Necessidade de se adaptar à rotina

1604 Words
                    Acordei com o meu coração disparado, parecia que sairia pela minha boca se eu a abrisse um pouco mais. Encarei as janelas: não havia luz natural ainda. Peguei o telefone celular e além de mensagens não lidas, o relógio marcava 05:35. Eu sabia que depôs daquilo, tentar dormir seria em vão, vesti meu robe de malha por cima do pijama e desci cuidadosamente as escadas em direção à cozinha. Eu lembrei que adorava descer somente com minhas meias, a escadaria de madeira de lei, encerada e cuidadosamente polida, os pisos de tabuão da sala, cuidados com o mesmo capricho e zelo debaixo do olhar crítico de Joana: era ela quem cuidava daquela casa, desde muito tempo... - Bom dia - a voz masculina grave e um pouco rouca me assustou, fazendo com que eu perdesse o equilíbrio e desse uma leve deslizada, segurando-me na parede em seguida. - Bom dia - digo com a mão no peito, tentando recuperar-me do susto. - Sinto muito ter assustado você - ele diz sorrindo. - Tudo bem - me recomponho e caminho em direção à bancada - acho que eu só preciso de um tempo para me acostumar... - Não acostuma demais, não - ele brinca - logo eu volto para o meu quarto no galpão. - Permita-me explicar: é estranho um homem circulando em casa, que não seja o papai, preciso me acostumar - seria difícil, muito difícil, penso enquanto observo de canto de olho o homem que veste uma camisa xadrez em tons de cinza sobre uma camiseta branca parecer ser pelo menos dois números menor do que realmente deveria ser, deixando os músculos bem marcados sob ela - mas é uma questão de tempo. - Verdade - ele ri, sacudindo a cabeça em negação - quer um café? -Ah, não - respondo rapidamente - obrigada, mas vim preparar um chá. - Uhm - ele deu ombros - tá com cara de quem precisa de café.... Não teve uma boa noite? - Eu tive... Eu só... - encarei ele - vou querer o café sim, por favor.  - Aí sim- ele serve uma xícara e alcança em minhas mãos - você só...? - Pensei que conseguiria dormir por mais tempo. - Tá certo. Precisa de alguma coisa? - ele pergunta sentando-se no banco em minha frente.- Não entendi... - Da cidade, eu vou sair daqui a pouco... - ele coça a cabeça - preciso resolver o guincho pra tirar o seu carro lá da estrada e pedir uns materiais para consertar as cercas e uma parede do galpão... Tem um portão emperrado na mangueira... - Eu não preciso de nada, não, obrigada - suspiro. - Companhia? Quer me fazer companhia? - ele insiste. - Melhor não - respondo, o que esse estranho quer? Que eu saia para passear com ele? - preciso terminar de organizar minhas coisas... - Você que sabe - ele dá ombros e olha para a porta - bom dia.- Bom dia - meu pai responde e logo senta ao meu lado - bom dia, mocinha. - Bom dia - digo sorrindo. - Caiu da cama? - ele pergunta.- Não - suspiro - acho que dormi cedo demais, ai perdi o sono... - Certo - ele pega uma xícara de café que Leonardo entrega - vou sair em breve, vai com o Leonardo?- Na cidade? Não - respondo - quando ele voltar eu vou para o campo com ele.- Tudo bem - meu pai aperta meu ombro - mando preparar um cavalo para você? - Eu preparo - diz Leonardo muito solícito. - Não - dou o último gole em meu café - eu preparo, sem problemas. - Ainda sabe? - meu pai debocha. - Tem coisas que eu não esqueço - suspiro - ótimo dia pra você, nos vemos depois.                 Saio da cozinha apressada: agora tenho uma necessidade imensa de me adaptar à rotina, e isso inclui, talvez, parar de andar de pijamas pela casa ou pensar que posso encontrar com Leonardo andando por ela... Porque isso me incomoda tanto?                Encaro o meu quarto novamente: preciso colocar as coisas em ordem. Acabei apenas catando algo para vestir, não desfiz as malas. Sei que Joana me ajudaria com isso de bom grado, mas se eu fizer sozinha, me ajuda a passar o tempo, afinal, eu só pretendo sair de casa depois das nove horas. Começo o lento e irritante processo de organizar o meu guarda-roupas, sempre detestei isso, mas é um m*l necessário, quase terapêutico, ao menos era o que diria meu antigo terapeuta - e ele provavelmente teria muitas coisas para dizer, ainda mais baseado no meu comportamento nos últimos dias.                 Acredito que nem todas as garotas de dezenove anos precisem encarar o passado complicado que eu preciso encarar, ao menos eu não desejo que outras pessoas passem pelo que eu passei... Não encontrei ainda nenhuma maneira de esquecer, não é o tipo de coisa que a gente deixa de lado, são feridas que doem e que sempre vão doer, independente do que eu faça... Suspiro e encaro o espelho da penteadeira, eu quase tinha me esquecido do quanto eu amava essa penteadeira velha de madeira, ela era da minha avó, e desde que eu me lembro tinha um vaso de vidro, na ponta direita, onde colocávamos flores frescas. Quando ela faleceu, fiquei com a penteadeira e o vaso, ele estava vazio, eu precisaria de flores, a penteadeira parecia incompleta sem flores.               Instalei minhas maquiagens e produtos de beleza na penteadeira, enchi meu banheiro com hidratantes e perfumes, abri as cortinas e encarei o sol se empenhando para aparecer entre as ainda pesadas e persistentes nuvens de chuva: certamente não era o melhor dia do mundo para ir para o campo, mas se eu havia dito que iria, não seria o barro que me faria mudar de ideia.               Procurei calças jeans e botas, vesti uma camiseta, peguei meu antigo boné e desci para a cozinha novamente, encontrando Joana já dando ordens:- Bom dia querida - ela se aproxima e beija minha bochecha - precisa comer, e cortar as pontas desses cabelos - ela desliza os dedos pelo meu r**o de cavalo. - A comida resolveremos - eu rio - os cabelos, pode resolver mais tarde se quiser.- Com certeza - ela bate as mãos no avental - não está se alimentando direito, está pálida... - Logo eu vou estar corada - eu brinco - o que tem de bom ai?- A Solange preparou bolo de fubá - ela responde - e tem pastel de frango, assado, tá quentinho... - Delícia - eu respondo - assim você me mima demais.  - Lanche para quem está no campo - ela responde - quando você descer com o Leonardo, já pode levar. - Tudo bem - eu digo - a minha sorte é que eu eu vou comer ainda quentinho...             Leonardo entra na cozinha com o chapéu na mão: - Aí está você - ele sorri para mim - Joana, tudo pronto?  - Terminando - ela responde - aproveita, senta e come...  - Sabe que eu não consigo dizer que não para você, não é? - ele brinca.  - Acho que não conheço ninguém que consegue - ela serviu-lhe café e largou o cesto com os pastéis.  - Vou ficar uma baleia assim...  - Precisa ganhar uns quilinhos mesmo - brincou Leonardo.  - Que é isso? - eu protesto.  - Brincadeira - ele disse envergonhado.              Terminamos de comer e ele saiu com os lanches preparado por Joana enquanto eu carregava apenas meu boné. Chegamos no galpão e preparamos os cavalos, ele estava atento à todos os meus movimentos, acredito que esperando que eu cometesse algum erro: não lhe dei o prazer de me corrigir ou repreender, eu cresci nesse lugar, ninguém precisa me ensinar o que fazer.  - O que vamos fazer, exatamente? - questiono. - Vamos descer procurando bois soltos e pontos da cerca estragados - ele responde - quando estoura a boiada, as vezes levam tudo por diante...  - Eu sei - respondo.  - Não parecia saber ontem - ele diz.  - Eu não sabia que a boiada tinha estourado - eu resmungo.  - Porque não prestou atenção... - ele rosna.  - Certo - eu o encaro - obrigada por me salvar noite passada, moço, mas eu estou bem.  - Poderia não estar - ele continua. - Está insinuando o que? - eu o encaro.  - Nada - ele ajusta a sela de seu cavalo e vira-se para mim - ficou bastante tempo fora, precisa estar mais atenta, apenas isso, não duvido de sua capacidade, só não quero que se machuque. - Okay, estranho, obrigada pela preocupação... - eu resmungo.  - Seu pai não se perdoaria se algo acontecesse - ele diz de forma c***l - não sei o que aconteceu com você, mas ele acredita que em parte, tem culpa. - Ele não tem culpa - e não tinha mesmo - mas não quero falar sobre isso. Fica tranquilo que eu vou meu cuidar - monto em meu cavalo - podemos ir.                  Sem dizer mais nada, ele monta também... Quem sabe se eu sentasse e conversasse com o meu pai, ele poderia deixar de sentir culpa, ou de sentir que tinha alguma responsabilidade sobre as coisas que tinham acontecido. Eu só não estava pronta para ter aquela conversa, eu não queria falar sobre aquilo, nem sobre nada que me fizesse lembrar daquilo. Me odiei por alguns segundos por ter sido i****a e impulsiva, mas o meu ódio foi dissipando-se aos poucos enquanto eu cavalgava pelo campo sentindo o cheiro de terra molhada: voltar para casa certamente tinha o seu lado bom. 
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