vida se entrelaçou com a vida de Rebeca Mubarak.
Duas almas quebradas, duas mulheres sem família e acolhidas pela família Frank.
Nós duas só desejávamos permanecer ali, na casa de vila, uma vila ucraniana, seguras e protegidas contra o mundo.
Mas nem tudo é como a gente quer e às vezes, o dragão com os seus olhos em chamas nos faz sair da concha, isso porque o fogo dele nos queima, mesmo que a nossa água seja gelada e nos afogue.
Em todo caso.
Sempre há uma lenda. E em toda lenda, uma princesa é entregue ao dragão para aplacar a sua fúria, e quando o dragão tem um irmão gêmeo.
A oferenda precisa ser dupla também.
E eu e Rebeca éramos a oferenda de Salomão e Callebe Martins.
(....).....(......)
Dorotéia estava deitada em posição fetal. Nos últimos dias revivia e revivia o pesadelo que viveu.
E não ouve príncipe ou herói para resgatá-la.
Quem nunca leu a narrativa clássica de um príncipe destemido? E que enfrenta perigos inimagináveis para resgatar a princesa das garras ferozes de um dragão? Mas nessa lenda dos cavaleiros Malignos, não há príncipe, nem muito menos cavaleiros. Muito pelo contrário.
Aqui não temos só um monstro maligno, mas dois dragões. E a lenda é mais sombria.
Está certo que Callebe e Salomão não são aqueles seres ameaçadores de escamas impenetráveis, mas sim dois homens, com armaduras forjadas em ferro e no sangue dos inimigos.
Aqui não há espaço para mocinhos convencionais, pois Callebe e Salomão precisam encontrar uma maneira de alcançar Rebeca e Dorotéia, e de quebrar as barreiras construídas pelos traumas de cada uma delas.
O resgaste das princesas aqui não existe.
Mas talvez elas queiram fugir.
Quem será mais forte nessa batalha épica?