Bigodes Laranja

1834 Words
Magali acorda com o mesmo mau-humor com que se deitou. Ainda não tem resposta do rapaz, tentou ignorar o telefone toda a manhã que se esteve a preparar para a universidade. m*l chegou à estação, abriu o insta e mergulhou na maior depressão, a mensagem que lá tinha era de uma das amigas da sua terra natal. Olha a parede branca da estação, como ficaria ali um telefone estilhaçado, talvez uma pequena marca. Contudo, não tinha outro e tenta recompor-se. — Bom dia. – Gael salta por trás dela que nem um fantasma, Magali dá um grito e olha o garoto de cara torta. — Estás louco! – Ajeita o casaco levemente e tenta não começar uma discussão, já via Sofia ao longe, vinha acompanhada de Sónia. — Bom dia! – Sónia sempre era alegre pela manhã. – Todos bens dispostos? Magali respondeu meio-seco, mas esforçou-se para não transparecer o mau-humor. Eu já as via pela janela da estação, apenas Margarida parecia estar atrasada, cumprimentei todas e sentei-me junto delas no banco de alumínio. A conversa era quase sempre sobre as aulas da manhã. Margarida chega em cima da hora, já estávamos dentro do comboio, enquanto isso ela corre escada a acima e entra, procura-nos no meio das pessoas. Contudo, estando tão cheio deixasse ficar e apenas manda mensagem no grupo para avisar que tinha conseguido apanhar o comboio. — Acho que ela está no fundo da carruagem! – Falo para Sofia. – Não se vê a parede do comboio daquele lado. — Provável, aquela Maria sempre se atrasa. – Rimos as duas e Gael faz uma pequena piada. Olho Magali no seu canto, junto da janela, parece estar nas nuvens, sempre faz uma piada qualquer sobre a Margarida e o seu atraso, porém hoje o silêncio era a sua preferência. Começo a ficar preocupada com aquela mudança de personalidade, naquele momento não estava sentada junto a janela, na minha frente, a Magali Tavares que conheci à 1 mês, risonha, extrovertida e cheia de piadas para partilhar com o mundo. Pensava em Sete-sóis, eles estavam parecidos, soturnos, misteriosos e frios, escondem algum segredo? Sete-sóis sei que sim, nunca o vou conseguir entender, apenas as ações podem iluminar o assunto, já Magali podia partilhar a sua dor, sei tanto como o resto do grupo, o rapaz deixou de falar após a discussão. Intrigava-me profundamente. Talvez devesse ser eu a perguntar? Mas o problema é íntimo, seria delicado! O meu cérebro funciona assim, vivo numa balança de desequilíbrio, por isso adotei um gato. As minhas conversas internas eram tão frustrantes e frequentes que acabava o dia de miolo queimado sozinha mesmo que não tivesse aulas. Ansiedade não era brincadeira nenhuma, problema psicológico interfere na nossa vida nos momentos menos oportunos. Pela hora que consegui decidir parar de pensar estamos a chegar a Águeda. — Vamos à mais um dia! – Gael levanta-se de forma pesada, como sempre a vontade era enorme. Sofia fecha o livro que tinha vindo a ler durante a viagem, Memorial do convento, na verdade, relia, ela amava Saramago. Eu sempre tive muita dificuldade em chegar ao consenso das suas obras, gostava do Memorial, mas a escrita dele era algo demorado de ler, requer muitas vezes que se volte atrás para não confundir as linhas temporais e realmente entender os planos da narrativa. Eu gostava por um lado, odiava o outro, mas não era a minha coisa favorita retroceder 10 linhas para realmente entender o que se passou naquela cena. Era um processo, devia existir um procedimento para ler Saramago, algo que tornasse a sua narrativa mais fácil de perceber e interpretar. Quando fui a ver já estávamos a chegar a ESTGA e eu a pensar em Saramago. Matemática era agora a minha preocupação, foi maçante, a professora novamente vomitava matéria de forma descontrolada sem mesmo se preocupar com os alunos entenderem. Eu apenas copiava e tentava acompanhar os cálculos com Sofia e Sónia, quase sempre ficávamos as três juntas para compararmos resultados. — Ela podia fazer uma pausa... - Sofia falava esmorecida e tira o casaco. Não éramos muitos na sala, metade da turma desistiu de ir nas primeiras semanas pelo que me contaram. — Podia mesmo. – Sónia tinha acabado, matemática era a sua área de privilégio então era mais rápida na interpretação do que Sofia e eu. – Verifiquem se deu o mesmo que o meu! Lá vemos se seguimos o processo da conta bem e se os resultados eram iguais. Grande parte das vezes não dava certo, tínhamos de rever tudo e por essa hora já começava outro problema no quadro. Era desgastante as 4 horas ali, num ritmo que nunca conseguimos acompanhar. O intervalo era a hora da glória, nada podia ser melhor que um café e um descanso numa das cadeiras do bar. Gael tinha levado um dos seus manuais do oculto para o bar. Estava tão focado naquilo que o café dele começava a queimar, lá lhe mexi o café e chamei a atenção. Continuo preocupada com Magali, mas nem mesmo com a Margarida ela fala, fixava a tela do telemóvel de forma estranha, nem piscava. — Clara, já leste este? - Sofia mostra uma das suas imensas listas de desejo de livros na Bertrand “online”. Mostrava o novo livro da Collen Hoover, Isto começa aqui. — Já vi fotografias no Insta, vais comprar? — Talvez, comprei o primeiro, isto acaba aqui. Quero saber a continuação. – Parecia viver na felicidade quando se tratava de livros, era o seu processo contra as situações deprimentes da vida. — Vai aos w******p, mandei lá uma cena... - Tinha mandando a minha preocupação por Magali, Sofia sabia do mesmo, mas parecia menos preocupada. Leitora ávida então em 3 minutos leu a minha mensagem de quase 20 linhas. Responde na mesma hora. Claraboia Eu mandei mensagem para ela ontem, recebi o mau-humor do costume e ainda me deixou na mão com um trabalho. Deixou claro que não quer nenhuma de nós a falar do assunto e para não lhe perguntarmos mais nada. O rapaz deixou marca, cheira-me a esturro a história. Acho que até agora ela não lhe falou. De qualquer forma, não lhe volto a falar, chamou-me intrometida e fofoqueira desnecessária. Rato de biblioteca Ainda bem que não lhe mandei mensagem ou simplesmente lhe falar a meio da aula, um dos dois ia falar. Ela anda estranha, nem piadas faz... Começo a pensar que a história se prolonga mais, mas ela não conta por algum motivo. Sofia faz sinal para desligar os telefones, Magali olhava-me de forma soturna, põe o olho em Sofia e fixa o olhar em ambas, algo não batia certo ali. Sofia olha para Sónia que tirava o baralho de cartas do bolso. —Vão jogar? Gael deita o olho fora do seu manual sobre o oculto e sorri. —Sueca!? — Por mim tudo bem! – Margarida anima-se. Cartas era sinal de risada, com cartas nunca havia maus intervalos no nosso grupo. Sofia não joga, nem eu, mas Magali colocou de lado o telemóvel. — Eu jogo, mas depois da sueca podemos tentar outro, sempre jogamos o mesmo, os outros são mais divertidos. – Parecia ter ganhado alguma alegria momentânea e assim foi por todo o intervalo. Voltamos à sala depois de 20 minutos e continuamos o inferno na terra. Quando saímos começou a chover, o inverno era a pior época para sair de casa. Frio e comboios mais cheios que o normal, guarda-chuvas e camadas de roupa que ajudavam ao cheiro a suor de correr em atraso para apanhar o Vouguinha. Naquele momento bateu o arrependimento de não trazer o carro. Dirigimo-nos para o bar, sempre estava mais quente lá e não se apanhava chuva, com sorte quando fossemos sair não apanharíamos uma molha, visto ninguém ter trazido agasalho em condições para a mudança de tempo repentina. Após entrar no comboio e sair na estação em Aveiro fui às compras rapidamente, queria comprar uma escova para o sete-sóis. Tinha de fazer laços com o bichano e aproveitar o fato de ter alguma companhia em casa. Ao sair do supermercado começou a chover torrencialmente. Enfrentei a chuva e corri o mais que pude até casa, cheguei encharcada. Entro no hall cansada, retiro as sapatilhas e as meias, pingavam de tanta água. Tiro os meus chinelos e uma pequena toalha do aparador que tenho na entrada e tento secar o mais que consigo os pés, a casa está um pouco fria, calço por fim os chinelos, caminho até a sala e deixo os sacos das compras no chão, olho o painel que controla a temperatura da casa, estava baixo então ligo o aquecimento do chão. Ouço um miado baixo. No meio da sala está um gato laranja de barriga branca, parece sonolento, dormiu o dia todo e deve ter fome. Olho com mais atenção o gato já de idade avançada, tem os bigodes longos e brancos. Na verdade, mais parecem laranjas, talvez metade branco metade laranja, branco apenas é que não são. Fico admirada de não lhe ter notado os bigodes, é tão bonito e fofinho que desejo um abraço seu, o bichano mia novamente. Fome com certeza, olho a taça que lhe deixei pela manhã, enquanto estive no apartamento não comeu, nesse momento a mesma está vazia. Ainda não confiava em mim. Encho o prato de comida e começo a arrumar as compras, estava cheia de fome, coloco uma lasanha vegana no forno e espero que fique pronta, vou limpando o balcão e vejo que ainda não tocou na comida. Vou buscar a escova, sento-me no chão, ele olhou-me incrédulo e eu faço o som mais conhecido que algum ser humano utiliza para chamar um gato até si. —Pst, pst, vem cá! – Falo o mais meiga possível mexendo os dedos. Ele continua a olhar e vira a cabeça para o prato, dá a volta ao resto do corpo e com elegância vai comer. É uma vitória ele comer comigo no apartamento, mas uma perda por não conseguir a sua atenção. Levanto e deixo a escova no chão, assim ele poderá analisá-la a seu tempo. Como a minha lasanha descansada, ligo a tv e coloco Ozark. Gosto de séries sobre máfia e policiais, na verdade, os meus gostos são abrangentes a todos os temas possíveis. Só romance que me confunde ocasionalmente, nunca me decido se amei ou odiei. Via k-dramas, j-dramas e BL’s, contudo os romances americanos não eram a minha praia. Sete-sóis continuava a comer, pelo canto do olho via que parava e ficava a olhar-me algumas vezes. Ainda não estava contente comigo, eu não me importava, se ele fosse um humano ficaria no canto da sala e apenas recorreria à avaliação final nos semestres para não ter de fazer trabalhos de grupo. Dei uma risada ao pensar nisso, ele parou de comer e olhou para mim. — Seria engraçado se fosses humano...- Falo baixo e volto a série que passa na televisão.
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