01| Fogo.
A pacata cidade de Soult Hills é mais silenciosa do que a corretora de imóveis havia me dito. Soult Hills foi evacuada após um bombardeio em 1964 e voltada a ser habitada em 2003 reerguida por cima das ruínas do que sobrou da guerra e das casas. O lugar onde agora chamarei de lar, e por mais que ela tenha uma história triste, eu precisava de um lugar onde pudesse passar um tempo para esquecer das cicatrizes que me tiraram do lugar onde sempre pertenci.
A casa que aluguei para ficar por alguns meses fica no centro da pequena cidadezinha, mas que não faz tanta diferença, já que, por aqui, não tem absolutamente nada. Nem lojas, nem restaurantes, nem mercados, nem carros nas ruas. Exatamente como eu queria. Paz. Um lugar onde eu pudesse passar um tempo sem absolutamente nenhum problema. Mas eu suspiro após andar pelas ruas de cascalho e deduzir que talvez o que eu estivesse procurando fosse apenas uma cidade tranquila que tivesse algum lugar onde eu depois de um dia esvaziando caixas e organizando móveis, pudesse enfim comprar algo para satisfazer minha fome.
Me distraio com a luz forte que emana da lua cheia essa noite. O céu está limpo e o clima hoje está agradável. Sei que a uma hora dessas Max estaria me importunando para sentarmos na calçada de casa de nossos pais para jogar conversa fora e eu mesmo cansada dirigiria até lá, só para dar altas risadas com ele falando coisas indiscretas para Jodie nossa irmã caçula e minha mãe repreendendo ele por ensinar coisas depravadas á nossa pequena caçulinha.
Hoje é minha primeira noite longe disso e já estou sentindo falta, porém também sei que eu precisava viver algo novo para ou esquecer de vez tudo o que aconteceu, ou ter que encarar de frente os meus demônios.
Enquanto caminho pela a rua, uma figura vestida de preto parada embaixo do poste de iluminação faz com que eu hesite nos meus passos e repense em atravessar a rua, ou dar meia volta e quando me dou conta, estou literalmente parada o encarando, vejo o mesmo abrir um sorriso malicioso no rosto e eu mordo o maxilar desbloqueando o celular, continuando meu caminho e numa tentativa de não parecer tão amedrontada pela presença dele, eu forço uma conversa pelo telefone.
– Max! – digo me expressando mais do que eu conseguiria naturalmente – Não, estou aqui perto de casa, vim comprar algo para comer. Você quer vir me encontrar? – fecho os olhos fortemente quando percebo que minha voz está saindo mais alta do que o normal de alguém que deveria mostrar tranqüilidade – Tudo bem, eu já chego aí – espero alguns minutos para desligar após passar pelo rapaz que dessa vez acende um cigarro e assim que encerro a minha ligação falsa ouço ele gargalhar.
– Você não vai encontrar nada aberto a essa hora Caitlyn – ele diz o meu nome e eu hesito, dessa vez de costas para ele – E antes que me pergunte como sei seu nome, deveria se perguntar o que faz sozinha nas ruas de Soult Hills essa hora – me viro para ele sem fala – E eu deveria te perguntar porque está falando sozinha no telefone, me alertando que está perto da sua casa, sendo que todos sabem quem você é e onde você mora, e eu deveria já te responder que se eu quisesse te atacar, eu te atacaria na sua própria casa, já que as trancas das portas daqui são uma bosta e você como todo mundo sabe que você é alguém indefesa e está sozinha aqui.
– Eu deveria correr agora, mas eu não iria muito longe. Então eu... Tá legal, eu não conheço ninguém aqui. Hoje é meu primeiro dia e eu só queria comer algo – confesso encolhendo os ombros e ele balança a cabeça soltando um leve riso.
– Acho difícil essa hora. Tudo aqui fecha ás oito. Ninguém sai na rua depois disso – assinto para ele fazendo cara de decepcionada.
– A próxima vez, eu vou para uma cidade que não tenha toque de recolher – brinco num resmungo.
– Nós não temos – ele responde dessa vez me acompanhando no caminho de volta – As pessoas só, apagam as luzes e não saem. É um costume, eles gostam de dar paz á cidade ao anoitecer. É uma tradição. Não sei se te contaram mas o bombardeio de 1964 foi ás oito e quem ainda não tinha saído presenciou uma das noites mais atormentadas, aliás. Ninguém que ficou, viveu.
– Por que você sai? – pergunto.
– Minha mãe tem algumas doenças respiratórias, ela já é de idade. Eu saio para fumar –A gente se vê Caitlyn – ele se despede – Você agora faz parte de menos de 200 moradores desse pequeno lugar cinzento, seja bem vinda – ele se explica e eu assinto – me chamo Ian.
– Obrigada Ian – dou um sorriso dessa vez mais calma e continuo meu caminho.
A casa onde Ian mora fica a um beco e cinco casas da minha, e por mais que tenha sido macabro o jeito que o conheci e o medo que ele me fez, me sinto aliviada por ter agora um rosto conhecido em Soult Hills.
Caminho de volta para casa e assim que me aproximo das escadinhas que levam á porta, encontro a mesma escancarada. Literalmente escancarada, fora do batente, como se alguém tivesse acabado de arrombar a mesma e me lembro do que Ian havia me dito.
Se alguém realmente quisesse me atacar, me atacaria dentro da minha casa e sobre as trancas das casas serem uma bosta, esse fato acara de ser comprovado por mim.
Subo os pequenos degraus que ligam á porta de entrada. Tentando enxergar algum movimento estranho dentro da casa, mas a escuridão oculta qualquer coisa da minha visão.
– Olá?! – largo minha bolsa ao lado da porta e adentro mais para o centro da sala escura, mesmo que dentro de mim, o sinal de alerta esteja ecoando gritando para eu ligar para a polícia antes de dar de cara com alguém perigoso do qual eu não possa me defender – Olá?! – uso a lanterna do celular para tentar ver alguma coisa – Tem alguém ai?! – uma figura alta desce as escadas, eu dou um pequeno passo para trás, mas o mesmo se aproxima de mim bruscamente e me prensa contra um móvel.
– Calma sou eu – sussurra em meu ouvido.
– Quem é você? – me surpreendo com a autoridade de minha voz.
– Não grita – tampa a minha boca – Eles podem te ouvir – ilumino seu rosto com a lanterna do celular, deparando-me com um par de olhos castanhos, dilatados com a escuridão – Desliga isso – o rapaz toma o celular da minha mão e arremessa o mesmo na parede.
– Quem é você? – tento me distanciar dele, mas estou imóvel, com a coluna encostada na quina da estante – O que está acontecendo? – ele me arrasta até a cozinha e abre algumas gavetas, procurando algo.
– Fogo. – ele me larga ali, em algum lugar, e eu o observo assustada – Vamos colocar fogo aqui, assim eles não terão mais como me espiar – abre o pequeno galão de álcool e sai despejando pelo lugar – Você tem sorte por eu estar aqui – olho ao redor assustada.
– Escuta! – seguro em seu braço – Não pode colocar fogo aqui! – ele me ignora e se aproxima da sala, encharcando o chão por onde caminha – Aqui é minha casa! – tomo o galão da mão dele, – Não pode tacar fogo, na MINHA CASA – ele me lança um olhar odioso e vem em minha direção.
– Então eu vou ter que tacar fogo em você e na SUA CASA. – fecha os punhos, e vem em minha direção com os punhos cerrados.