Proposta absurda

1329 Words
Celina colocou a chave no portão, dando graças a Deus por estar em casa. Balançou a cabeça afastando os maus pensamentos. Tinha passado o dia inteiro na rua. Saiu muito cedo pra não perder o fechamento dos portões e era muito longe mesmo de lá até em casa de volta. Tinha comido um pacote de bolacha antes da prova, já era quase 8 horas da noite. Queria tomar um banho, jantar e ir pra cama. Desde o vestibulinho, tinha descoberto que sempre tinha dores de cabeça de ansiedade em fazer uma prova difícil. Não sabe se porque pensava demais, se tinha medo de decepcionar ou outro motivo, mas a cabeça começava a doer absurdamente quando ia preencher o gabarito e só parava depois que dormia. Então estava ansiosa por esse momento, mas se decepcionou consideravelmente quando entrou e viu a pia cheia de louças, pratos sobre a mesa e panelas vazias sobre o fogão. "Pelo menos esvaziaram as panelas e colocaram a comida na geladeira". Percebeu que estava sozinha em casa quando viu o bilhete pregado na geladeira, quando foi ver o que tinha pra comer. "Saímos para comer pizza, não tinha a menor condição de fazer janta com essa bagunça na cozinha. Espero que você não tenha intenção de ir dormir deixando essa cozinha nesse estado que eu te arrebento. Bateu pernas o dia inteiro, agora faça suas obrigações" Novamente, os olhos de Celina encheram d'água. Dessa vez, ela deixou rolar, não tinha ninguém pra ver sua fraqueza em casa. Foi para o quarto que dividia com as irmãs, pegou roupas e foi tomar banho. Prendeu o cabelo num r**o de cavalo, limpou a cozinha inteira enquanto chorava, tentando ser o mais rápida possível. Estranhamente, a fome passou e o que sentia era um bolo na garganta. Quando terminou a cozinha, deixando impecável, pensou em como era sortuda em completar 18 anos dali a três meses. Ela tinha que arrumar uma forma de sair da casa da mãe, passando ou não no vestibular. Se tiver passado, era mais importante ainda sair de lá, para que ela não fizesse o mesmo de quando começou a ETEC. Passar no vestibular era uma honra, e isso era comemorado pelos veteranos. Quando passava numa instituição pública para colégio técnico não era diferente. Chamam de vestibulinho, pois seria curso técnico junto com ensino médio. Não era fácil passar e menos ainda agregar todas as matérias técnicas junto com a grade curricular regular. E os bichos e bichetes, eram batizados em uma cerimônia similar da faculdade. Pintavam seus rostos, escreviam "bichete" na testa, espirravam desodorante barato, creme de barbear no cabelo, essas coisas. Ser pego no trote da Etec ou universidade, era motivo de orgulho. E Celina voltou pra casa toda pintada, com a testa bichete, fedendo desodorante vagabundo, os riscos verde e amarelo na bochecha, e nada disso chamava mais atenção do que o enorme sorriso estampado em seu rosto. Todos que entravam no ônibus e olhavam pra ela, sorriam junto e lhe davam parabéns. E quando chegou em casa, a mãe ficou doida, disse que bicho eram os alunos daquela escola e ela não iria mais se prestar aquilo. No outro dia, a levou na escola antiga para rematrícular. Por sorte, as meninas da secretaria que a conheciam pela dedicação aos estudos, convenceram a mãe que o trote era um ritual pra encher um pai de orgulho. Quando ela terminou a cozinha, secou o banheiro com desinfetante nas peças e paredes, escovou os dentes e foi deitar, antes que os pais chegassem com as irmãs. Queria evitar todo mundo. E mais ainda, que a mãe percebesse que ela andou chorando. Conseguiu evitar todos por aquela semana. Como era semana de provas finais, todos estavam concentrados em estudar e os pais deixaram em paz. Toda adolescente tem uma melhor amiga, Celina era tão diferente que tinha um melhor amigo. Ela não gostava das meninas! Luis seria o cara perfeito para namorar: era loiro, olhos verdes, dentes perfeitos, alto, atlético, tinha covinhas na bochecha. Educado, gentil, uma pessoa muito agradável. Se não se envolvesse com o crime, Celina até tentaria. Mas ela sempre pensava que era só o que lhe faltava, depois de tudo que passava com a mãe, virar mulher de bandido! Alguns dias depois, ele foi checar a lista dos aprovados pra ela. Quando ele chegou, Celina estava colocando a mesa do almoço, Joyce o recebeu. Ele entrou com uma cara muito séria, e o coração de Celina parou uma batida. Como seria no ano seguinte? Ela tinha que sair de casa, trabalhar, se manter. Como pagaria a taxa pra tentar de novo? Valeria a pena? Luis pegou na mão de Carlos e deu um beijo na testa de Nancy. - Tia, trouxe uma notícia não muito boa. - Pode falar, Luís. O que aconteceu? - A senhora vai ter que colocar essas duas folgadas pra cuidar da casa ano que vem, porque em fevereiro, começa a formar uma odontóloga pela USP, porque a Celina passou em sexto lugar no vestibular! Celina segurou o coração, depois pulou no colo de Luís, rindo. As irmãs pularam junto e começaram a gritar de felicidade, depois Joyce saiu gritando em direção a rua, que Celina ia se formar na USP. Mas Nancy mandou parar de escândalo que não tinha motivos para aquilo. Celina estava abraçada com o pai que a estava parabenizando. Se soltaram e ela virou pra mãe: - A senhora não pode ficar feliz por mim? Quantas pessoas você conhece que foram aprovadas na USP? Lá só entra bacana, é muito difícil um pobre entrar lá. - Parabéns, você é muito inteligente, não precisava de uma prova pra gente saber disso. Mas não é esperta. Você passou, mas não vai cursar. Sacrifício de tölo ir fazer a prova e ficar nessa ansiedade esses dias todos. - Porque não vou cursar, mãe? - Porque você prestou para odontologia ao invés de escolher um curso mais fácil e acessível. Pra você cursar, precisa tomar duas conduções todos os dias, quem vai bancar essa farra? E a carga horária não é só 4 horas como na escola. Vai ter que sair cedo e voltar tarde. Quem vai fazer suas tarefas na casa? E pior, você não vai pagar mensalidades e matrícula, mas vai ter que comprar todos os livros porque a faculdade não dá o material didático e para odontologia tem que comprar todo o material cirúrgico para estudar. Onde vai arrumar todo esse dinheiro? - Eu vou trabalhar, mãe. Vou me virar, mas vou cursar a universidade. - Não, você não vai. Precisa cuidar da casa pra eu trabalhar. - Mãe, desde muito pequena, cubro todas as suas obrigações como a senhora do lar. Lavo, passo, cozinho, limpo a casa e cuido das suas filhas, como se eu fosse a mulher da casa. Mas agora é o meu futuro, minhas escolhas, eu sou quase uma adulta e não vou me afundar lavando seu banheiro e o de ninguém em troca de um prato de comida. - Sai todo mundo. Helena, serve o almoço pra sua irmã, seu pai e o Luis. Vou conversar com Celina. Quando estavam só as duas na sala, a mãe virou pra ela muito calma e falou: - Você ainda é menor de idade, eu preciso te matricular como sua responsável. Se você esperar até completar maioridade, vai perder o prazo e a vaga vai pra outra pessoa. - Eu tenho pai, sabia? - Sério que você acha que seu pai vai fazer algo contra a minha vontade? - O que você quer para me matricular? - Você vai noivar antes da matrícula, e se casar quando terminar a faculdade. - Aceito, não sei com quem vou casar, mas aceito. - Você pensa que sou idiöta? Depois da maioridade, você cancela o acordo. Já vai estar matriculada mesmo. Por isso, você vai selar o noivado com a primeira noite antes do casamento. E vai servir seu noivo sempre que ele quiser...
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