Linda Parker
Talvez eu tenha orado pouco quando era criança.
Ou talvez a vida tenha visto com desgosto os poucos momentos de rebeldia que tive quando era adolescente.
E por rebeldia, considere os míseros minutos em que me atrasava chegando da faculdade, as portas do meu quarto algumas vezes batida quando algo não me agradava, e todos os xingamentos ao homem que me deu a vida.
Todos em pensamento, claro.
Minha mãe já tinha uma vida muito difícil nos sustentando sozinha, trabalhando noite e dia para tentar pagar todas as dívidas deixadas por um viciado em jogos depois que meu pai partiu. Ela não precisava de uma filha rebelde que desse mais trabalho que o de atendente na cafeteria dos Grayson’s.
E se ao citar o fato daquele que deveria ser um bom pai e cuidar das necessidades mais básicas da nossa família partiu, mas dessa para melhor, ou para pior, depende do ponto de vista, não, ele apenas se viu envolvido com pessoas que não tem a mesma paciência que àqueles que deveriam receber os pagamentos atrasados do alugueis do nosso apartamento, tendo como única opção deixar o estado.
Senti alívio quando minha mãe me contou que ele havia ido embora. No fim das contas, sua presença mais atrapalhava que ajudava.
Porém, o alívio na minha vida durou pouco, apenas o tempo para que em um dia de chuva intenso a falha nos freios do nosso velho carro, tirasse de mim a única família que me restou.
Ainda consigo ouvir a batida na porta.
Ainda consigo ouvir as palavras ditas de forma tranquila.
- Sinto muito, mas foi um acidente fatal. Sua mãe não resistiu.
As palavras iam e vinham sem que eu conseguisse processá-las direito. Porém, quando minha ficha caiu de que aquilo era real, senti a dor mais profunda que alguém poderia sentir.
- Linda? Terra chamando Linda. - Pisquei afastando os pensamentos que vez ou outra me tiravam de órbita. Me carregavam para aquele dia sombrio.
Levantei a cabeça encarando a garota ao meu lado.
Odiava a forma como há quatro meses as pessoas me olhavam, com a típica mistura de tristeza e pena por perder a única família que tinha.
- Me desculpe, Gracie. Estava distraída. - Falei fitando o par de olhos verdes alguns tons mais claros que os meus.
Assim que despertei do meu transe comecei a preparar o pedido da senhora que aguardava pacientemente.
Anne aparecia quase todas as manhãs desde que me entendo por gente. Para me ver e para tomar seu café da manhã. Sempre com um sorriso doce no rosto, bem como seu abraço caloroso, talvez por isso mamãe e ela tenham se tornado tão amigas ao longo dos anos.
Depois que minha mãe morreu acabei ficando com sua vaga na cafeteria, e isso me dava a oportunidade de conviver com Anne. Era bom ter alguém com quem conversar e desabafar sobre a vida, estando na casa dos sessenta, já com seus cabelos brancos, a doce senhora trazia toda sua experiência para nossas conversas.
Embora graduada em administração, graças aos esforços da minha mãe, ainda não tinha conseguido um trabalho na área, nem mesmo depois de distribuir currículo por várias empresas ou com a ajuda de Elliot, filho do Sr e da Sra Grayson.
O salário na cafeteria não era grandes coisas, contudo, era tudo que precisava até arrumar algo melhor.
Ele fez questão de me ajudar, e por mais que às vezes ele me deixasse nervosa com suas cantadas fora de hora, nesse quesito, sua insistência acabou levando a melhor. Aceitei com a esperança de que seu nome conhecido no mercado, por ter sua própria empresa, me arrumasse um emprego mais rápido.
- Você está mais do que distraída hoje. - Gracie falou ao pegar a bandeja pronta para ser entregue na mesa em que Anne aguardava.
Sim, estava mais do que distraída. Mas como dizer a ela que fazia exatos quatro meses da morte da pessoa que mais amava?
Mudei mais uma vez o rumo dos meus pensamentos voltando a me concentrar no trabalho. Precisava ocupar minha mente.
As horas se arrastaram transformando o dia mais longo que que normalmente sentia que era. Não via a hora de chegar em casa, tomar um demorado banho quente e me esparramar pela minha "enorme" cama de solteiro.
Restavam três mesas ocupadas próximo ao final do meu expediente, e pelo visto, não existia hora para se tomar um bom café e fazer um lanche.
Até mesmo os outros funcionários já tinham ido embora, e eu rezava baixinho para que esses últimos clientes dessem o fora logo, hoje não estava sendo um bom dia. Janeiro não estava sendo um bom mês
Acompanhei a porta se fechar com a saída de mais um casal, logo abaixando a cabeça para continuar limpando a mesa mais próxima ao balcão. Minutos depois, sem que sequer tivesse notado sua presença, encarei os olhos castanhos de Elliot Grayson.
Elliot era o tipo de homem que sabia reconhecer sua boa aparência. Andava sempre muito bem vestido e com um sorriso prepotente que chamava a atenção de qualquer mulher por onde passava, e muito provavelmente era o que o tornava o ser mais arrogante que já havia conhecido.
Bem, qualquer mulher, menos eu.
A forma como me olhava, me media e examinava, do cabelo preso em um coque até as unhas dos pés pintados, me deixava extremamente desconfortável.
- Ei lindona! Como vai?
E este era mais um dos motivos que me deixava desconfortável.
Odiava quando me chamava assim. Mais ainda quando se aproximava demais. Mas ele é filho dos donos do lugar de onde tirava meu sustento, além do fato de precisar do seu apoio se quiser parar de servir mesas algum dia. São as únicas coisas que me fazem optar por simplesmente ignorar suas cantadas baratas.
Elliot se aproximou beijando minha bochecha, trazendo tensão para todos os músculos do meu corpo. Se ele soubesse o quanto acho inapropriado, o quanto o gesto causa ciúmes e inveja nas outras atendentes, pararia de fazer isso, ou não.
Minha vontade era dizer a elas: não obrigada, ele é todo de vocês.
Tenho certeza que além de mim, apenas uma não aceitaria.
Tive vontade de limpar o beijo, porém me contive já que ainda tínhamos espectadores.
- Oi, Elliot, estou bem, obrigada. E você? - Olhei para o relógio na parede apenas para me certificar da hora. - O que te traz aqui tão tarde?
- Talvez eu estivesse com saudade da morena mais linda da cidade. - Revirei meus olhos internamente, me obrigando a dar um sorriso amarelo.
- Ou talvez, você precisasse trazer algum documento da cafeteria? - Arqueei minha sobrancelha em questionamento sabendo que esse era um ótimo palpite depois de ver o envelope pardo em sua mão.
- Talvez. - Disse com um sorriso cheio de dentes. - Não quer dizer que não estava com saudade.
Deus.
Que cara chato.
- Seus pais vieram mais cedo, mas já foram. Estou apenas aguardando aquele último casal sair para limpar tudo e ir para casa, tivemos um dia agitado. - Falei mudando de assunto, esperançosa que entendesse a dica, me entregasse o envelope e fosse embora me deixando sozinha para fechar o lugar.
- Eles me ligaram, por isso vim trazer esses documentos, vão precisar dele amanhã cedo. - Explicou enquanto passava a mão pelos cabelos.
- Deve ser realmente importante, se fizeram alguém ocupado como você vir até aqui e não mandar um funcionário... - Parei de falar quando percebi que falava demais. - Desculpe, não quis…
- Tudo bem, lindona. - Me cortou. - Pelo menos tive uma desculpa para vir te ver, já que até hoje não aceitou nenhum dos meus convites para sair. - Seu rosto contorceu minimamente ao se aproximar um pouco mais.
Desviei os olhos por um instante observando ao nosso redor. Tínhamos ficado sozinhos.
Andei até a próxima mesa e comecei a levantar as cadeiras.
- Sinto muito Elliot, mas faz pouco tempo que perdi minha mãe e não estou no clima… - Me expliquei.
- Eu sei, desculpe-me não quis te pressionar. Vou colocar os papéis no escritório e te espero fechar pra te deixar em casa. - Falou indo em direção ao escritório sem esperar por uma resposta.
Nos minutos que se ausentou, enrolei o máximo que pude para finalizar minhas tarefas, não desejava pegar carona com ele. Preferia mil vezes ir de ônibus ou até mesmo a pé.
Não queria me sentar em seu carro chique como as mulheres com quem está acostumado a sair e muito menos correr o risco dele me levar para qualquer lugar que não fosse minha casa.
Eu o evitaria pelo tempo que pudesse.
- Pronta para ir? - Perguntou ao se aproximar.
- Na verdade... não. Ainda tenho várias coisas para ajeitar, pode ir, não precisa se incomodar comigo.
- Não é incômodo nenhum, e já passa das sete, não quero me preocupar com você andando sozinha por aí. - Elliot cruzou os braços e me encarou aguardando.
Inferno.
Qual a parte do não quero carona esse i****a não tá entendendo?
- Tá tudo bem, eu realmente ainda vou demorar um pouco mais, preciso passar na farmácia e...
- Você tá doente? - Me cortou.
Sempre tinha que contar até três para não perder a paciência todas as vezes que Elliot me interrompia. Era um hábito que jamais me acostumaria.
Minha cara deveria ser indicação suficiente que odiava isso, não sei se não percebia ou se simplesmente não se importava.
- Não. Preciso comprar algumas coisas, coisas de mulher e não me sentiria confortável com sua companhia. - Sorri minimamente como se estivesse envergonhada.
Esperava que ele fosse como os outros homens com o desconforto àquelas duas palavras: coisas de mulher.
Isso porque nem usei a outra: absorventes.
- Ah, tudo bem. - Passou a mão na nuca. Sorri internamente sabendo que tinha ganhado. - Já vou indo então. - Informou.
Antes de sair, Elliot se aproximou em seus 1,85 de altura colocando a mão no meu braço e se abaixando devagar para beijar minha bochecha.
Meu corpo enrijeceu.
Paralisei quando seus lábios roçaram os meus e em seguida os pressionou no canto esquerdo da minha boca.
Teria acreditado nas suas próximas palavras se ao olhar para ele não tivesse visto aquele sorriso malicioso, enquanto eu apenas fiquei lá, sem saber o que fazer.
- Desculpe Linda. Não tive a intenção. - Disse baixo.
Fechei minhas mãos em punhos.
Filho da p**a.
Respire, Linda.
Não pode ser demitida. Não sem ter outro trabalho em vista.
Não com uma dívida gigantesca que herdei com a morte da minha mãe.
- Boa noite, Elliot. - Uma despensa, dessa vez ele não ignorou minha cara fechada. Seu sorriso morreu antes de se virar e se dirigir para a saída. Se ficou ofendido, não demonstrou.
- Até a próxima, lindeza. - Foram suas palavras ao abrir a porta. Ainda teve a ousadia de piscar antes de abri-lá e sair.
Dez minutos depois fechei tudo, desliguei as luzes, peguei minhas coisas e sai.
Toda terça e quinta a responsabilidade de encerrar as atividades era minha, já que a cafeteria ficava em um bairro tranquilo. Do contrário o Sr. Grayson jamais permitiria que uma mulher ficasse até mais tarde sozinha.
Minhas mãos tremiam ligeiramente, a cada passo que ao andar pela caçada, parte por causa do vento frio de um dia que prometia chuva a qualquer instante, parte pelo atrevimento de Elliot.
Ele nunca havia dado um passo a mais em minha direção. Sempre quando nos víamos jogava cantadas bobas, me chamava por apelidos idiotas fazendo referência ao meu nome, mas sempre de forma cautelosa.
Desde que voltou da Europa para abrir a própria empresa, pouco a pouco, vem tomando liberdades que em momento algum achei que estaria dando a ele.
Estava tão absorta na indignação do ocorrido que não percebi as gotas de chuva.
Merda. Merda. Merda.
Praguejei baixinho quando o chuvisco aumentou gradualmente tirando a maioria dos pedestres das calçadas e da rua. Apertei ainda mais o passo na tentativa de não molhar meu jeans e meu suéter azul preferido.
Depois de quinze minutos de caminhada, uma sensação estranha de estar sendo seguida me tomou. Um medo sem igual me dominou quando olhei para trás, ao ver o homem de moletom preto com o capuz que se aproximava.
Não dava para ver o rosto, porém, os passos ficaram mais rápidos ao perceber que havia sido notado.
A rua já estava vazia por causa da chuva, a maioria das lojas fechadas, não me restando outra saída senão correr.
Isso não pode tá acontecendo.
Corri apesar do salto.
Corri o máximo que minhas pernas curtas em meu 1,60 me permitiram.
Então corri para a morte.
A última coisa que ouvi foi o som da buzina no milésimo de segundo antes de ser arremessada ao chão.