CAPÍTULO 02 — ARIEL

2562 Words
Sonhos são desejos que talvez nunca se realizem. Alguns até são mais fáceis de se tornarem reais algum dia que outros. Os meus, acho que nem existem mais. Eu cansei de esperar um salvador, isso não existe, a realidade é dura e c***l demais para existir bondade. A vida esmaga todos os sonhos, suga tudo que é bom, arranca qualquer coisa que valha a pena. Eu cansei de sonhar, de desejar coisas impossíveis. O que eu sempre quis eram coisas simples, possíveis para qualquer ser humano, menos para mim. Eu pude encontrar algumas partículas de paz assim que entendi isso. Não há como mudar o passado, o que acontece faz de nós quem somos. E as minhas merdas me tornaram assim. Não gostou? f**a-se. Meu telefone toca e por mais que eu não queira me esticar até a escrivaninha para pega-lo, eu o faço. Ligação on ~ — Bom dia, meu amor. — Daniel atende. — Bom dia. — Como você está em seu primeiro dia como dezoito anos? — O que você acha? — Questiono. Não acredito que seja realmente algo que eu precise explicar. — Vai fica tudo bem. — Essas palavras são a minha perdição. Desde os cinco anos eu nunca mais acreditei que as coisas iam realmente ficar bem. Desde que meu pai as pronunciou e partiu, eu não acredito mais nelas. — Okay. — É só o que respondo, sem muita vontade e empolgação. — Seu compromisso misterioso de hoje ainda está de pé? — Desconverso. — Sim. — Ele é seco. — Não vai me falar onde vai? — Vou sair com alguns amigos. E você, como vai passar o dia? — Como todos os outros da minha vida nesse convento. — Lamento. — Ou melhor, pior que todos os outros. — Isso não é um convento. — Ele tenta amenizar as coisas. — Tem freiras, é convento. — Retruco. — Eu tenho que ir, nos falamos depois. Obrigada por ligar. — De nada. Tenha um bom dia, Ari. — Você também. Ligação off ~ Hoje o dia amanheceu nublado, hoje eu completo dezoito anos, hoje eu perdi o direito de estar morando aqui completando a idade máxima que é condicionada para morar no Hallelujah. Eu não tenho nem emprego e nem dinheiro. Não sei como arrumar algum lugar para ir. As irmãs nunca terão um pingo de compaixão e me colocarão pra fora mesmo que eu não tenha um teto sobre minha cabeça. Eu me troco e desço até o refeitório. Pego meu café da manhã e vou até uma mesa. Uma mesa onde sempre me sento sozinha para variar. Na verdade, eu não faço questão de perder tempo com essas garotas daqui. As irmãs as transformaram em robôs sem alma e personalidade. Pouco tempo depois as freiras entram no refeitório e posso ver que duas delas, as irmãs Sara e Darlene estão cochichando uma com a outra enquanto me olham. Eu finjo que nem estou vendo e as ignoro, mas logo elas se aproximam de mim para meu próprio m*l. Luto para não começar a revirar os olhos antes mesmo delas abrirem a boca. — Bom dia, Ariel. Feliz aniversário! – Sara começa a falar. O cinismo é evidente em sua voz e em seu rosto. — Obrigada. — Eu balbucio evitando olhar para elas. — Dezoito anos é uma idade importante, você não é mais uma menina. Quer dizer, no seu caso, deixou de ser faz um tempo. Mas aos dezoito você não precisa mais de um responsável ou representante legal então você responde por si mesma. Isso quer dizer que você não precisa mais estar nesse orfanato, afinal, não precisa mais de adoção. — A Darlene faz seu discurso e eu aprecio o horário obrigatório de falsidade. — Você poderia ter poupado saliva. Vamos pular a ladainha e não vamos fingir que eu não sei o quanto vocês estão felizes com isso. — Sou direta. – Eu só vou terminar o café e vou embora. — Nós não somos tão medíocres quanto você pensa que somos. — Até preciso segurar o riso para não gargalhar da colocação de Sara. Não são? Não foi isso que eu percebi em todos os meus anos de estadia nesse inferno. — Você pode ficar até amanhã. Pode usar o dia de hoje para sair e procurar um lugar para morar. — Conclui se achando o ser humano mais bondoso e altruísta do mundo. Eu não achei emprego para conseguir locar um lugar para morar mesmo procurando por muito tempo e é hoje que eu vou achar? Em vinte e quatro horas? Bom, quem sabe eu arranje uma ponte bem arejada. — Pode deixar, eu o farei. — Eu assinto terminando meu café. — Com licença, senhoras. — Friso a última palavra, transbordando ironia. — Boa sorte, Ariel. — Darlene retribui o tom. Passeio pelas ruas, sem destino, sem ter para onde ir e por onde começar a procurar. O que posso usar para conseguir o que comer ou até onde dormir? Eu não faço ideia. O que estou esperando? Uma placa dizendo “moradia grátis”? Está tão difícil arrumar emprego sem ter alguma faculdade. Sempre quis ser modelo fotográfica, eu costumo admirar as belas imagens nas capas de revistas. Mas para conseguir uma boa remuneração nesse meio é preciso ser um anúncio famoso. Como uma garota como eu conseguiria isso? Nunca. Desisti há muito tempo de qualquer coisa que eu já tenha sonhado ou amado. Passo todo o dia entrando e saindo de lanchonetes, procurando alguma que precise de funcionária, para fazer qualquer coisa. Mas não encontrei absolutamente nada, todas estavam sem vagas para oferecer. Só diziam que sentiam muito. É, eu também. Nós não podermos parar o tempo, não podemos escolher não crescer para não sofrer. Não podemos fazer muitas coisas, inclusive controlar nosso destino. É isso que estava reservado para mim? Só isso? Nascer parar sofrer e crescer sozinha sendo humilhada naquele lugar? Crescer e morar na rua? Eu tento não deixar meus pensamentos ruins me atormentarem, afinal isso não vai ajudar. Eu sento em um banco, torcendo para que algo aconteça, que alguém apareça, que alguma solução surja. Peço que se exista um Deus que por favor arrume uma forma de me ajudar, de me salvar da miséria. É aí que meu telefone toca, me fazendo encarar meu bolso assustada. É a resposta para meus pedidos? Talvez seja a solução que eu procurei. Vejo o número desconhecido e atendo rapidamente. Ligação on ~ — Alô! — Atendo receosa. — Ariel Vilela? — É uma voz desconhecida. — É ela. Quem está falando? — Franzo o cenho. — Sou o delegado Johnson. — Com certeza não é uma solução. Meu coração palpita quando ouço que é um delegado. Era só o que me faltava, problemas com a polícia. Eu esperando uma solução e … Por Deus! — Você conhece o jovem Daniel Coleman? — Ele completa e me deixa ainda mais nervosa. — Sim, ele é meu namorado. O que aconteceu? Ele está bem? — Pergunto rápido e preocupada. — Fique calma, senhorita. Ele disse que você já tem idade para servir como responsável, pode comprovar? — Sim, eu posso. — Nem penso. — Por favor me diga o que houve. Ele está machucado? — Ele está bem, fisicamente. Seu namorado foi preso. Só poderá sair daqui com um responsável. A senhorita pode comparecer agora? — Meu Deus, preso? — Que diabos o Daniel fez agora para acabar na atrás das grades? O pânico cresce em mim, mas não apenas isso. Eu penso seriamente em deixá-lo lá. O mundo caindo sobre minha cabeça, eu com tantos problemas sem solução e tudo que esse garoto faz é me arrumar mais preocupação e se meter em encrencas. — Qual a delegacia? — É a 13°. Sabe onde fica? — Sei sim, estou indo. Obrigada. — Falo e antes mesmo de desligar o telefone já corro para o ponto de ônibus. Ligação off ~ Ele não tem juízo algum? E se precisasse de fiança para não cumprir pena como íamos pagar? Meus últimos trocados que ganhei em alguns b***s isolados, que claramente não é suficiente para pagar nem um quartinho, estão indo embora. Só de passagem de ônibus, estou contando moedas. Agradeço mentalmente quando consigo pegar o ônibus que vai me levar até a frente do meu destino. Eu estou sem saber o que fazer. Pelo caminho eu penso em como Daniel se perdeu, a que ponto ele chegou. Eu me pergunto se posso continuar aceitando as merdas que ele faz dependendo do que ele cometeu. Posso aceitar que ele beba, mesmo não gostando que ele exagere. Posso aceitar que ele tenha muitos compromissos misteriosos. Mas agora até mesmo passagem pela polícia ele terá, dizem que quando começa, é muito difícil retroceder. Tento manter a calma e evitar os piores pensamentos. Ainda pode ser só um engano. Pouco tempo depois eu desço em frente a delegacia, eu logo irei descobrir o que aconteceu. Me apresso em entrar no lugar que me desagrada totalmente. Definitivamente, isso não é para mim. É horrível! Repleto de policiais emburrados, pessoas chorando, provavelmente familiares dos presos, várias viaturas, armas. Eu só quero pegar o Daniel e sair logo desse lugar. — Boa noite. O delegado Johnson me ligou pedindo que eu viesse como responsável pelo preso Daniel Coleman. — Falo quando me aproximo de um policial. — Boa noite. Me acompanhe, vou leva-la até o delegado, só um momento. — O policial é gentil, para minha felicidade. Eu o sigo sem pestanejar quando ele começa a caminhar pelos corredores. Quando chegamos frente a uma sala privada com o letreiro indicando o delegado ele entra sozinho, fechando a porta atrás de si. Eu tento não olhar muito as pessoas, realmente é de dar medo. Se tem uma coisa que eu sei é que nunca mais quero passar por uma situação assim, voltar nesse lugar. — O delegado vai vê-la agora. Venha comigo, por favor. — O policial surge e me desperta dos meus pensamentos me indicando a porta. Sou a primeira a entrar. — Aqui está, senhor. — Ele fala ainda da porta. — Obrigado, Charles. — O delegado Johnson agradece antes de sermos deixados a sós e eu não sei bem o que fazer nem como começar. Então apenas fico em silêncio. — Está tudo bem? — Sim. — Minto, buscando coragem. — Porque ele foi preso? — Mesmo com medo da resposta, eu começo. — Ele se meteu em uma briga. Uma briga muito feia, na verdade, ele quase matou um homem. Se nós não tivéssemos chegado e o impedido, o outro cara não estaria num hospital agora. — O Daniel? O meu Daniel, por pouco não se tornou um assassino? Não pode ser! Meu queixo cai, se tornando difícil recuperar a fala. — Ele mandou um homem pro hospital? — Falo me esforçando pra não desabar, tentando confirmar se o que meus ouvidos ouviram é verdade. Minha expressão se enfraquece. — Sim, infelizmente. Ele estava muito bêbado, isso influência no descontrole. — Explica. — Esse não é o Daniel que eu conheço. — Lamento. — Eu sei, as pessoas nunca são as mesmas quando bebem. Pode me mostrar sua identidade? — Pede. — Sim. — Respondo me prontificando em entregar o documento a ele. É como eu estivesse em um estado de sonambulismo, só respondo no automático. — Obrigada, tudo certo. Hoje é seu aniversário, meus parabéns! — Ele percebe meu nervosismo e tenta quebrar o gelo. — Obrigada. — Digo sem muita emoção. Não tenho nada que comemorar e nem de feliz, mesmo assim, coloco um riso fraco em meus lábios. — Pode assinar aqui?— Eu assino os papéis um por um, onde ele me indica com o redo. — Pronto. Obrigado, senhorita. Você parece uma boa pessoa, tome cuidado com ele. O garoto é instável e tem um temperamento violento. — Adverte o delegado. Eu nunca pensei em ouvir isso sobre o Daniel. A tensão do momento e choque que levei não me permitem raciocinar direito. — Tudo bem, senhor. Eu tomarei cuidado, obrigada por se preocupar. — Desperto do meu estado, segurando as lágrimas em meus olhos marejados. — Vou te levar até ele. – Informa. Estou com tanto ódio dele agora, que queria manda-lo para um hospital também. Além da loucura que ele cometeu, escolheu o dia certo para fazê-lo. — Vamos. — Consinto e ele vai na frente me levando por um corredor. Ao chegar no final, eu vejo o Daniel sentado numa cadeira, de cabeça baixa e mãos algemadas. Sua pele pálida, seu cabelo assanhado. Quando ele percebe passos ele levanta sua cabeça e me olha, com um olhar frio. Sua boca está ferida, seus olhos vermelhos e gelados me encarando. Ele abre sua boca num suspiro e eu o olho numa expressão felina, como se faltasse pouco para eu ataca-lo. O delegação se aproxima dele e tira as algemas. Daniel finalmente se levanta e eu fico parada e imóvel. Eu permaneço séria, com meu coração coberto de decepção. Não era ele que deveria estar me apoiando hoje? Estou desabando e o que ele faz é terminar de me afundar. — Dá próxima vez, não será tão fácil sair. Gastou seu réu primário e não tem ficha limpa, melhor tomar cuidado com suas ações. – Adverte o delegado. Daniel não o responde, apenas desvia e se aproxima de mim. — Vá embora daqui! — Ordeno. — Vamos. — Ele responde, tentando entrelaçar os dedos nos meus. Não permito, tirando minha mão de perto. — Eu disse para você ir, não que eu iria juntos. Não vou com você, Daniel. — Informo seca. – Eu quero ficar sozinha, preciso pensar. — Eu entendo que está com raiva. Mas me entenda também, eu perdi o controle. Me perdoe. — Eu estou de cabeça cheia agora, Daniel, você também. Vamos pra casa, descansar, acertar os pensamentos e amanhã conversamos melhor. Eu não quero falar com você agora, não quero nem mesmo olhar em seu rosto. — Solto fria, mantendo meu coração duro. Ele abaixa a cabeça alguns segundos, como um cachorrinho que sabe que fez coisa errada. — Até amanhã então. Tome cuidado por aí. — Aceita. — Até amanhã. — Saio da passagem indicando que ele vá logo embora e ele entende a deixa. Daniel passa por mim e eu não o olho, virando o rosto para o outro lado. Estou realmente com raiva e quando estou com raiva, é melhor que eu não fale ou faça nada. Meu temperamento explosivo não ajuda quando recebe uma dose extra de gasolina. Ele vai embora e eu vou em direção a saída da delegacia. — Espere. — O delegação impede. — Vou pedir ao Charles para lhe deixar em casa. Eu ainda tenho uma casa? — Tudo bem, obrigada. — Eu aceito, me sentindo exausta. Logo o Charles aparece e me convida a entrar na viatura, eu assim o faço. Nós não conversamos durante o caminho e tudo que eu tento é entender meus pensamentos. Mais um dia se passou, é mais do que eu esperava e menos do que eu precisava. Toda a minha vida está um caos e eu ainda não tenho salvação. Amanhã pela manhã, estarei na rua e não há ninguém que possa impedir isso. Nem mesmo Deus.
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