Que as piadas comessem!

2270 Words
No meio do semestre começou a entrega de trabalhos, o aperto dos dias em que não fizemos as pesquisas e ainda temos de organizar o trabalho num word, editar consoante os requisitos dos professores e com sorte ter conteúdo suficiente para ter o número de páginas mínimo requerido. Depois temos de mudar o formato, PDF é a lei e o powerpoint nem sempre é pedido, vai muitas vezes ao engano. No meio de trabalhos continua matemática, lá estudo e tenho explicações por fora, não deu muito certo no primeiro teste, mas não desisti da batalha. O tempo anda meio-estranho, o sol dá lugar a chuvas furtivas no meio dos dias. Quatro estações num só dia, matam o meu cérebro, mil tentativas de controlar o frio e o calor, chego a casa doente de qualquer forma. Ainda não fui ao gatil, o mundo universitário tanto é calmo, como agressivo de uma semana para a outra. Depois da primeira rodada de testes decidi deixar para mais tarde a viagem. Mandei mensagem a minha mãe a perguntar a sua opinião, recebi uma frase,“ Ótima notícia querida, vai em frente!” Tenho licença de condução, ir buscar o animal e comprar o necessário não tem problema. Contudo, fiquei triste por ela não demonstrar mais interesse no assunto. Recebi mais do mesmo, mensagens curtas, sem necessidade de resposta ou interação. Após matar-me para matemática e nada conseguir, decidi ir finalmente ao gatil procurar um bichinho para o meu lar. Não tinha ideias na cabeça, nada de cores ou raça, queria apenas adotar um que precisasse de um lar com urgência. Telefonei antes de ir e pedi pelas informações de adoção. Tinha apenas de me deslocar ao local, escolher, preencher algumas perguntas e papéis legais para transporte do peludo. Como fui de carro dei boleia a Sofia e Magali, Sónia não iria hoje às aulas, Gael tinha consulta no médico e Margarida estava doente. A chuva tinha realmente afetado a saúde de muitos da turma. Ia diretamente para o gatil após acabar a aula, a mesma que fundiu o meu cérebro, pela tarde a segunda-feira era horrível ter 4 horas de Qualidade, o problema costumava ser a espera pelo comboio e o professor em si. Saíamos pelas 18h, mas o comboio apenas chegava às 18:50h. Hoje, contudo, não teria esse problema, o gatil estava aberto até as 20h. — Bem malta, vou embora! Querem boleia até à estação ou ficam no bar? - Estava eufórica. — Ficamos no bar. - Magali fala soturna, estava assim desde que a tinha apanhado em Aveiro. — Melhor, está muito frio. - Sofia sorria de maneira a demonstrar desinteresse, mas algo está errado na sua feição, algo de r**m navegava pela sua mente. — Tentem animar-se, chuva é necessária… - Tento amenizar o clima. — E se tu e a chuva se casassem e fossem tomar no cu. - Magali fala fria e revira os olhos. — Magali! - Sofia reage primeiro. - Mas que raio foi isso? — Nada… - Fala roendo o lábio do lado esquerdo. — Eu gosto da chuva, na verdade… Tem boa viagem, não lhe ligues. - Sofia olha para a amiga furiosa e abana a cabeça para mim em sinal para eu não ligar ao que acabou de ser dito. Saí do bar sem entender nada, mas tenho a teoria do motivo de tal mau-humor por parte de Magali, o namorado. Magali entrou a poucas semanas, veio do Brasil e já estávamos a meio do semestre, lembro de Sofia a chamar para o nosso grupo de trabalho no seu primeiro dia de aulas. Sempre foi uma rapariga simpática e adora contar piadas, tanto que em muitos intervalos acabamos na risada enquanto comíamos e jogávamos cartas. O riso era tanto que acabamos por chorar. Contudo, a uns tempos para cá um rapaz do segundo ano do nosso curso colocou conversa com ela ‘online’, não temos propriamente aulas com ele e por isso não conheço a sua feição. Depois disso, o humor dela aumentou mais de 10 vezes, mas faz uma semana que eles discutiram de acordo com Margarida. De qualquer forma, não é problema meu, vou buscar o possível remédio para a minha solidão, não posso ocupar-me com os problemas de toda gente, sendo que não controlo os meus. Enquanto conduzo lembro de algumas das piadas dela, as primeiras, na verdade. —Margarida? — Sim! - Margarida já se ria e ainda não sabia o que vinha. — Conhece o miro? - Magali tinha a expressão neutra. — Não… - Fala sem pensar. — Miro no seu cu e atiro! Conhece não?! Risada geral, o som propaga pelo bar de forma estrondosa, a mulher que atende fica sem entender nada, assim como os restantes alunos espalhados pelas várias mesas, já não chega a sueca para aquecer a risada, ainda temos as piadas. — Só a Magali. - Sofia chora enquanto ri é das únicas que não joga cartas. Adora ver e rir, porém sempre se recusa a jogar. Magali era bonita, isso não tenham dúvidas, nariz pequeno e direitinho, rosto com maçãs salientes, cabelo cacheado escuro com caracóis de meter inveja. Alta, mas na média padrão portuguesa feminina, corpo robusto com ancas largas e um sorriso tão alinhado que carris são mais tortos. Não me admiro por ter captado rapidamente interessados, mas este mau-humor por um rapaz não é dela, tal tivesse sido melhor eles terem andado mais devagar em zonas pessoais. O início de um relacionamento é sempre incrível, não tenho experiência própria, contudo não me faltou amigas em Lisboa a sofrer por amor, sendo assim nenhum relacionamento é perfeito. Sofia e Margarida namoram, de Margarida sei apenas os bons momentos, mas de Sofia sei bem mais. Apesar dela não partilhar no grupo, mas sim quando estamos sozinhas, ela é mais restrita nas suas palavras com o resto das amigas. Ela explica os medos que teve ao entrar numa relação, as etapas difíceis e os momentos doces e amargos. Como demisexual o seu conforto não é dado a qualquer um, mas sim a quem lhe rouba o coração de uma forma tão doce e encantadora como ela deseja. Essa pessoa era o seu namorado e não o trocaria por nada, ele não forçava as suas barreiras e dava o espaço necessário quando ela o pedia. —Ele dá-me espaço quando preciso e não me obriga a nada que não me sinta pronta. – Fala carinhosamente. – Procura isso em alguém, nós demi não somos fáceis, mas não temos de fazer algo por obrigação, devemos sim sentir-nos a vontade para começar e permanecer, tudo é por etapas sabes. Eu não sabia, nunca me tinha apaixonado, admiro a beleza das pessoas, mas fora isso… nunca me senti pronta a largar a primeira barreira a alguém. Foi assim que descobri a minha bandeira, demisexual igualmente. A minha pessoa ainda não chegou, por tal, neste momento conduzo para ir buscar um gato, com a ideia de ocupar os meus fins de semana, causar danos na minha casa e assim, conseguir iniciar algumas etapas na minha vida. Afinal já tenho 21, começa hoje, Clara a nossa nova etapa. Paro junto ao gatil, estaciono e entro num pequeno escritório onde uma senhora já de idade avançada se levanta para me cumprimentar. — Boa tarde. - Mostra um sorriso aberto. —Boa tarde. - Falo demasiado baixo e tímido. Em minutos explico a minha vinda e a senhora identifica-se como sendo a mesma mulher com quem tinha tirado as informações ao telemóvel. Encaminha-me para o gatil, gatos de todas as cores e raças encontram-se ali, sem donos, esperam uma alma caridosa e amorosa que os adote. A senhora mostra-me os gatos que tinham no momento, em especiais gatos já adultos, calicôs, pretos, de duas cores, pelo curto, pelo longo, olhos com cores diferentes. Os meus caem num gato já de idade notável, laranja com a barriga branca, dorme descansado, não se deu ao trabalho de abrir o olho quando passei por ele. — Qual o nome deste? — Ele ainda não tem nome, chegou ontem! – A mulher falava de tom grave. – É muito stressado, viveu na rua até agora pelo que o veterinário apurou. Olho o gato, parece solitário que nem eu, no pelo dá para ver a vida difícil ainda, contudo não consegui deixar de o notar ali, quieto e calmo, via-me nele. —Vou levá-lo… — Ele não se dá com muitas pessoas… - A mulher não parecia contente com a minha escolha. — A vida na rua não é fácil e o ser humano muito menos. Com desagrado, o qual via na cara dela, tira o gato que logo começa a fazer barulhos de ameaça. Colocou luvas antes de abrir a cela e tira-o a custo depois de 10 minutos de guerra por parte dele. Oferecem-me uma forma de transporte com o bichano lá dentro, preencho a papelada sobre mim e algumas formas de contacto, assim como um termo de responsabilidade. — Lembro que poderá devolver em 1 semana… - para pôr instantes. – Ele já foi devolvido 3 vezes, realmente não gosta de estar preso. Olho a mulher pela última vez, vejo que não quer m*l ao gato, provavelmente foi ela que o recebeu de volta. — Ele desta vez não volta. – Passo o dedo nas grades do transporte, o gato estava virado para o lado sem janela, ao sentir a minha mão apenas volta a cabeça de leve. Recebi o boletim de vacinas do peludo e saí devagar com ele. Coloco o transporte no chão do carro no banco passageiro da frente. A viagem foi calma, não houve miados ou ameaças, puro silêncio por parte dele. Penso num nome para o gato, ainda nem lhe vi a cor de olhos, algo em mim deseja ver aqueles olhos. Magali estava deitada na cama com o pc de lado vendo um filme, After dava na tela, mas a vontade parecia pouca, nem mesmo olhava o computador. Olhava para o telemóvel a cada 5 minutos. Esperava algum tipo de mensagem. O telemóvel toca, a mensagem chegara, põe a mão no telemóvel e usa a impressão digital para abrir, o sorriso morre ao ver que Sofia lhe tinha mandado mensagem a pedir a resolução de um exercício por não conseguir o mesmo resultado que a professora. — Chata, só faz. – Mesmo falando assim responde, já tinha a mensagem aberta, “depois mando-te”. Sofia responde com um caloroso obrigado e um emoji simples. — Que merda. – Olha o telemóvel, sente raiva, fazia quase uma semana que o rapaz não lhe falava, começava a perder a paciência com ele. Volta a olhar o filme no computador, sente uma irritação profunda e não se contenta com o silêncio que recebera devido a uma birra por parte dele. Tinha saído com ele umas 4 vezes, tudo tinha corrido bem, até ao momento em que ele lhe contara estar numa relação de longo tempo. Magali gritara, como ele podia sair com ela e tinha namorada, Virgílio começou então uma discussão em como era algo que ela já devia saber, pois ele tem fotos com ela nas redes sociais, troca de bocas foram ouvidas pelo parque onde estavam sentados. Por fim ela foi embora deixando o aviso, não o voltaria a ver daquela forma enquanto ele namorasse. — Devia tê-lo matado, duvido que a namorada o faça… - A frase fica no ar, apenas acompanhando a afirmação, o barulho do filme que estava o mais baixo possível. Cheguei a casa tarde, ainda passei numa loja de animais e comprei dois brinquedos, comida de gato, alguns petiscos e um conjunto de taça de inox e madeira para o gato laranja e branco. Comecei por abrir a pequena transportadora quando entrei no apartamento, dei espaço para ele sair com o seu tempo, comecei a preparar o meu jantar. Ia pondo o olho na transportadora, ele começava a farejar o chão, pondo a pata e tirando como se algo mexesse no soalho. Depois de 20 minutos de reconhecimento, finalmente sai da transportadora e olha o que o rodeia, deixei mais luzes acesas para que pudesse ver bem a sua nova casa. Quando começo a comer já ele anda a cheirar a minha cama, parece surpreendido, os olhos são castanhos-claros, parecem o chão da floresta quando acaba de chover e poças formam-se. Tinha olhos profundos com traumas velhos e novos, era um gato vivido e os olhos demonstravam isso claramente. Deitei e ele ainda andava pelo apartamento, não tinha comido o que lhe tinha colocado na sua taça, bebeu água, mas nem cheirou a comida. Ele lembrava-me a minha avó, a forma como ele observava o que o rodeia, ela sempre o fazia, avaliando tudo e todos os que a rodeiam, até o chão ela analisava. Fico um pouco a olhar o bichano pelo chão farejando, contudo, a minha mente ainda não formulou um nome para ele. Bom seria ter um procedimento para escolher o nome do peludo na minha frente. Ora bem! Ele é laranja, o que me remete muito para o sol, tem belos olhos castanhos, teve uma vida sofrida e acabou por ser adotado por alguém solitário. Sete-Sóis? Para quem não sabe, Sete-Sóis é a alcunha de uma personagem criada por José Saramago, ele teve exatamente a vida deste gato, viveu e sofreu, encontrou conforto nos braços de uma mulher com poderes sobrenaturais e achou a felicidade simples nos seus braços. Talvez este gato encontre a sua felicidade nos meus, mesmo que não me aceite ficarei com ele até a vida de um de nós perder a validade.
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