O delegado Meireles recebeu Jonny e Ana em sua sala. Conhecia o trabalho de Jonny e a sua competência como advogado há muito tempo, mas o conheceu pessoalmente pouco mais de três meses antes, no hospital.
A memória de Meireles o levou até aquele dia, quando recebeu um telefonema da emergência de um hospital público.
Um assistente social notificou a chegada de uma vítima de e*****o que deu entrada desacordada, entre a vida e morte, àquela noite.
Chegando no hospital, Meireles se deparou com o marido da vítima,
que estava muito transtornado, com olhos injetados e gritava com todos no hospital, exigindo notícias da esposa grávida de cinco meses.
Delegado Meireles estava prestes a se apresentar e tentar acalmar o angustiado marido da vítima, quando um médico abriu a porta que dividia o corredor da emergência.
— Senhor João Carlos Baresi?
‘O Homem passava as mãos pelos cabelos, com o olhar perdido.
— Sou eu! — Respondeu o homem apreensivo e ansioso com o tom de voz muito mais baixo diante do médico.
— Sua esposa teve que passar por uma cirurgia. Ela perdeu muito sangue, porém, está fora de perigo e está reagindo bem-
— Graças a Deus! E o bebê? — Interrompeu o homem, beirando o desespero.
— Senhor, eu sinto muito. Nós fizemos todo o possível…
As palavras seguintes chegaram desconexas aos ouvidos de Jonny, que ficou tonto e perdeu a força das pernas. Meireles veio em seu auxílio, sentando-o numa cadeira e o médico continuou com as explicações.
“… Terminamos de operá-la, mas ela ainda está sob efeito da anestesia. Ela inda não sabe que sofreu um aborto e vai precisar de todo o apoio que puder dar… Foram três facadas no abdome… perfurou o útero… hemorragia interna… não poderá mais ter filhos…”.
O delegado apressou-se e segurou o homem antes que ele desabasse no chão. Com o seu tom autoritário peculiar, ordenou que trouxessem um copo d'água. O famoso advogado parecia um farrapo humano. Sem cor, olhos parados, sem brilho.
Meireles virou-se para o policial fardado, que estava parado ao lado dele, e o mandou até o bar do outro lado da rua. Ele voltou dois minutos depois trazendo um copo cheio de conhaque que Meireles ajudou Jonny a beber.
Foi assim que se conheceram. A partir desse dia, Jonny manteve contato com o delegado, ajudando no que podia com as investigações, e ansioso, muitas vezes grosseiro, cobrando a prisão do responsável pelo crime. Finalmente o pegaram, só precisavam de uma confirmação e só Ana poderia reconhecer o seu agressor.
— Boa tarde! Delegado Meireles, viemos o mais rápido que pudemos. — Apertaram as mãos.
— Boa tarde, doutor Baresi! — Meireles virou-se e sorriu para Ana. — Boa tarde, senhora Baresi! Estou contente por vê-la bem.
Ana estava ao lado de Jonny, segurando no seu braço. Sorriu em resposta, agradecendo ao cumprimento do delegado. Ela simpatizava com ele e era grata pelo jeito paternal com que ele a havia tratado quando se conheceram. Se mostrava sempre compreensivo e paciente com ela. A primeira vez que ela o viu, no quarto do hospital, pensou que ele era um médico. Ele apresentou-se como delegado e assegurou-lhe que estaria diretamente encarregado das investigações.
Estranho como, naquele dia, naquele frio e solitário quarto de hospital, ela se sentiu melhor ao vê-lo do que ao ver o próprio marido.
— Por favor, sentem-se.— Disse o delegado apontando duas cadeiras que estavam à frente da sua mesa. — Doutor Baresi, antes de tudo, preciso informar-lhe de que o pai do suspeito está aqui com vários advogados exigindo que o liberemos. Um representante da promotoria está para chegar, teremos que esperá-lo para fazer o reconhecimento. Já conhece o procedimento.
— Me chame de João Carlos, delegado, depois de todo esse tempo, não vejo motivos para tanta formalidade.
— Claro, como quiser, João Carlos, gostaria que me chamasse apenas de Meireles.
A porta se abriu e um inspetor entrou na sala. Era jovem, vinte e seis anos, cabelos loiros e olhos verdes, com um brilho felino peculiar em seu olhar, parecendo uma imagem de Eros renascentista.
— Com licença, delegado Meireles, o doutor Moura acabou de chegar.
— Obrigado, detetive André, diga-lhe que nós já iremos para sala de reconhecimento.
— Sim senhor.
O inspetor/detetive André Gonçalves foi dar o recado, saindo da sala e dessa história…
◆◆◆
Ana estava nervosa, segurava o braço do marido e algumas vezes o apertava forte com a mão, deixando marcas sem perceber. Jonny pousou a mão sobre a mão dela, na tentativa de passar-lhe segurança. Estavam diante da porta da sala de observação, contígua à sala de interrogatórios, separada por um espelho que possibilitava que identificassem os suspeitos, sem serem vistos por eles.
— Não se preocupe, senhora Baresi, os suspeitos não poderão vê-la.
— Eu sei, João já me explicou tudo.
— Tivemos um reconhecimento positivo mais cedo, realizado pela jovem que o viu no shopping, com o seu reconhecimento, faremos o possível para que ele não consiga responder o processo em liberdade. — Disse doutor Moura, de maneira amável.
— Tem chance dele não vai ficar preso? — Perguntou Ana, com a voz mostrando ansiedade.
— Não se preocupe, querida, ele vai apodrecer na cadeia! Doutor Moura está apenas sendo profissional.
— Veremos se a senhora Baresi reconhecerá o meu cliente ou não, como seu agressor, antes de falar em prisão preventiva. — Disse o homem que acabara de chegar por trás deles.
Era um homem alto, de aspecto cadavérico, vestindo um terno escuro, óculos de lentes grossas e carregando uma maleta de couro. Apresentou-se como doutor Alvares, advogado do suspeito. Meireles abriu a porta e depois que todos entraram, ele fechou a porta atrás de si e se posicionou de pé, parado no canto da sala. Em frente a enorme vidraça que dividia a sala, estavam: doutor Alvares, doutor Moura, Ana e Jonny. Podiam ver diferentes homens entrarem na outra sala. Todos tinham características físicas semelhantes: caucasianos, cerca de trinta anos, altos, corpo atlético de quem frequenta academia.
Seis homens entraram na sala no total, quase todos ao mesmo tempo, no entanto, no momento em que o quinto homem entrou, Ana levou a mão à boca, abafando um grito. Seu rosto ficou pálido e os lábios perderam totalmente a cor. Jonny teve que ampará-la, para que não caísse. Meireles adiantou-se trazendo uma cadeira para ela sentar.
— A-aquele homem, o de número cinco… foi ele!
Jonny virou-se novamente em direção à vidraça, pela primeira vez podia ver o homem que atacou sua esposa. Nunca pensou que fosse capaz de odiar tanto um ser humano, se é que se pode chamar homens como aquele de ser humano.
— A senhora tem certeza de que foi aquele homem que a agrediu? — Perguntou doutor Moura com a voz clara.
— Sim! Foi ele!
Ana se descontrolou e chorou. Um choro profundo e dolorido, tentando enxugar do rosto as lágrimas com as mãos trêmulas. Doutor Moura entregou-lhe um lenço e buscou Jonny com os olhos, notando que ele ainda estava parado em frente a vidraça, encarando o homem apontado por sua esposa.
— Senhor João Carlos, já terminamos, pode tirar a sua esposa daqui. — Sugeriu o delegado.
A voz do delegado trouxe Jonny de volta a realidade. Quando estava saindo da sala com a esposa, foi parado pelo doutor Moura.
— Gostaria de conversar com o senhor, se não for incômodo.
— Sinto muito, doutor Moura, como pode ver, minha esposa não se sente muito bem.
— Pode falar com ele, João, eu vou ficar bem, tem umas coisas que quero perguntar ao delegado. — Disse Ana, determinada.
Surpreso, o delegado assentiu lentamente, levando Ana mais uma vez para sua sala.
— Senhora Baresi, em que lhe posso ser útil?
— O que vai acontecer agora?
— O seu marido não lhe explicou o protocolo?
— Sim, do jeito técnico dele, mas o que quero saber… O que quero saber, de verdade, é pelo que vou passar… O que vai acontecer comigo?
Meireles respirou fundo. Sabia exatamente pelo que ela estava prestes a passar. A partir daquele ponto, a defesa faria o possível para desacreditar, desmoralizar e culpar as vítimas. Vítimas de e*****o têm suas vidas expostas na mídia, sua moral e conduta questionadas, como se fosse possível justificar o e*****o. Numa sociedade machista, muitas vezes, o e********r toma o lugar de vítima e a vítima é julgada e condenada pela opinião pública.
— Honestamente falando, senhora Baresi, não vai ser fácil, mas tenho certeza que o seu marido vai fazer todo o possível para resguardá-la.
— Eu vi várias vezes na televisão como são tratadas as mulheres que denunciam um e*****o. Soube de uma jovem que se matou ano passado, porque a estavam acusando de ser golpista. Mostraram fotos íntimas dela na internet e outras coisas do tipo.
— Infelizmente, isso acontece, mas se as mulheres ficarem caladas, esses cretinos ficarão impunes, fazendo o mesmo com outras mulheres.
— Eu entendo…
— Espero que a senhora não desista de fazer justiça.
— Não desistirei, delegado, a justiça será feita! Só quero preparar-me para o próximo passo.
◆◆◆
— Como é estar deste lado da justiça, doutor Baresi? — Perguntou doutor Moura.
— Sempre estive do lado da justiça.
— Sim, mas perceba que a própria justiça tem dois lados. Todo acusado tem direito a defesa e o senhor sempre esteve do lado da defesa. Acredita mesmo que todos os seus clientes eram inocentes?
— Esse é o princípio do direito de defesa, não é mesmo? Inocentes até que se prove o contrário!
— Certamente, pelo menos em teoria… O senhor ligou para meu escritório antes de vir para cá, posso saber o motivo?
— Quero ajudar na acusação, ainda que não oficialmente. Quero esse desgraçado preso pelo resto da vida, que o tranquem e joguem a chave fora!
— Isso será impossível…
— Posso saber o porquê? — Jonny franziu o cenho. — O senhor mesmo me disse que gostaria que eu entrasse para a promotoria…
— Sim, eu disse, mas isso foi antes de vocês pegarem o caso.
— Como assim, “vocês”? — Perguntou Jonny, surpreso.
— A firma onde trabalha, doutor Baresi, fará a defesa do homem que estuprou a sua esposa. Irônico não? Não poderei aceitar a sua ajuda devido a conflito de interesses…
— Não é verdade, eles não fariam isso!
— O doutor Alvares é apenas um advogado procurado pelo pai do nosso “suspeito”. Depois que o senhor foi para casa ontem, o coronel Peçanha, pai do acusado, foi diretamente falar com um dos sócios da firma, um amigo seu… Jorge, se não me engano.
Doutor Moura encarava Jonny com seriedade, observando a rapidez com que o advogado assimilava as informações.
— O senhor pode ter certeza de uma coisa, doutor Moura, não importa quem o defenda, ele não ficará impune! Esse homem vai pagar pelo que fez a minha esposa, dou a minha palavra!
Jonny levantou-se de súbito e seguiu caminho em direção à sala do delegado para buscar a sua esposa, para que pudessem voltar para casa. No corredor, no entanto, passou pelo doutor Alvares, que conversava com o cliente, que estava algemado, acompanhado de dois policiais fardados.
“Como assim a v***a me reconheceu? Você é p**o para me tirar daqui…”
“O senhor precisa se acalmar, Flávio, ainda podemos pedir um Habeas Corpus. Tem emprego fixo, não tem antecedentes…”
Ao olhar para Jonny, Flávio sorriu desafiador, levou a mão a boca e com o dedo indicador mandou um beijo, de modo provocador. Jonny não cedeu à provocação, estava muito acima disso, seu olhar duro e frio foi o suficiente para fazer Flávio abaixar a cabeça.