Liberdade

1288 Words
Ares Chego ao meu apartamento com a cabeça cheia, o jantar com a minha avó não foi nada agradável, de tudo o que poderia ser, dona Ofélia agora cismou que quer que nós nos casemos... como se isso fosse possível. Em seguida resolve que quer passear de cavalo no meio da chuva e nós mandamos prender uma garota que era inocente. A noite não poderia ser pior, mas esta manhã conseguiu com os sermões da minha avó pelo que fizemos. Ouço barulho vindo da cozinha, vou até lá e encontro Jully com uma camiseta minha, um shortinho que mais parece uma calcinha, procurando algo no armário. — O que faz aqui? — Pergunto sorrindo quando ela se assusta e derruba o que estava tentando pegar em cima de sua cabeça. Jully olha para mim com os olhos arregalados e rapidamente tenta se explicar enquanto recolhe os biscoitos que caíram. — Ah, foi m*l! Eu estava procurando alguma coisa comestível. Tenho uma entrevista de emprego hoje, estou ansiosa. — Responde, corando de leve. Eu sorrio, achando graça da situação, e me aproximo para ajudá-la a recolher o que caiu. Ainda com um ar divertido. — Então você vai fazer uma entrevista de emprego vestindo minha camiseta e esse shortinho? Seu guarda-roupa deve estar bem vazio... — corro os olhos por todo se corpo. — Está querendo uma vantagem na entrevista por ser gostosa, não é? Jully gargalha enquanto eu me mantenho sério, minha mandíbula travada enquanto a observo atentamente. Os anos passam rápido, mas ela ainda consegue mexer comigo de um jeito que não sei explicar, talvez seja por ser a única que me dispensou, ego ferido. —Até que não é uma má ideia, Ares, mas acho que é uma entrevistadora, meu guarda-roupas não vai me ajudar — sorriu sem jeito. — É que eu acabei dormindo aqui ontem à noite, estava te esperando chegar, não trouxe meu pijama e a roupa da entrevista, aí peguei essas roupas suas. — Seu guarda-roupa definitivamente não é a parte mais interessante dessa história — respondi, meu olhar vagando pelo seu corpo de maneira involuntária. A atração que sentíamos um pelo outro era inegável, mas também proibida por ela, uma linha que nunca deveríamos cruzar. — Já pode parar de me comer com os olhos, Ares, você faz isso a anos! — Porque nunca me deixou fazer de verdade, então não me proíba de fazer a única coisa que posso. — Sorri. Meus pensamentos momentaneamente se desviam dos problemas com a minha avó e sua insistência em nos casar. Observo Jully de forma diferente, notando como ela fica bonita até mesmo com as minhas roupas largas. Balanço a cabeça para espantar esses pensamentos. — A noite foi bem mais longa do que esperava... — suspirei. — Parece que Hades será o primeiro com problemas, então eu terei tempo para pensar em um jeito de me livrar da bagunça que minha avó quer arrumar para nós. — Aquela mulher é uma santa, aguentar vocês três a vida inteira... — fez um movimento exagerado com as mãos. — Eu provavelmente já teria surtado, já é difícil lidar apenas com você, imagina com os três, personalidades parecidas, o mesmo jeito cafajeste. Não gosto nem de pensar, mas ela deveria ser canonizada! — Engraçadinha. — Olhei para minhas mãos. — Por que vai arranjar emprego? Está precisando de algo? — Não gosto da ideia de que ela esteja com problemas, os prêmios das minhas corridas são dela, Jully não deveria estar precisando de emprego. — Meus irmãos não sabem que você não corre pelo dinheiro, Ares, e quando eu tiro uma quantia grande que eles precisam, sempre digo que você me emprestou, papai está começando a pegar no meu pé... preciso de um emprego para dizer que guardei do meu salário. — Pode dizer que eu te dou um salário alto. — Não gosto da ideia de não ter ela por perto durante o dia. — Já disse, mesmo assim, eu não deveria ter tanto dinheiro, dois empregos já seria uma boa desculpa. — Pode trabalhar para o meu irmão, posso... — Não, de jeito nenhum, Ares, não viu ficar perto do seu irmão, ele parece o próprio demônio em pessoa. Você também, aliás, mas com você já me acostumei, se ele gritar comigo eu quebro a sala naquele rostinho bonito dele. — Acha meu irmão bonito? — Não a deixo responder. — Tem razão, não é uma boa ideia. — Não quero os olhos de Hades em cima dela. Jully é minha amiga há anos, sempre esteve ao meu lado nos momentos bons e ruins, mas nos últimos tempos tenho me sentido ainda mais estranho perto dela. Decido que preciso de um tempo para mim mesmo. Pego as chaves do carro e saio para dar uma volta. Dirigir me ajuda a clarear as ideias, a ver as coisas de forma mais objetiva. — Acho que vou para a pista. Boa sorte com a entrevista. — Dou um beijo em sua testa. — Prometo que venho mais cedo hoje. Dirijo pelas ruas da cidade indo para a pista que costumo usar para treino, tentando colocar em ordem os pensamentos confusos que ocupam minha mente. A conversa com minha avó ainda ecoa em meus ouvidos, a mania que ela tem de se meter em nossas vidas me incomoda profundamente, mas a amamos tanto que não conseguimos ter voz ativa com ela. Eu não quero me casar com ninguém no momento. A imagem de Jully, vestida de noiva é jogada em minha mente sem pedir licença. Ela sempre foi uma pessoa especial para mim, uma amiga verdadeira e leal. Compartilhamos tantas coisas juntos, risadas, lágrimas, segredos, mas principalmente essa tensão densa no ar, uma eletricidade sempre presente. Parece que a cada dia que passa, noto algo novo em Jully. Seus olhos brilhantes e seu sorriso cativante sempre estão esperando por mim. Sua presença é reconfortante, e quando ela está por perto, sinto que posso ser eu mesmo sem receios. Bem diferente da maneira que ajo com a minha família, sempre os mantenho de fora da minha vida pessoal, e ela é o que tenho de mais real no momento. Passo o resto do dia inteiro correndo, é a única maneira que encontro de me sentir completamente livre. As corridas entraram na minha vida quando me sentia completamente sufocado com a empresa da família, Hades e vovó sempre me pressionando a fazer parte de algo, a dar segmento no nome Bacelar, ocupar minha cadeira, mas sempre soube que aquilo não era para mim, a empresa estava muito melhor estando apenas nas mãos de Hades, ainda que eu saiba que não é justo com ele, que sacrifica toda a sua vida naquele lugar. Mantenho-me longe das outras pessoas nas pistas, entro na pista, saio e ninguém nunca me vê, Jully é quem me representa, seus irmãos são corredores, mas desde que ela cuidou de mim nunca mais consegui me livrar dela. Nem se ela quisesse deixaria que se afastasse de mim. Abro os vidros do carro e deixo o vento chicotear meu rosto, sentindo a liberdade invadir cada poro da minha pele. Enquanto o motor ronrona sob o capô, sinto meu coração pulsar em sintonia com o rugido da máquina. Nas curvas fechadas e nas retas intermináveis, encontro uma maneira de escapar das correntes invisíveis que me mantém preso ao legado dos Bacelar. Cada corrida é uma fuga, uma chance de ser apenas eu mesmo, longe das responsabilidades e das expectativas sufocantes. Enquanto a velocidade aumenta, sinto o peso das preocupações escorregando para fora dos meus ombros. Não sou o herdeiro da empresa, não sou o pilar da família Bacelar. Sou apenas Ares, um piloto apaixonado pelo que faz.
Free reading for new users
Scan code to download app
Facebookexpand_more
  • author-avatar
    Writer
  • chap_listContents
  • likeADD