Capítulo 02

1799 Words
“Grandes coisas são feitas por uma série de pequenas coisas reunidas.” - Vincent van Gogh ✽ ✽ ✽ KALI LEMAIRE — Eu não acredito que não tenha acontecido nada demais — Valery diz, sentando-se ao meu lado no sofá. — Por quê? — Você não trocou nenhuma palavrinha com ele? Sei lá... não notou nada estranho? — Ele tem um desenho de uma coruja na parede. — Eu não quero saber de coruja nenhuma, Kali! — Então não posso te ajudar, Val. Eu não sei de nada. — Ah, me poupe! Eu não quero saber de nada sobre esse cara. Já basta o Adam. Mas que você está me escondendo alguma coisa, isso está. — Não estou. — Está, sim. — Não. Fica tranquila. Seguindo o mesmo raciocínio que usarei com Donovan, omito da Val a parte do meu desentendimento com Andy Montgomery. Conheço-a muito bem e sei que é totalmente possível que decida ir até ele fazer alguma ameaça se souber do que aconteceu. E aí seremos processadas. Apesar de ter 1,55m e um rostinho delicado, Valery Blake consegue ser incrivelmente assustadora quando quer. Ademais, também prefiro não dizer nada sobre o motivo do meu fracasso na venda. Não quero ela e o Adam ainda mais preocupados comigo. Até porque, se isso acontecer, minha família vai ficar sabendo. E o número de pessoas preocupadas vai dobrar. Não que seja inteligente da minha parte lidar com isso sozinha. Sei que preciso conversar com alguém e uma hora vou ter quer parar de fugir. Acontece que desabafar sobre meu defeito de fábrica nunca é agradável a meu ver. Não sou boa com emoções, muito menos em expressá-las. Mandei um cliente importante para o inferno — ok que ele mereceu — entretanto, já cruzei com várias pessoas desagradáveis e nunca cheguei no ponto de abandonar um objetivo da forma como fiz. Meu humor não está dos melhores, ando irritada e isso não é do meu feitio. Maldito vício que me tirou até mesmo quem eu era. ✽ ✽ ✽ — Isso não podia ter acontecido, Kaliyah! Mantenho meus olhos no Donovan com medo de que ele possa desmaiar a qualquer momento. Estamos no segundo andar da Splendor, na sua sala, onde ouço um sermão há umas duas horas e considero comprar um calmante — não para mim, mas para ele. Donovan é a pessoa mais focada que conheço. Nunca falta, nunca aceita que cometeu um erro. Exige o máximo de si e de todos nós. Não que ele seja uma pessoa r**m. Pelo contrário. Gosto muito do meu chefe. Mas neste momento em específico considero acertá-lo com uma barra de ferro. — Donovan, eu não tenho culpa se o cara desistiu da compra no último minuto. — Você devia ter insistido mais, mostrado a variedade que temos, a nossa qualidade... qualquer coisa! — Bom... eu tentei. — E voltou com a maleta intacta! Controlo o impulso de revirar os olhos. — Acho que nem eu e nem ele estávamos em um bom dia. — O que? Bom dia?! Que história é essa de bom dia? Não, não! Seja bom dia, mau dia, péssimo dia, gostoso dia, desgraça de dia... o nosso trabalho é vender! Ergo uma sobrancelha. — Mas que belo slogan. — Não faça piadinhas. — Desculpa. — Você tem talento, Kali... principalmente com os clientes mais exigentes. Eu contava com você pra isso. O que aconteceu? "Mandei ele pro inferno." Mantenho a decisão de não contar a parte da discussão com o cliente idealizado. Sei que fui imprudente e impulsiva, e não quero perder meu emprego por isso. Já tive danos demais. Mas o que é a vida senão uma grande quantidade de danos? "Ah, que seja!" Não preciso de mais problemas agora. Não mesmo. Enfim. A parte boa do surto do Donovan é que mesmo sem perceber ele acabou me distraindo e minha vontade de beber se dissipou um pouco. — Não sei, ok? Eu não sei. — É o Insigne Bilionário! Eu sempre imaginei esse cara como nosso cliente. E agora... Afasto meu cabelo do rosto, jogando-o para trás. Minhas mechas são tão escorregadias que uma presilha não resolveria de nada. — Eu estraguei tudo. Pode dizer. — Olha, eu nunca duvidei da sua capacidade. Eu sei que você é boa. Nunca tivemos problemas. Eu só... Isso era importante, tudo bem? — Eu sei que era. E você sabe como eu amo o meu trabalho. — Sei. E eu admiro isso em você. O seu carisma é a chave do sucesso nessa profissão. Tanto é que grande maioria das clientes exige você. Verdade. Fiz muitas amizades nesse ramo. Às vezes, chegava em casa tarde da noite porque as clientes ficavam conversando comigo — não só sobre a compra, mas também sobre suas vidas pessoais. Eu sempre gostei de ouvir e de observar a empolgação de alguém em uma conversa. Gosto de lidar com pessoas de diferentes comportamentos e gostos. É por isso que escolhi o que faço hoje. Não tem só a ver com a grana, tem a ver comigo e com o que estimo. — Me desculpa — peço, mas sai mais como um sussurro. Donovan suspira pesadamente. — Só seja mais calculista da próxima vez. — Eu vou ser. ✽ ✽ ✽ Respiro fundo antes de empurrar a porta de vidro. O lugar é comum, aparentemente. Se alguém olhar do lado de fora parece simplesmente uma sala. Só uma sala de estar com quadros, um tapete e vasos de flores. Tento ignorar os olhares que recebo enquanto me sento em uma das muitas cadeiras que formam um círculo. Ashley, a líder do grupo, diz um "olá" para mim, sem som, apenas movendo os lábios. Um homem de meia idade se levanta. É alto e magro, usa um suéter marrom e uma boina, e tem uma aparência cansada. Nunca o vi antes. — Eu tenho cinquenta e quatro anos... Sou alcoolatra há treze. Eu perdi família, emprego... tudo. É como um furacão... Quando percebi éramos só eu e o vício. Não existia mais nada... Então fiquei sabendo desse lugar por uma vizinha e decidi vir... porque ter fé pode ser a última coisa que me restou. Eu não bebo desde ontem de manhã. Não é fácil. — Seja bem-vindo — dizemos juntos. Percebo que após voltar a se sentar, o senhor olha para todos os integrantes. Ergo um canto da boca quando noto seus olhos em mim. Ele retribui meu gesto, abatido. Compreendo-o, afinal já estive no seu lugar. Desnorteada. Destruída. Sem esperança. Recorrendo a pessoas desconhecidas com problemas semelhantes que talvez possam ajudar. Não, não é fácil. Porém, quando você finalmente esclarece para si mesmo que precisa de apoio e que não vai conseguir se levantar sozinho... pode parecer que não, mas um grande passo foi dado. É por esse passo que se inicia. Depois, vêm os próximos: um de cada vez. São muitos, no entanto você já saiu do início. E é aí que se percebe o quanto este passo, mesmo que mínimo, pode ser tão significativo por toda uma caminhada. ✽ ✽ ✽ ANDY MONTGOMERY Mas onde é que eu estava com a cabeça? Não consigo me esquecer do rosto daquela mulher — pior, não consigo esquecer de como a tratei. Sempre sou cuidadoso em questão de não misturar a vida pessoal com a profissional. Mas Balker conseguiu realmente me tirar do sério. E por causa disso perdi totalmente a razão. "Kaliyah Lemaire..." O nome ficou gravado na minha mente. E pretendo mantê-lo até consertar a besteira que fiz. Gravei também seu rosto delicado; o cabelo liso, escuro e de fios finos; aqueles olhos sem rumo da cor da meia-noite... Sua postura era rígida, embora ela parecesse estar a beira das lágrimas. Claro, como esperar outra reação? Questionei todas as suas capacidades, duvidei delas. Fui muito direto em dizer que Kaliyah não tinha experiência para exercer sua profissão, como se eu fosse algum tipo de autoridade para designar isso. Fui um arrogante, um verdadeiro b****a. Provei ser tudo o que John Balker me acusou. Porém, no momento, minha preocupação não é ele. Não é com ele a minha dívida. "Não esqueço as pessoas com facilidade, principalmente quando fui eu a errar com elas..." Depois que recuperei a calma fiquei me perguntando como pude tratá-la daquela maneira. Quanta tirania da minha parte descontar minha fúria em uma pessoa que nem ao menos conheço e nada tinha a ver com meus problemas. Ela parecia tão perdida... Claramente estava passando por um momento difícil ou algo do tipo. Parecia precisar de ajuda. Ainda assim, se esforçou para me apresentar sua oferta. E eu fiz o que? Praticamente a expulsei daqui. Me recordo perfeitamente da sua voz rouca... Acho que ninguém nunca me mandou para o inferno com tanta vontade. Mulher ousada. Apesar de aparentar estar tão vulnerável, ela não facilitou para mim em momento algum. Sei que provavelmente não vai querer me ver nem pintado de ouro, mas acontece que encontro tudo aquilo que decido procurar. Questão de honra. ✽ ✽ ✽ Assim que chego na matriz, meu ímpeto é ir até Petal, que como de costume está focada nos seus afazeres. Os dedos de uma mão digitam com rapidez no teclado enquanto os da outra seguram o telefone fixo. Conheci Petal Jones pouco depois de ter conhecido George. Não temos uma amizade, mas possuímos uma ótima parceria. Ela tem quase a minha idade, é formada em secretariado e fala mais dois idiomas além do inglês e francês. Mora com a esposa e tem um filho adotivo, que deve ter uns oito anos. São as únicas coisas que sei a seu respeito. Petal não é muito de bater papo. Creio que seja por isso que nos damos tão bem. Ela não pergunta, e eu não preciso responder. É perfeito. Saio do elevador e viro a direita, me aproximando dela, que continua com a cabeça baixa. O cabelo loiro hoje está preso em uma trança que me lembra uma espinha de peixe. — Petal, bom dia. Ela ergue o olhar para mim. — Bom dia, senhor. Posso ajudar? — Pode. Eu preciso de uma informação. — Claro. — Eu... Bom, eu não consegui realizar a compra do colar naquele dia. Você deve ter notado. — Sim. — Eu preciso encontrar aquela mulher. Kaliyah Lemaire. Alta, n***a, cabelo longo... Se lembra dela? — Me lembro bem. Muito simpática. "O que você quer insinuar?" "Eu acho que vir até você foi um erro." "Vai pro inferno!" Acho que não dei muitos motivos para ela me demonstrar sua simpatia... — Pode me ajudar com isso? — Com certeza. Eu tenho o contato profissional dela. — Ótimo, então. — O senhor quer chamá-la novamente? — Na verdade... — Subo um canto dos lábios. — Eu tenho uma ideia melhor.
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