Dor

822 Words
Vinte dias depois. Diário de Dorotéia Dear, Corine Salomão tentou de todas as formas. Eu o conheci alguns meses depois que cheguei da Ucrânia. Aceitei que ele se aproximasse, porque foi um pedido daqueles que me salvaram dos pesadelos da guerra. Se eu dissesse não a Salomão, Richard e Rosimeire Frank seriam mortos. O acordo pela vida dos Frank foi: Callebe se aproximava de Rebeca e Salomão se aproximava de mim. Eu pensei que Salomão desistiria de mim, assim que visse o quão quebrada eu era. Rebeca pensou que Callebe desistiria dela, mas isso não aconteceu. Primeiro ele me contratou como babá da filha dele. Estela parecia uma boneca, era leve em meus braços, e eu me apaixonei, mas Salomão queria mais, ele queria bem mais e me pressionou.. Eu corri, corro, mas parece que os passos dele são bem mais largos que os meus, e sempre me alcançam. Eu escrevo sobre os meus medos e traumas como medida terapêutica. Isso me faz desabafar sem verbalizar as lembranças, porque se eu disser em voz alta, eu fico maluca, mais uma vez. Mesmo depois desses anos. De tudo que eu lutei para superar. Eu ainda estou presa lá, na dor, na solidão do ataque e na prerrogativa que eu poderia ter ido junto com a minha família. Eu poderia ter partido com os meus pais e irmão. Não haveria dor e nem essa pressão que sinto em meu peito cada vez que penso em Salomão Martins. Eu ainda me lembro da primeira vez que eu o vi, da primeira vez que os olhos dele pousaram nos meus. E a primeira vez que eu o vi em cima da moto, me olhando como se fosse uma caça, eu quase gritei, mas se eu gritasse, eu não pararia mais, Corine. Eu gritaria enlouquecidamente. E dona Lucrécia teria que me trazer de volta. Sabe, Corine, na primeira noite na casa de Lucrécia, eu gritei, gritei até que o dia já amanhecia. Os médicos diziam que era uma crise histérica, ou transtorno de estresse pós-traumático (TEPT),o mesmo que acometia a maior parte dos soldados. Como você sabe, Corine, eu nunca fui um soldado, nem mesmo uma enfermeira de guerra, mas a guerra me assolou. Como eu estava contando, na primeira noite em solo brasileiro, eu gritava e gritava, já estava rouca. Rebeca tentou me acalmar de todas as formas, e não conseguiu. Dona Lucrécia entrou no quarto, me deu t@pa forte, firme, e arregalei os olhos. Eu podia sentir para além da dor do ataque, para além da dor da perda. _ Não pode gritar o tempo inteiro. Alguém vai chamar a polícia. Polícia, farda. Eu não queria. _ Eu só bati em você para parar de gritar E eu parei, era grata pela ajuda. Depois que a dona Lucrécia saiu, Rebeca me abraçou, Corine, e nossa amizade começou exatamente nesse momento. São mais de três anos com uma melhor amiga, mas já são também mais de três anos fugindo de Salomão. E Rebeca fugindo de Callebe. Eu fujo Eu não quero um relacionamento, eu ainda posso sentir o medo e a dor, mas no fundo eu gosto dele, mas eu escondo, com toda a minha força. Mas o Salomão me quer. E eu quero a filha dele como se se ela fosse a minha própria filha. A doce menina de olhos n£gros que me faz sentir a mínima vontade de viver. Mas tudo gira ao redor de Salomão, parece que até mesmo o tempo, é ele quem comanda, do alto do pedestal do seu clube. O calendário dragão rege a vida do Clube e quer reger a minha. (....) Dorotéia guardou a caneta e a folha com o emblema de uma moto e de um motoqueiro. As folhas foram presentes do pai de Estela, mas parecia conter o perfume do pai da menina. Foi cuidar do jardim que tinham. Gemeu ao se abaixar. O que restou do s£io doía sempre que fazia um movimento mais brusco, sempre que o tempo esfriava. No banho, se a água estivesse quente ou fria demais, era incômodo. Se o tecido da roupa fosse um pouco mais áspero não conseguia usar, porque o s£io dava fisgadas intensas. Rebeca insistia para que ela procurasse ajuda médica Parecia uma contradição, Salomão era médico, já havia tentando examiná-la, mas ela sempre dizia não. Paloma Cavallari, a filha de Rosimeire e Richard Frank, era uma amiga leal também. Foi Paloma que providenciou o resgate dela do horror da guerra. Na tentativa de ajudar, Paloma marcou várias consultas, mas Dorotéia sempre fugia. Algumas vezes, chegava na porta do consultório e desistia. Paloma a levava de volta, conversava, tentava, a abraçava. Lucrécia Frank, recriminava a neta por passar a mão na cabeça de Dorotéia. Lucrécia afirmava que traumas como aqueles, era preciso ser tratado com severidade, não com doçura, talvez Lucrécia estivesse certa. Mas Dorotéia não se sentia pronta. Mas Salomão não estava disposto a esperar mais
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