Romão
P
assei o dia inteiro mostrando ao Jorge como funcionava a fazenda. Ele era um cara esperto e inteligente, aprendeu tudo direitinho. No final da tarde voltamos para casa, ele esperava muito ver a Cidinha, era doido por ela desde quando ela tinha quinze anos, mas nessa idade ela ainda brincava de boneca.
O tempo foi passando, ela se transformou em uma mulher linda e mamãe insistiu para que nós namorássemos. Namoramos quando ela completou dezoito anos, mas o namoro durou menos um ano, porque ela mudou desde que começou a estudar na cidade.
Um dia descobri que ela ficava com outro cara, terminei tudo, aliás, eu já queria terminar antes de descobrir sua traição, porque minha mãe e a Marta, nossa cozinheira e tia dela, já estavam planejando o casamento. Dei graças a Deus por ter sido corno, senão, agora estaria casado.
Chegando na casa da fazenda, tomei banho no chuveiro externo e subi para meu quarto, me trocar e pegar uma muda de roupa limpa para emprestar para o Jorge.
Depois de aprumado, desci para levar a roupa ao Jorge e vi a Cidinha conversando com ele, à distância. Parecia que ele ficou “abestalhado” pela presença dela. Não queria interromper o casal, então, chamei a Cidinha para entregar a roupa para o meu amigo.
— Maria Aparecida!
Ela olhou para mim e abriu um sorriso.
— Oi!
Ela correu em minha direção.
— Entrega essas roupas limpas para o Jorge e a toalha.
Ela pagou as roupas e a toalha da minha mão e saiu em direção ao chuveiro externo. Conferi se eles estavam conversando no mesmo entusiasmo antes de chamar a Cidinha para lhe entregar as roupas, parecia que minha presença passou despercebida.
Fui para o refeitório e a mesa já estava posta, os peões encerraram seus trabalhos e já estavam tomando café para poderem ir para suas casas, antes que escurecesse. Sentei ao lado de mamãe que parecia agoniada com alguma coisa, ela quase não tocou na sua broa de milho.
— O que foi mainha? Está “aperreada” com alguma coisa?
— Seu pai ainda não me ligou, ele não é de fazer isso — disse mamãe.
Achava lindo o amor que um tinha pelo outro. Sempre tão preocupados.
— Não deve ser nada demais, lembra que ele jogou o celular na parede, não deve ter sobrado um contato vivo para contar história. Relaxa, ele estará aqui, logo, logo.
Coloquei café na xícara e cortei um pedaço de bolo de milho.
— É, você tem razão.
— Como é? Eu tenho o que?
Gostava de ter razão.
— Não abusa garoto, você pode ser “acavalado”, mas ainda posso te dar umas chineladas.
Caí na gargalhada e beijei o “cocuruto” dela.
— Espero que um dia eu encontre uma esposa igualzinho a senhora, arretada.
Ela fez careta para mim e eu ri.
— Espero que quando isso acontecer, ela possa te colocar cabresto e fazer se interessar pela vida na cidade.
Lá vinha ela de novo com essa história.
— Mainha, eu não preciso dessas modernidades, está bom do jeito que está.
— Você é inteligente pode se dar muito bem na cidade, poderíamos até aumentar quitanda. Você poderia ter uma vida melhor e não ter que passar por todo esse sufoco.
— Eu vou ajudar papai na quitanda, não precisa se “aporrinhar”.
— Você poderia morar na cidade, fazer vida lá e encontrar uma mulher para casar.
Era bem capaz da primeira mulher que aparecesse na minha vida, ela arrumasse casório.
— Ora! A senhora está doidinha para me ver casado, não é?
— Eu já estou ficando velha, tenho medo de não conhecer os meus netos e o seu pai ainda sonha em ver essa fazenda cheia de crianças.
— Vocês querem a fazenda cheia de crianças, mas estão me empurrando para morar na cidade. Assim fica difícil — brinquei.
Ri, mas ela estava séria. Achava que era porque papai ainda não tinha dado notícias.
— As moças daqui estão indo embora para estudar na cidade, é lá que encontrará uma moça decente para casar.
— As moças daqui querem ficar ricas. Não são humildes, nem temente a Deus.
— Ah, diacho! Você está exigindo demais, não tem problema nenhum arrumar uma mulher que queria um pouco de conforto, acreditado em Deus.
— Não se pode servir a Deus e ao dinheiro. Ou odiará um e amará o outro. Ou servirá a um e rejeitará o outro, não combina. Não sairei dessa fazenda, eu quero ter os meus pés no chão. Um dia vou me casar com uma mulher nascida e criada em uma fazenda, sem essas frescuras de modernidade, das moças da cidade grande, e temente a Deus.
Nada se comparava em acordar todas as manhãs e agradecer a Deus pelo ar puro do campo.
— Não dá para ser só temente a Deus, não?
— Não!
— Vai morrer solteiro e pobre, então.
— Não tenho problema nenhum com isso também.
Quando mamãe colocava alguma coisa na cabeça, não havia ninguém que tirasse. Comemos nosso café em silêncio, mas conhecia a mãe, essa conversa estava a incomodando.
— Pensa direitinho no que eu te falei, você pode ter uma vida melhor na cidade.
Eu não disse?
— Ora! Eu não terei essa conversa com a senhora, minha vida na fazenda está boa do jeito que está.
Jorge e Cidinha se ajuntaram a nós, bem na hora que eu queria cortar o papo. Eles pareciam interessados um pelo outro. Só esperava que Jorge conquistasse o coração de Cidinha e a fizesse largar do meu pé.
— Jorge estava me falando de quando ele teve que passar um tempo na Cidade — disse Cidinha. Que conversa era aquela? Jorge nunca foi para cidade. — Ele disse que trabalhou em uma boate.
Talvez fosse uma estratégia para conquistar Cidinha, ela gostava de tudo que tinha a ver com a Cidade.
— Ah, é? Conta mais, como era essa boate? — falei segurando o sorriso.
Jorge me olhou apreensivo, ele sabia muito bem que eu percebi, que estava mentindo.
— Bom, você sabe, música alta, bebidas, mulheres...
— Eu nunca fui em uma boate, você me leva um dia na que você trabalhou? — Cidinha perguntou empolgada.
— É, quem sabe um dia — disse Jorge acabando com o assunto.
Tomamos café proseando mais um pouco, a chuva que ameaçou a cair o dia inteiro, começou a molhar a terra logo no comecinho da noite. O cheiro de terra molhada dava uma sensação de dias melhores e pelos problemas que a fazenda estava passando, precisamos mesmos de nos agarrar nessa esperança.
“Mais tardar”, papai chegou de viajem e pela cara dele, parecia que as coisas não correram como ele queria. Deixamos que ele ficasse à vontade primeiro, para poder nos contar o que aconteceu na cidade.
— Eu fiz o possível, mas o senhor Geraldo fez o empréstimo no banco ontem, depois que nós conversamos e colocou a parte dele da fazenda como garantia. Eu fui ao banco tentar falar com o gerente para desfazer o negócio. A única coisa que consegui foi um prazo de 30 dias para quitar a dívida, senão...
— Senão, o que? — perguntei preocupado.
Como uma pessoa faz um empréstimo, sem falar com o sócio? Isso era falta de consideração, achava que esse cara estava dando um golpe no papai.
— Senão, perderemos a fazenda.
— Jesus! — Mamãe colocou a mão na boca preocupada. — E como vai ser agora?
— Calma, mamãe, nós vamos dar um jeito. De quanto foi o empréstimo que ele pediu?
— R$ 1 milhão.
— O que? A fazenda e a quitanda não estão tão m*l para ele fazer esse empréstimo, ele está te dando um golpe, papai.
— Eu sei, acho que ele estava devendo na jogatina, todo dia ele saía cedo e geralmente, ele limpava o caixa. Eu tinha que pegar o dinheiro no cofre para poder passar o troco. E das vezes que ele fechava a quitanda, ele não colocava o montante no cofre. Por isso, passei a chegar mais tarde em casa e até mudei a senha.
— Nós vamos dar um jeito, não vamos perder a fazenda — disse.
A porta do escritório abriu e a Cidinha entrou.
— Desculpa incomodar, mas os homens estão aí — disse Cidinha.
Olhei para o meu pai e franzi a testa.
— Será que vieram me prender, por causa do Geraldo?
— Não, não pode ser, aquele canalha não teria coragem de fazer isso — falei “aperreado”.
— Eles não vieram ver o senhor Ismael, vieram ver o Romão.
Cidinha me deixou surpreso com a notícia.
— Eu? O que eles querem comigo? — perguntei preocupado.
— Será que é coisa do Geraldo? — perguntou papai.
— Eu não sei. De qualquer forma, eu vou saber o que está acontecendo — falei saindo do escritório.
— Eu vou com você, filho!
Papai me seguiu até o terreiro onde estavam os oficiais. Mamãe veio atrás, mas ficou esperando na soleira porta.
— Você é Romão da Cunha Coelho?
Eu sei, trocadinho infame! Eu tinha o sobrenome daquele roedor que eu tanto detestava, mas fazer o quê?
— Sim, sou eu.
— Viemos informar sobre o falecimento do seu pai.
Quem picou a mula?
— Filho, o que está acontecendo?
Até meu pai, que estava do meu lado, não entendeu nada.
— Eles estão falando que o senhor morreu.
— O senhor é pai dele? — perguntou o policial.
— Sou pai de criação — respondeu papai.
— Então, o seu verdadeiro pai, o senhor Francisco Nogueira Ferraz, faleceu agora pouco.
— E o que isso tem a ver comigo? — perguntei curioso.
— Eu falei com o advogado dele para saber se tinha algum parente vivo e no testamento dizia que você é o único herdeiro dele — disse o policial.
— Herdeiro de que?